Nilo Odalia formou-se em Filosofia na Universidade de São Paulo, em 1955, mas nunca abandonou reflexões históricas. Frequentou cursos de pós-graduação em Paris, com o professor e amigo Albert Soboul. Leciona na Unesp desde 1976.

Neste ensaio, que resulta de seus trabalhos no Institut de Recherches sur les Civilizations de L’Ocident Moderne, da Universidade de Paris IV, Sorbonne, o autor vem recapitular as obras do historiador francês George Duby, pois “mais que nenhum outro historiador foi capaz de sintetizar as duas tradições históricas: a dos Annales e a que nasce de Hegel e Marx, para ser possível pensar-se que, hoje, só a ciência histórica é capaz de nos permitir ter uma visão do homem e sua sociedade, tão rica e integral quanto o é sua vida real” (p. 11).

As obras de George Duby são apresentadas sob a forma de dimensões. O historiador francês engendrou universos para vivificá-los, descobrindo através da documentação utilizada diferenciações geográficas, temporais, demográficas e os motivos pelos quais ocorrem as rupturas e transformações sociais; resgatou o mundo do imaginário, interligando o saber e o ideológico; finalmente, revelou o cotidiano, a textura histórica que pretendeu reconstruir.

Seguindo a tradição dos Annales, Duby investiga a paisagem e as relações do homem com ela. O universo carolíngeo interage neste meio, quer transformando-o, quer adaptando-se a ele. Este momento de formação está definido numa unidade temporal, compreendida entre os séculos IX e X, sendo o período subsequente determinado pela hierarquização social – a sociedade tripartite. Nilo Odalia pretende demonstrar que, em algum momento desse estudo particularizado, Duby recorre a evidências que a escassez documental não poderia denunciar: tem-se um dimensionamento que não perde a noção da totalização, ou seja, a expansão do Ocidente, a feudalização e a consequente supremacia da classe senhorial. Temos então aspectos ligados ao cotidiano desse universo, traços culturais, técnicos, psicológicos, e sócio-econômicos.

Uma vez retratadas “as paixões, o colorido da vida, o subjetivismo, a tentativa de recriar as paisagens em que agia o homem” (p. 18), inicia-se o universo do imaginário, das manifestações ideológicas, cujos parâmetros serão teológicos – uma segunda dimensão. Esta mesma energia vem à tona quando a vida de Guilherme, o Marechal, entra em cena. Agora, trata-se de uma nova dimensão, desvendar o cotidiano não como uma “simples questão dos fatos miúdos, corriqueiros da vida de um povo, de uma comunidade, de uma nação, ele [o cotidiano] o é porque nele se integra um imaginário, vivido na mesma intensidade dos fatos miúdos, e que serve para conferir-lhes um significado nem sempre apreendido de maneira direta” (p. 73). Trata-se, sobretudo, de se pensar na estrutura, sem descrédito do particular; de se privilegiar regiões geográficas que dêem conta da homogeneidade do pensamento, sem partir para uma generalização abstrata; sobretudo, de construir um campo cronológico satisfatório para essas manifestações do pensamento filosófico-teológico que definiram a sociedade tripartite da França medieval. Foram estes os desafios do medievalista. Seriam estes os desafios que atualmente devemos enfrentar?

É difícil pensarmos numa crise historiográfica sem antes nos remetermos à década de 60. Temos um momento de desconstrução das Ciências Humanas e, ao mesmo tempo, de possibilidades, das quais ainda somos corolários. Opondo-se ao determinismo histórico, buscou-se maior vigor narrativo. Dispôs-se, nesse sentido, de um leque de possibilidades para investigações, como por exemplo a história dos “vencidos” – da mulher, do operário, da criança – e do cotidiano – do moleiro, do cavaleiro medieval; enfim, recursos que avivassem os personagens históricos, ainda que não perdessem de vista as estruturas.

Sob o olhar do filósofo, somos cúmplices de críticas contundentes ao surgimento do homem-massa, “uma das consequências mais dramáticas e explosivas da Revolução Industrial, [que] alterou de maneira radical o quadro da reflexão filosófica” (p. 13). Em nome dessa massificação, que marcou um novo momento de nossa cultura, a década de 1990 vivencia este fenômeno mais exacerbadamente, rememora-se a história do indivíduo, das paixões; talvez como pretendeu Nietzche, um observador arguto das explosões de sua geração. Entretanto, esta concepção histórica quase passional dos tempos pós-modernos não poderia abandonar suas bases filosóficas nascidas no século XIX. Vivemos uma tradição marxista, ainda que a antevisão revolucionária do materialismo dialético tenha sido motivo para as críticas relativas ao mecanicismo e ao finalismo histórico.

A propósito, são a essas críticas que a ideologia da existência, o existencialismo, vem responder: diante de uma perspectiva histórica marxista, resgatar o humanismo nas Ciências Humanas. A crise filosófica que vivenciamos nos leva a esse ambiente de discussões e embates teóricos posteriores à Segunda Guerra Mundial, e Nilo Odalia não ignora esses antecedentes.

O olhar do historiador não perde os liames de um homem que “não é apenas o Homo economicus, ou o Homo ludens, ou o Homo politicus, ele é tudo isso e mais alguma coisa (…)” (p. 21). O homem-mundo, transformador, reivindicador de seu futuro, por que não revolucionário? Não “uma história que se amesquinha, se estiola e definha, e com ela a própria humanidade que se quer criar” (p. 10). Como afirmou o autor acerca do marxismo. Seria a postura revolucionária finalista na razão que a criou?

Tampouco o reducionismo estruturalista, “confundido com uma besta do apocalipse capitalista” (p.21). Sabemos, entretanto, que os questionamentos se renovam e é difícil atingir novos estatutos quando tomamos modelos “ideais”. As possibilidades historiográficas, por mais variadas que se apresentem, devem corresponder aos questionamentos do período que a concebeu e, sobretudo, respeitar a historicidade de sua produção intelectual.

Reencontrando paradigmas para um saber histórico que atualmente parece dissipado, senão malbaratado pelas incertezas advindas do relativismo pós-moderno, temos no ensaio O saber e a história uma reflexão contundente do auto-de-fé do historiador. Um saber que não prescinde de gerações anteriores, compreendidas pelo século XIX de Hegel e Marx, além de toda produção que nos levou à Escola dos Annales, contemplado pelo senso crítico de Nilo Odalia.

São esses os paradigmas propostos pelo autor. Uma história narrativa que tenha como mentor Michelet; dialética e universalizante, tendo o pensamento hegeliano como seu preceptor; transformadora e pautada em bases materiais conforme pretendeu Marx; geográfica, quantitativa, temporal e intimista, segundo a tradição dos Annales. Enfim, seguindo suas próprias palavras, “uma melhor compreensão do homem em suas diversas dimensões, em suas diversas estruturas, em suas múltiplas contradições, em sua imensa fragilidade, mas também em sua enorme capacidade de criar e inventar, de tornar suportável e passível a vida, o que às vezes parece ser impossível” (p. 80).