Em nossas discussões comuns sobre o neoliberalismo nestes dias, tenho focalizado e enfatizado deliberadamente sua força – tanto intelectual como política –, ou seja, sua energia e sua intransigência teórica, seu dinamismo estratégico ainda não esgotado. Creio ser necessário – imprescindível mesmo – sublinhar esses traços, se quisermos combater eficazmente – em curto e longo prazos – o neoliberalismo. Uma das máximas mais importantes de Lênin, de cuja herança a esquerda em todas as partes segue precisando, foi sempre esta: jamais subestimar o inimigo. É perigoso iludir-se com a idéia de que o neoliberalismo é um fenômeno frágil, arcaico ou já anacrônico. Continua a ser uma ameaça viva e muito poderosa, tanto aqui na América Latina quanto na Europa ou em outras partes; um adversário formidável que foi vitorioso muitas vezes, nos últimos anos, mas não é invencível.

Se olharmos as perspectivas que poderiam emergir mais além do neoliberalismo vigente, para orientar-nos na luta política contra ele, não devemos esquecer três lições básicas, dadas pelo próprio neoliberalismo.

Primeira lição: não ter nenhum medo de estar absolutamente contra a corrente política do nosso tempo. Hayek, Friedman e seus sócios tiveram o mérito – entendido aos olhos de qualquer burguês inteligente de hoje – de colocar uma crítica radical do status quo, quando fazê-lo era muito impopular, e de ter paciência em sua postura de oposição marginal durante longo período, quando a sabedoria convencional os tratava como excêntricos ou loucos, até o momento em que as condições históricas mudaram e sua oportunidade política chegou.

Segunda lição: não transigir em idéias, não aceitar nenhuma diluição de princípios. As teorias neoliberais foram extremas e marcadas por falta de moderação, uma iconoclastia chocante para os bem pensantes de seu tempo. Mas não perderam eficácia por isso; ao contrário, foi propriamente o radicalismo, a dureza intelectual do temário neoliberal que lhe assegurou uma vida tão vigorosa e uma influência finalmente tão esmagadora. O neoliberalismo é o oposto de um pensamento fraco, para usar um termo da moda inventado por algumas correntes pós-modernistas para abalar teorias ecléticas e flexíveis.

O fato de nenhum regime político jamais ter realizado a totalidade do sonho neoliberal não é uma prova de sua ineficácia prática; ao contrário, foi somente porque a teoria neoliberal supria, nos seus princípios, uma espécie de temário máximo em que os governos podiam escolher os itens mais oportunos, segundo a sua conveniência política ou administrativa conjuntural. O maximalismo neoliberal, nesse sentido, foi altamente funcional. Provia um repertório muito amplo de medidas radicais possíveis, ajustáveis às circunstâncias. E, ao mesmo tempo, demonstrou o longo alcance da ideologia neoliberal, sua capacidade de abarcar todos os aspectos da sociedade e, assim, jogar o papel de uma visão verdadeiramente hegemônica do mundo.

Terceira lição: não aceitar nenhuma instituição estabelecida como imutável. Quando o neoliberalismo era um fenômeno politicamente menosprezado e marginal, durante o grande auge do capitalismo nos anos 1950 e 1960, parecia inconcebível ao consenso burguês daquele tempo criar desemprego de cerca de 40 milhões de pessoas nos países ricos, sem provocar transtornos sociais; parecia impensável redistribuir renda abertamente, em alta voz, dos pobres aos ricos, em nome do valor da desigualdade; parecia inimaginável privatizar não somente o petróleo, mas também a água, a receita, hospitais, escolas, até prisões. Mas, como sabemos, tudo isso se comprovou factível, quando a correlação de forças mudou com a longa recessão. A mensagem do neoliberalismo foi, nesse sentido, eletrizante em sociedades capitalistas. Nenhuma instituição, por mais consagrada e familiar, é, em princípio, intocável. A paisagem institucional é muito mais maleável do que se crê.

O pensador brasileiro-norte-americano Roberto Mangabeira Unger, de um ponto de vista de esquerda, teorizou esse traço histórico mais sistematicamente que qualquer pensador da direita, dando-lhe uma fundamentação histórica e filosófica de grande envergadura em seu livro Plasticidade e poder. Mas esse é um velho tema bem marxista: “tudo que é sólido se desmancha no ar”, proclamou o Manifesto Comunista. Recordando essas lições do neoliberalismo, como encarar a sua superação? Quais seriam os elementos de uma política capaz de varrê-lo? O tema é vasto; indicarei aqui somente três elementos de um pós-neoliberalismo possível:

1- Os valores. Temos de atacar robusta e agressivamente no terreno dos valores, ressaltando o princípio da igualdade como o critério central de qualquer sociedade verdadeiramente livre. Igualdade não quer dizer uniformidade, como afirma o neoliberalismo, mas, ao contrário, a única autêntica diversidade.

O lema de Marx conserva toda, absolutamente toda, sua vigência pluralista hoje: “a cada um, segundo as suas necessidades; de cada um, segundo suas capacidades”. A diferença entre as necessidades, os temperamentos, os talentos das pessoas está expressamente gravada nessa concepção clássica de uma sociedade igualitária e justa. O que significa isso hoje em dia? É uma igualização das possibilidades reais de cada cidadão viver uma vida plena, segundo o padrão que escolhe, sem carências ou desvantagens devido aos privilégios de outros, começando, bem entendido, com chances iguais de saúde, de educação, de moradia e de trabalho. Em cada uma dessas áreas, não há nenhuma possibilidade de que o mercado possa prover nem sequer o mínimo requisito de acesso universal aos bens imprescindíveis em questão. Somente uma autoridade pública pode garantir a proteção contra a doença, a promoção de conhecimentos e da cultura e a provisão de abrigo e de emprego para todos.

Não há imutabilidade no conhecido padrão da propriedade burguesa em nossos países

Göran Therborn falou com eloquência da necessidade de defender o princípio do Estado de bem-estar, e eu estou de acordo. Mas há, também, a necessidade de estendê-lo, pois precisamos drasticamente, em países como Brasil, Inglaterra e Suécia, não somente defender, mas alargar, estender redes de proteção social, não necessariamente confiando-as em sua gestão a um Estado centralizado. Para alcançar esse fim, claro, é necessária uma fiscalização absolutamente distinta da que existe nos países capitalistas desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, hoje. Não há necessidade de apontar aqui o escândalo material e moral do sistema tributário no Brasil. Deve-se apenas notar que evasão fiscal por parte das camadas ricas ou meramente bem acomodadas não é um fenômeno do que uma vez se chamava Terceiro Mundo, senão também, e cada vez mais, do próprio Primeiro Mundo.

Se nem sempre é aconselhável entregar a provisão de serviços públicos ao Estado centralizado, a extração dos recursos necessários para financiar esses serviços é, essa sim, uma função intransferível do Estado. Mas, para isso, precisa-se de um Estado duro e disciplinado, capaz de romper a resistência dos privilegiados e bloquear a fuga dos capitais que qualquer reforma tributária deflagaria. Todo discurso antiestatista que ignore essa necessidade é demagógico.

2- A propriedade. A maior façanha histórica do neoliberalismo certamente foi sua privatização de indústrias e serviços estatais. Aqui se consumou a sua longa cruzada anti-socialista. Paradoxalmente, lançando-se em tal projeto ambicioso, teve de inventar novos tipos de propriedade privada, como, por exemplo, os certificados distribuídos grátis a cada cidadão na Tchecoslováquia ou Rússia, dando-lhes direito de uma proporção igual a ações das novas empresas privadas. Essas operações vão ser, no final das contas, uma farsa, as ações tão equitativamente distribuídas sendo logo adquiridas por especuladores estrangeiros ou mafiosos locais. Mas o que essas operações demonstraram é que não há nenhuma ilegitimidade ou imutabilidade no padrão tradicional da propriedade burguesa nos nossos países. Novas formas de propriedade popular estão para ser inventadas, formas que desagregam as funções da rígida concentração de poderes na clássica empresa capitalista de hoje. Esse foi outro dos grandes temas da obra de Mangabeira Unger, e tornou-se agora tema para os trabalhos do grande teórico econômico marxista dos Estados Unidos, John Roemer, em nova obra cujo título é Um futuro para o socialismo, onde ele propõe um plano institucional, ao mesmo tempo audaz e rigoroso, induzindo a distribuição de dividendos a cada cidadão, retirados diretamente dos lucros médios das empresas privadas, como escalão à socialização posterior mais profunda.

“Precisamos de menos democracia. O neoliberalismo não tem receio de afirmar isso”

Existe hoje uma discussão muito rica nos países ocidentais sobre esse tema: a invenção de novas formas de propriedade popular, com muitas contribuições e propostas diversas. Mas o tema está longe de ser uma preocupação somente teórica dos países ricos. Ao contrário, muito da discussão mais recente se desprende diretamente da observação das formas mistas de empresas coletivas na China. As famosas TVES, ou seja, as chamadas empresas municipais e de aldeias, são hoje o motor central do milagre chinês, a economia que registra o único crescimento realmente vertiginoso do mundo contemporâneo. Há na China formas de propriedade tanto industrial quanto agrária, nem privada, nem estatal, mas coletiva, exemplos vivos de uma experiência social criativa, que demonstra um dinamismo sem par neste momento no mundo de hoje.

3- A democracia. O neoliberalismo teve a audácia de dizer abertamente: a democracia representativa que temos não é em si um valor supremo; ao contrário, é um instrumento inerentemente falível, que facilmente pode tornar-se excessivo e, de fato, tornou-se. Sua mensagem provocadora era esta: precisamos de menos democracia. Daí, por exemplo, sua insistência em um banco central jurídica e totalmente independente de qualquer governo, ou seja, de uma constituição que proíbe taxativamente o déficit orçamentário. Aqui devemos também tomar e inverter a sua lição emancipadora e pensar que a democracia que temos – se a temos – não é um ídolo a adorar, como se fosse a perfeição final da liberdade humana. É algo provisório e defeituoso, que se pode remodelar. O rumo da mudança deveria ser o oposto do neoliberalismo: precisamos de mais democracia. Isso não quer dizer que uma suposta simplificação do sistema de voto, abolindo a representação proporcional em favor de um mecanismo norte-americano como preconizado, às vezes, por distintos estadistas na América Latina. Essa é uma proposta descaradamente reacionária, visando a impor aqui um sistema tão antidemocrático que, nos próprios Estados Unidos, nem sequer a metade da população vota nas eleições. Tampouco mais democracia quer dizer conservar, ou ao menos fortalecer, o presidencialismo. Talvez a pior das importações estrangeiras na América Latina tenha sido, historicamente, uma servil importação da Constituição dos Estados Unidos do século XVIII, que agora está sendo imitada pelos governantes semicoloniais da Rússia. Uma democracia profunda exige exatamente o oposto desse tipo de poder plebiscitário. Exige um sistema parlamentar forte, baseado em partidos disciplinados, com financiamento público equitativo e sem demagogias cesaristas. Sobretudo, exige uma democratização dos meios de comunicação, cujo monopólio em mãos de grupos capitalistas superconcentrados, os mais prepotentes de toda sua classe, é incompatível com qualquer justiça eleitoral ou soberania democrática real.

Em outras palavras, esses três temas podem ser traduzidos em vocabulário clássico: são as formas modernas necessárias de liberdade, igualdade e – não digamos fraternidade, palavra um tanto sexista – solidariedade. Para realizá-los, precisamos de um espírito sem complexos, seguro, agressivo – diria não menos alegremente truculento do que era o neoliberalismo em sua origem. Isso seria o que talvez, um dia, pudesse ser chamado neo-socialismo. Seus símbolos não seriam verborrágicos: nem a águia da arrogância vizinha, nem o burro da sagacidade tardia, nem a pomba da conciliação pacífica e, menos ainda, um tucano de conivências fisiológicas; símbolos mais velhos, instrumentos de trabalho e de guerra, capazes de golpear e de colher, talvez fossem de novo mais apropriados.

* Historiador e professor da Universidade da Califórnia.

EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 15, 16, 17