O surpreendente título deste livro nos dá uma boa idéia acerca de seu conteúdo. Trata-se de uma alegoria ao mito de Prometeu. Assim como o herói grego roubou dos deuses o segredo do fogo, o que havia sido proibido por Zeus, e o entregou aos humanos, podemos pensar no homem moderno, que nutre a esperança “aparentemente insensata” de conhecer e transformar a realidade “baseando-se apenas em si mesmo”, realizando uma espécie de “arrombamento” ou apropriação da matéria pelo pensamento.

Trata-se então de um estudo sobre o significado filosófico do conhecimento científico, em especial dos conceitos e teorias da física. O livro é dedicado à reflexão sobre as relações entre conceitos e teorias, seus objetos e o real, que é mais vasto que os objetos das teorias científicas.

As investigações de Paty não se limitam ao terreno das teorias já bem estabelecidas na ciência, como a relatividade e a quântica, aventurando-se em interessantes incursões em zonas de fronteira do conhecimento, a exemplo do domínio comum entre a cosmologia (escala das grandes distâncias) e a física das partículas (escala das distâncias microscópicas). Para tais investigações o autor nos conduz a um passeio pelo mundo do conhecimento filosófico e científico, do conceito de átomo entre os gregos antigos às mais recentes teorias da física. O duplo perfil profissional do autor facilita esse passeio tornando-o uma leitura cativante mesmo para os não familiarizados com as modernas teorias físicas.

Doutor em Física e Filosofia, tendo migrado para esta última disciplina após o exercício da primeira na área da física de partículas, ensina hoje na Universidade de Paris VII. A linguagem quase que de divulgação científica faz com que as dificuldades técnicas localizadas não impeçam, contudo, o leitor não especialista de apreciar o alcance filosófico da obra. Por tais razões o livro, publicado originalmente em 1988, na França, com o o título La matière derobèe, recebeu em 1989 o prêmio Fundação Gégner da Academia das Ciências Morais e Políticas da França.

O autor sustenta a tese de que a dimensão filosófica das modernas teorias físicas poderá ser adequadamente apreendida se, na análise destas teorias, adotarmos a postura filosófica, que ele denomina de realismo. Mas Paty “recusa o realismo ingênuo das categorias evidentes e do determinismo (absoluto) no sentido laplaciano” e que “leva em conta as lições dos conhecimentos científicos contemporâneos”. Por isto, argumenta o autor, este realismo postula que o pensamento racional “pode alcançar o conhecimento desse real, mas de manira indireta, por intermédio de símbolos, conceitos, princípios, que são construções do pensamento pelas quais (ele) substituiu as determinações do real; mas que sabe que esse conhecimento, essa reconstituição do real pelo pensamento representativo, jamais é concluído, pois não podemos esperar uma superposição exata entre o real e sua representação simbólica”. É devido à impossibilidade desta superposição que “o aspecto crítico desse realismo racional se impõe como o requerido para polir, para modificar os elementos, inclusive fundamentais, dessa representação”.

A fecundidade desta perspectiva teórica e o alcance da reflexão do autor apenas podem ser anunciados nesta resenha. Só a leitura deste livro pode nos informar da riqueza da análise de certos conceitos e questões a exemplo das descrições probabilísticas, a não prevalência do primado do espaço-tempo contínuo no domínio microscópico, além das indistinguibilidades e inseparabilidades quânticas. Nossas ressalvas prendem-se unicamente à exploração, que consideramos insuficiente, do pensamento do físico Niels Bohr, um dos fundadores da física quântica e elaborador de sua interpretação padrão, dita complementariedade.

Não é difícil estabelecer um nexo entre a moldura filosófica apontada anteriormente e a dialética materialista. O próprio autor estabelece essa referência, chegando a formular um paralelo entre a definição filosófica da matéria feita por Lênin e sua própria consideração em que a prática da física no século XX “sugere a existência de uma exterioridade em relação ao pensamento conceitual à qual ele se refere constantemente; (que) por uma espécie de racionalização filosófica da experiência (…) é então transformada numa proposição, que toma a forma de um postulado racional, o da realidade material exterior ao pensamento, preexistente a ele”.

Tal referência nos exige a observação adicional de que, se a opção teórica de Paty tem entre suas raízes as reflexões filosóficas de Marx e Lênin, também é verdade que sua elaboração é totalmente estranha às características mecanicistas que marcaram o pensamento marxista no nosso século, especialmente na vertente do denominado marxismo soviético. Trata-se antes, chegamos a afirmar, de um estudo que deve instruir a perspectiva dialética e materialista com lições filosóficas extraídas da prática da atividade científica contemporânea.

A edição brasileira bem merecia um tratamento editorial mais cuidadoso, para evitar os diversos erros de impressão que dificultam a leitura de um texto complexo pela sua própria natureza, e cuja tradução encerra certas dificuldades naturais.
O livro A Matéria Roubada apresenta-se como leitura indispensável não só para pessoas de ciência, filósofos, e historiadores da ciência, mas também para “todos aqueles que se preocupam com as ciências contemporâneas quanto a seu conteúdo e quanto à dinâmica de seu movimento”.