Voto em separado do deputado Aldo Rebelo sobre o concerto de empresa nacional

Relatório

A Proposta de Emenda à Constituição n. 05/95, inserida no corpo da Mensagem n. 193/95, é – entre todas as PECs enviadas pelo presidente da República – a que de modo mais transparente revela a essência da concepção do atual governo acerca do significado da reforma em curso no Congresso. É apropriado, inclusive, afirmar que de sua aprovação depende o destino das demais. Alegando a necessidade da “construção de uma economia mais moderna, dinâmica e competitiva”, é sugerida nova redação para o artigo 171 da Constituição, no sentido de eliminar a suposta discriminação constitucional que sofre a empresa brasileira em confronto com a de capital nacional.

Com a eliminação do conceito de empresa brasileira de capital nacional, a PEC n. 05 sugere, em consequência, a retirada do inciso IX do artigo 170, que inclui, entre os princípios determinantes da ordem econômica, o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. Propõe ainda mudança no parágrafo primeiro do artigo 176, banindo a exclusividade da pesquisa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento de potenciais de energia hidráulica por empresa brasileira de capital nacional.

Voto

Meu voto é posto em sentido antagônico a essa proposta, contrário ao desmonte (1) da Constituição e (2) dos alicerces do Estado Nacional, pretendido implicitamente em seu conteúdo.

1- A desconstitucionalização (o desmonte da carta magna)
O inciso I do artigo 1º da Constituição elege a soberania como pressuposto da existência da República Federativa do Brasil, que “constitui-se em Estado democrático de direito”. Tal formulação é reafirmada no inciso I do artigo 170, que sublima a soberania nacional como um dos princípios da Ordem Econômica. O artigo 3º, por sua vez, afirma que são objetivos fundamentais da República:
“I – construir uma sociedade livre, justa e igualitária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos (…)”.

No artigo 4º, a República Federativa do Brasil é conceituada em suas relações externas pelo respeito a princípios como o da independência nacional, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre Estados, além de outros.

A proposta do governo conduz imediatamente, ou enquanto corolário, ao desmoronamento da coluna vertebral da nossa Carta Magna – o que somente poderia ser obra de um Poder Constituinte Originário; é a opinião consensual na OAB e entre os mais sérios e renomados juristas brasileiros. Formalmente, as emendas do governo seguem o rito determinado, mas as limitações do poder de reforma são explícita ou tacitamente materiais, de acordo com o renomado jurista Paulo Bonavides, que considera ser “a teoria dos princípios hoje o coração das constituições”. As limitações explícitas estão incorporadas nas “cláusulas pétreas” (parágrafo 4º do artigo 60) e as limitações tácitas são as que ferem princípios constitucionais e alteram o espírito da Carta Magna. Não é, portanto, problema de ordem formal a pretensão de adulterar cláusulas pétreas e a coluna vertebral da Constituição através de propostas de emendas à Constituição, por um poder constituinte derivado.

É, entre outros, o ilustre jurista Pontes de Miranda que, examinando as repercussões dos embates entre concepções divergentes (liberalismo ou intervencionismo) nos textos das constituições, observa “o advento de normas constitucionais de princípios programáticos de grande importância que buscam definir rumos e atribuir fins ao Estado, esvaziado pelo liberalismo econômico”. Acompanha sua tese o constitucionalista José Afonso da Silva. O poder constituinte originário, em 1988, atribuiu ao Estado papel decisivo em seu desenvolvimento, estabelecendo justas limitações ao poder do capital forâneo em setores estratégicos da economia brasileira. A supressão de sua presença nesses setores suprime também o princípio da soberania nacional e constitui, nessas condições, um gesto de pirataria que violenta nossa constituição.

Comungam, além disso, os jurisconsultos, da concepção de que tais mudanças na Constituição não alteram a realidade, pois para os Estados Unidos, por exemplo, continuarão a existir empresas brasileiras e norte-americanas conceitualmente e na prática. A pretensão de dar tratamento igual para desiguais não fará excluir as diferenças que sempre distinguiram empresas nacionais e estrangeiras.
Aliás, o Direito Brasileiro, desde nosso primeira Constituição, de 1824, sempre reconheceu a existência de situações especiais em que se mostra indispensável o controle nacional sobre certas atividades econômicas que apresentaram perfil estratégico. Em 1828, a lei determinou que a tecnologia de mineração fosse progressivamente transferida para o controle nacional, e que pelo menos um terço do capital investido na lavra do ouro fosse brasileiro. O mesmo princípio foi aplicado às ferrovias, visando à formação do acervo técnico necessário ao desenvolvimento do país. O colapso de 10 de setembro de 1864 levou à limitação do capital estrangeiro do setor bancário a 25%.

A participação integral do capital nacional em determinadas atividades essenciais constou de diversas constituições brasileiras, a exemplo da exploração do diamante, em 1828; dos seguros de vida a partir de 1866; da pesca desde 1938. A preservação da identidade cultural e a defesa do interesse nacional. Motivaram também formalmente o pleno controle da União sobre jornais, rádios e tevês, navegação de contagem, exploração de petróleo, gás e outros hidrocarbonetos fluídos, prospecção de minerais e propriedade de terras a 150 quilômetros das faixas de fronteira.

Os sistemas constitucionais dos países que hoje inspiram mudanças em nossa Carta Magna também reconhecem a preservação de atividades econômicas nas quais o controle nacional é indispensável. Mais recentemente, relevante orientação legislativa – especialmente nos Estados Unidos – vem exigindo a presença nacional em setores essenciais sob a égide da defesa militar ou do desenvolvimento tecnológico em absoluta harmonia com a ordem jurídica do países hegemônicos. A Exon Florio Amendment é o mais notável exemplo dessa postura: por esse instrumento, o presidente da República tem poderes para limitar e até impedir fusões e compras de empresas norte-americanas nos setores da alta tecnologia. Nesse país, as empresas estrangeiras não podem assumir o controle do capital nem administrar qualquer das empresas norte-americanas do setor de telecomunicações.

Vê-se desse modo que, na pátria do capitalismo, a ação protecionista do Estado em setores essenciais é o reconhecimento de que o controle nacional representa um pressuposto para o desenvolvimento da própria economia de mercado. Outro exemplo desse reconhecimento é a Lei de Comércio e Tarifas (o Trade Act), que prevê retaliações às empresas e aos países que pratiquem, mesmo que supostamente, dumping e outras ações contra capitais, bens e produtos de empresas norte-americanas. Posso citar ainda – entre outros numerosos exemplos da prática nacionalista que precede a prática intervencionista – o Jones Act, que apenas permite a navegação de cabotagem realizada por empresa norte-americana, em navio de bandeira norte-americana, construído pela indústria norte-americana e com tripulação norte-americana.

A partir de que princípio, então, nações como o Brasil – com menor desenvolvimento relativo e mais reduzidas possibilidades de crescimento da oferta local para a integração no comércio mundial – devem eliminar o controle nacional submetendo-o ao estrangeiro sem levar em conta a segurança do país ou seu futuro no campo tecnológico?

Vale aqui ressaltar a introdução na Constituição de 1988 da diferenciação entre empresas brasileira e empresa brasileira de capital nacional foi expressão da vontade de um setor nacionalista liderado pelo ex-ministro, e então senador Severo Gomes, como uma versão brasileira de American Buy Act, que assegura privilégios às empresas norte-americanas na compra de bens e serviços pelo Estado dos Estados Unidos.

2- O Estado Minimalista (o desmonte do Estado Nacional)

O escopo que sustenta a proposta de sujeição de nosso país e de sua economia à chamada globalização, que contingenciaria uma indispensável abertura, não possui nenhuma sustentação jurídica – nem as normas do direito internacional nem a jurisprudência brasileira. Deve-se contestar a falácia desse raciocínio economicista que, embasado no caldo da cultura do liberalismo conservador e de sua moderna roupagem neoliberal, propõe a transformação de nosso país numa grande zona franca internacional, através da supressão do Estado nacional, de suas prerrogativas protecionistas, tornando-o incapaz de assegurar bem-estar e prosperidade a seu povo. O percurso de nossa história e de nosso desenvolvimento econômico, social e político rejeita esse caminho.

Nosso país nasceu da expansão européia, na qualidade de colônia. Já naquele momento, conflitos econômicos acentuaram nossa relação com as metrópoles. Em 1785, Portugal proibiu em nosso território a existência de indústrias. De outro lado, nossos ascendentes, os inconfidentes mineiros de 1789, pugnaram por um desenvolvimento industrial autônomo. Essa contradição permeou a política econômica de todos os governos brasileiros. Os velhos interesses colonialistas, precursores do ideário neoliberal, defendiam nossa vocação agrícola e a incapacidade industrial pela inexistência ou escassez de capitais. No lado oposto, os que advogam mudanças estruturais profundas, a modernização e o crescimento industrial repousando no ideal da soberania, erguiam-se contra a estagnação do País. Na época da luta pela Independência, postavam-se exemplarmente em campos distintos personalidades como Visconde de Cairu, um liberal à inglesa, adepto de Adam Smith, que desejava o Estado fora da economia; e José Bonifácio que pensava o Estado como gestor do desenvolvimento, proibindo o trabalho escravo, dividindo o latifúndio, criando um mercado interno independente, às margens dos interesses coloniais. A história nos legou também exemplos como o de Mauá, um empreendedor brasileiro que criou empresas bem-sucedidas sucessivamente apropriadas e falidas pelo capital estrangeiro.

Com o advento da República, a controvérsia foi a mesma: propostas industrialistas nacionais, de um lado; interesses agro-mercantis-exportadores, de outro, na perspectiva da manutenção de uma divisão internacional do trabalho conveniente para o Império Britânico – todos deviam fornecer matérias-primas à Inglaterra e comprar seus produtos industrializados. Em 1891, o jornal O Industrial dizia: “Um país que se projeta em enorme extensão em nosso planeta, podendo produzir tudo, assimilar todas as raças e dar emprego vantajoso a todas as aptidões não pode continuar a ser uma feitoria colonial”.

A presença do Estado na economia esteve sempre no centro das discussões. A intervenção estatal em favor da indústria tornou-se política oficial em 1930 com Getúlio. Mas o debate entre defensores (a exemplo de Roberto Simonsen) e inimigos (como Eugenio Gudin) da industrialização do Conselho Nacional de Política Indústrial e Comercial, em 1944, demonstrou que não ocorrera a derrota dos livres cambistas e do setor agromercantil. Nessa ocasião Gudin pregava uma política de austeridade econômica, considerando o crescimento dos meios de pagamento, a alta dos preços e a inflação os principais problemas a serem enfrentados por uma reformulação da política monetária. Propunha ainda a redução do volume de obras e investimentos do Estado, bem como a restrição e o controle do crédito. Criticava as medidas protecionistas e dizia que o país deveria exportar e importar muito, adotando os princípios do acordo de Bretton Woods: liberdade de entrada e saída de capital estrangeiro, igualdade de tratamento entre capital estrangeiro e capital nacional, nenhuma restrição à remessa de lucros.

Basicamente as mesmas teses foram reapresentadas cinquenta anos depois pelo Consenso de Washington, voltaram a orientar o governo após 1945, quando Getúlio foi deposto, foram derrotadas com seu retorno em 1950 e vitoriosas novamente com seu suicídio em 1954. Ambiguidades e vacilações não as sepultaram, contudo, e esse confronto perpassou 1964, vinte e um anos de regime militar e mais de dez de governos civis até o atual momento, quando jovens economistas de tradição de esquerda e formação acadêmica norte-americana em Harvard, Cambridge e Massachussets se esmeram em servir a senhores que rondaram e rondam qual aves de rapina os interesses nacionais e as riquezas de nossa gente.

Hoje, apresentam-se o velho livre-cambismo como novidade, passaporte para a modernidade, em nome do antiestatismo ideológico. Lembro aqui, já que é esse o caso, a advertência de Mauá em obra datada de 1878:

“Cumpre estar prevenido contra certas idéias apregoadas com dogmática severidade por parte de doutrinários inflexíveis, as quais nem sempre são aplicáveis a países onde as causas que determinam certos fenômenos são diversas, e portanto o regime aconselhado como salvador de altos interesses para uns daria em resultado ficarem esses ficarem seriamente comprometidos em outros, se o bom senso nacional não repelisse o presente de grego”.

Lembro também as bem recentes reflexões do jovem e brilhante economista Cesar Benjamin, que renova as preocupações dos grandes vultos de nossa História, lembrando não haver mais na economia brasileira a não ser barreiras comerciais cimentadas na necessidade de superávits para o pagamento da dívida com credores externos. Estas que haviam passado por breve interregno, foram reconstituídas com a recente revoada dos ariscos capitais voláteis, após os maiores déficits comerciais da história do Brasil, nos primeiros meses de 1995. Benjamim está bem fundamentado quando afirma ser a economia brasileira uma das mais abertas do mundo. Em nosso País, as empresas estrangeiras entram com 32% da produção, subindo essa taxa de participação quando em setores dinâmicos, como material de transporte (78%), material elétrico e indústria farmacêutica (85%), permanecendo aqui apenas em alguns exemplos.

Ao apresentar esta Proposta de Emenda à Constituição ao Congresso Nacional, o governo brasileiro desenha um comportamento claro: demonstra que abdica do direito de transformar o Brasil numa sólida economia – capaz de enfrentar com altivez as tempestades de cada vez mais desordenada ordem capitalista e de elevar o padrão de vida de sua população. Tenta claramente bloquear os caminhos que, para Darcy Ribeiro, levam um povo à condição de “povo de primeira classe” na perspectiva da superação do atraso e da dependência. Tal passagem exige, entretanto, o reconhecimento de sua história. Ao admitir em suas proposições a vitória do liberalismo, o governo brasileiro assume o triste fardo de fiel da balança de um confronto que percorre séculos dessa mesma história. Tenta sepultar a memória e as idéias de vultos indeléveis da trajetória política da formação da sociedade e da nacionalidade brasileira. Não foi esse o destino pensado e por que lutaram os que acreditaram, e acreditam, no Brasil como Estado-nação. Aos que arquitetem essa reforma, restará o mesmo registro que sombreou homens como Judas, Quisling e Silvério dos Reis.

Reafirmo, portanto, pelas razões aqui expostas, o voto contrário à Proposta de Emenda à Constituição n. 5, de 1995, em meu próprio nome e em nome de meu Partido.
Aldo Rebelo – deputado federal, PCdoB-SP.

Voto em separado da deputada Socorro Gomes sobre a navegação de cabotagem

Relatório

Em 16 de fevereiro de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso encaminhou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional n. 07-A, que elimina preceitos fundamentais que asseguram a manutenção de uma frota mercante nacional configurados no artigo 178 de nossa Constituição Federal.

Pretende o governo federal que o citado artigo limite-se à seguinte redação:
Art.178. A Lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, marítimo e terrestre, devendo a ordenação do transporte internacional observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

Parágrafo único. A lei disciplinará a navegação de cabotagem e interior.
Inclua-se no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o seguinte artigo, onde couber: Art. – Enquanto não se editar a lei de que cuida o parágrafo único do artigo 178, modificado pela Emenda Constitucional número 07-A, de 1995, a Navegação de Cabotagem e a Interior permanecerão privativas de embarcações nacionais, salvo em casos de necessidade pública.

Tal proposta retira do texto constitucional a obrigatoriedade de predominância dos armadores nacionais e navios de bandeira e registros brasileiros e do país exportador ou importador, bem como de serem brasileiros os armadores, os proprietários, os comendantes e dois terços, pelo menos, dos tripulantes de embarcações nacionais.

Quanto à navegação de cabotagem e à de interior, ao retirar-se o princípio constitucional que garante serem privativas de embarcações nacionais, salvo caso de necessidade pública, segundo dispuser a lei e lançá-las a Legislação Ordinária, como pretende a Emenda, é inegável que o governo demonstra inequívoca disposição de abrir a nossa navegação de cabotagem e de interior a embarcações estrangeiras.

É inaceitável que a título de um mero enxugamento do texto Constitucional e de uma assumida flexibilização do nosso transporte aquaviário, possibilitemos a operação interna de embarcações de países que obedecem ao princípio da reciprocidade.

A elite dirigente brasileira costuma decidir olhando a experiência estrangeira, dos países desenvolvidos. O transporte interno, de mercadoria e pessoas, em quase todos os países do mundo, é feito quase exclusivamente por empresas nacionais. A navegação de cabotagem é privativa de embarcações nacionais nas principais potências marítimas, citando-se como exemplo Estados Unidos, França e Japão, Holanda, Alemanha, Grécia etc. Nos Estados Unidos, o “Merchant Marine Acr”, de 1920, estabelece em sua seção 27, que a navegação de cabotagem só pode ser realizada por navios de propriedade de cidadãos norte-americanos, tripulados por nacionais e que tenham sido construídos nos Estados Unidos. A propriedade, no caso, significa estar sob controle de norte-americanos 75% do capital da empresa de navegação, exigência que se repete à empresa que explore a navegação de longo curso.

O Japão, proprietário de uma das maiores frotas marítimas do mundo, reserva às embarcações japonesas a navegação de cabotagem no país e exige serem japoneses os navios e seus proprietários. As corporações comerciais devem ser sediadas no país, controladas por japoneses ou por pessoas jurídicas com seu centro de decisão no Japão, sendo seus representantes cidadãos japoneses. Também o tráfego doméstico é restrito às embarcações japonesas.

Na Argentina, o artigo 1º do Decreto Lei n. 19.142 de 1944 determina que a navegação de cabotagem será praticada exclusivamente por barcos argentinos, sob o comando argentino e com parte da tripulação composta por nacionais. Para se ter noção dos cuidados que os Estados Unidos tomam com sua navegação costeira, na Rodada Uruguai do GATT não permitiram incluir, no item sobre serviços, a liberação de transporte marítimo internacional e também o de cabotagem.

Da mesma forma que os países citados, a obrigatoriedade de utilização de embarcações nacionais na navegação de cabotagem no Brasil é uma constante histórica nas Constituições brasileiras desde a Constituições de 1891, permanecendo intocada nas Cartas de 1934, 1946, 1967 e 1988.
A Emenda Constitucional proposta pelo governo não encontra parâmetro de comparação em nenhuma das nações desenvolvidas ou consideradas em desenvolvimento em todo o mundo. Pelo contrário, pretende criar no Brasil uma situação privilegiada para as grandes frotas marítimas, não se importando que os países de origem dessas mesmas frotas estabeleçam reservas para protegerem seus interesses e de suas empresas de navegação.

Além da inexistência de exemplos internacionais que possam justificar a aprovação da PEC 07-A, é importante observar que a costa marítima brasileira está geograficamente distante das rotas predominantes do comércio internacional (o chamado tráfego Norte/Sul/Europa/América do Norte), com mais de 80% desse comércio. Nosso tráfego é marginal, atuando principalmente no sentido Norte-Sul.

Assim sendo, não há interesse do capital estrangeiro em manter linhas regulares em nossa costa, apenas viagens eventuais, de acordo com interesses específicos. O escoamento de nossas mercadorias ficaria, então, à mercê de momentâneas situações do quadro do comércio internacional, que podem ser favoráveis ou não à permanência de navios estrangeiros em nossa costa. Em muitas situações, “ficaremos a ver navios”, como diz o ditado popular.

Além disso, a cabotagem certamente seria fruto da ação de dumping de empresas de navegação estrangeiras com interesses temporários em nosso mercado interno, eliminando em curto prazo a nossa própria frota mercante de cabotagem. A ação do dumping é perfeitamente possível, haja vista a exigência de “mega-transportadores”, possuidores de capital superior a US$2 milhões e mais de uma centena de navios por empresa, representando grandes grupos estrangeiros (alemão, dinamarquês, americano, chinês e japonês).

Aprovada a proposta do governo, nossa submissão ao poder marítimo estrangeiro não se limitaria ao escoamento de nossas mercadorias. Haverá certamente a discriminação de produtos e tráfegos, deixando aos brasileiros as piores cargas e as piores rotas.

A PEC 07-A é, inclusive, incoerente com a posição dos governos envolvidos no MERCOSUL, que reconheceram a privacidade de suas respectivas navegações de cabotagem e interior.
A provável falência da maioria de nossas empresas de cabotagem traria mais um forte fator de enfraquecimento à nossa já debilitada indústria de construção e de reparação naval, com a suspensão de novas encomendas, gerando ainda mais desemprego, num setor de desempregados. A inevitável instabilidade da Legislação Ordinária decorre de tramitação de projetos de lei em atendimento aos mais diversos interesses de grupos econômicos, sejam nacionais, sejam estrangeiros, inevitavelmente inibirá o investimento da armação nacional no aumento de sua frota própria, para atendimento do tráfego doméstico, pois certamente encontrará a concorrência predatória de mega-transportadoras internacionais, que atuarão de forma a inviabilizar economicamente a armação nacional, para, a posteriori, estabelecerem as condições que lhes forem satisfatórias. Vale aqui ressaltar que o investimento para a construção de um único navio é de ordem de dezena de milhões de dólares.

Vale considerar ainda que o mercado de cabotagem corresponde a cerca de 300 milhões de dólares por ano, não podendo ser considerado desprezível. No entanto, num primeiro momento, pode-se pensar que o alvo das grandes empresas de navegação estrangeira seria o transporte de carga. Na verdade, são transportadas cerca de 68 milhões de toneladas de carga pela nossa cabotagem, das quais 49 milhões são granéis líquidos, basicamente petróleo e seus derivados; 18 milhões de toneladas são granéis sólidos; e tão somente 1 milhão de toneladas de carga geral, onde estão as chamadas cargas nobres, de alto valor agregado. Ao contrário do que se diz, não haverá interesse na carga geral, pois nossos portos não estão ainda parelhados convenientemente para receber esse tipo de carga, devido à falta de política governamental para o setor.

Tudo isso só serve para confirmar que o alvo principal da liberalização proposta pelo governo é o transporte de petróleo e seus derivados. O que se quer é a plena garantia de entrega de petróleo ao capital estrangeiro em toda a sua etapa, desde a prospecção até seu transporte interno.

Conclui-se daí que a emenda sobre navegação de cabotagem e interior correlaciona-se, nos objetivos e nos efeitos nocivos para o país e o povo, com as emendas também em apreciação no Congresso Nacional, que tratam da “flexibilização” do monopólio estatal do petróleo e que eliminam as diferenças constitucionais entre a empresa brasileira de capital nacional e as empresas estrangeiras.

No que se refere ao transporte marítimo decorrente de nosso comércio exterior, faz-se necessária a observação de que o governo brasileiro tem exaustivamente divulgado sua intenção de alcançar a marca dos US$ 200 bilhões até o final da década. O que representa dizer que teríamos, nesse caso, gastos superiores a 15 bilhões de dólares somente com o pagamento de fretes para transportar as mercadorias de nossa exportação caso o atual preceito constitucional de predominância de navios brasileiros e dos parceiros comerciais não for observado.

Pelo acima exposto, torna-se evidente o papel histórico que o Congresso Nacional está mais uma vez compulsoriamente convidado a desempenhar. De maneira ardilosa, forças estranhas aos interesses da nação brasileira articulam-se no sentido de enfraquecer o poder marítimo do Brasil, colocando em xeque sua soberania no transporte de mercadorias de seu interesse e pretendendo criar maiores facilidades para que o país perca por completo o controle estatal sobre a produção e o transporte do petróleo, principal fonte de energia do mundo.

O substitutivo à PEC 07-A, de autoria do deputado José Carlos Aleluia, apesar de constatar em sua exposição de motivos que a navegação de cabotagem e interior em nosso país requer, no mínimo, tratamento equânime ao da maioria das nações independentes e soberanas do mundo, opta por desconstitucionalizar o tema, remetendo-o para a legislação ordinária, ou seja, passando um cheque em branco para o governo e sua maioria parlamentar submissa decidirem assunto de tamanha gravidade com o uso de quorum privilegiado.

Na verdade, o substitutivo do Relator cria maiores facilidades para que o governo e os grupos econômicos que pressionam pela quebra do monopólio estatal da navegação de cabotagem e interior possam, em breve, criar as normas que querem para uma questão que envolve a independência e a soberania do Brasil.

Cabe ao Congresso Nacional dar uma resposta à altura a essa ameaça à nação brasileira e, a exemplo do que fazem as nações soberanas de todo o mundo, manter intocado o atual artigo 178 da Constituição brasileira, procedendo à sua urgente regulamentação.

Voto em separado

Ao longo das últimas semanas, tivemos oportunidade de ouvir os mais variados expositores e, muito embora constatando posições diferenciadas, pudemos observar que havia entre eles um denominador comum: reconhecimento da importância do transporte marítimo para uma nação.

O argumento de enxugamento do Texto Constitucional tantas vezes aqui invocado só convence ingênuos ou mal intencionados. Por que justamente num artigo de extrema importância para o país querem enxugar o texto? Por que remeter para a Lei Orgânica a possibilidade de escancararmos nosso transporte marítimo doméstico para outras nações? Por que optarmos pela dúvida quando já temos a certeza?

Diversos expositores afirmam que a eliminação do atual artigo 178 de nossa Constituição Federal em nada influirá no custo dos serviços portuários, na modernização da infra-estrutura portuária e, muito embora tenham aqui observado a tentativa de aliar uma questão a outra, ficou a certeza de que o artigo 178 da Constituição Federal não interfere, não atrapalha, nem ajuda a obtenção de uma estrutura portuária ágil, moderna e eficiente.

Em nosso entendimento, a proposta de Emenda Constitucional n. 07-A, se aprovada na forma proposta pelo Relator, fará com que o Brasil fique subjugado a interesses externos e, ao contrário da grande maioria das nações soberanas do mundo, tenha sua navegação de cabotagem e interior controlada por grupos econômicos internacionais, ficando ao sabor de seus interesses comerciais.

Pelo que aqui nos foi exposto, ficou a certeza de que o governo federal, muito antes de preocupar-se em retirar as garantias constitucionais de atividade marcante marinheira nacional, deveria esforçar-se no sentido de regulamentar o artigo 178 da Constituição.

Assim sendo, na defesa da soberania do Brasil sobre as atividades da navegação de cabotagem e interior, manifesto meu voto contrário ao parecer do Relator e pela manutenção do atual Texto Constitucional.
Socorro Gomes
Deputada federal, PCdoB-PA.

Voto em separado do deputado Inácio Arruda sobre o gás canalizado

O Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional Proposta de Emenda Constitucional que altera o Parágrafo 2º do artigo 25 da Constituição Federal, suprindo a expressão “a estatal, com exclusividade de distribuição”. A alteração proposta ao texto constitucional transfere do poder público para a iniciativa privada o monopólio da distribuição do gás canalizado sob o argumento de que “a crise fiscal do Estado […] limita a capacidade de investimento e expansão da oferta dos serviços públicos prestados à população, em particular o gás canalizado”.

Em verdade, tem sido sempre o mesmo argumento do Poder Executivo para “fundamentar” o conjunto de PECs enviadas ao Congresso alterando dispositivos da Constituição Federal referentes à ordem econômica: a incapacidade de investimentos do poder público. No caso da PEC n. 04, a justificativa, extremamente exígua, não apresenta um só dado demonstrando tal “incapacidade”. Desse modo, não há como saber qual o volume de gás consumido e quantos usuários existem no Brasil, quais as perspectivas de substituição de outros combustíveis pelo gás, qual o volume de recursos necessários ao sistema, qual a disponibilidade de recursos na iniciativa privada etc. Desse modo, deve-se louvar a iniciativa da Comissão Especial de realizar audiências públicas para ouvir representantes de diversos setores sobre a proposta governamental.

Na mensagem enviada ao Congresso, o Poder Executivo afirma que, na forma atual, o texto constitucional “confere virtual 'reserva de mercado' para as empresas estatais estaduais, regime não mais consentâneo com o processo de abertura e a necessidade de redução de preços e melhoria da qualidade de bens e serviços da Economia”. Trata-se aqui de uma série de inverdades, como demonstraremos em seguida.

Em primeiro lugar, não existe “reserva de mercado” para as empresas estatais estaduais pelo simples motivo de que não está vedada a participação, na distribuição de gás canalizado, da iniciativa privada que, inclusive, já participa como sócia de parte dos estados onde já foram constituídas empresas. E mais, tal participação pode chegar até a 82% das ações da empresa, como permite a chamada “Lei das Sociedades Anônimas”. Apesar disso, nem sempre houve interesse de empresas privadas em participar da constituição inicial das distribuidoras estaduais, como foi o caso da CEGÁS no estado do Ceará.

Ainda em relação à participação da iniciativa privada no setor, é importante ressaltar que, até fins da década de 1960, somente empresas privadas atuaram nos serviços de gás canalizado no Brasil. Somente após a falência dos sistemas privados em nove cidades brasileiras (Salvador, Recife, Fortaleza, Porto Alegre, Belém, Niterói, São Luiz, Santos e Taubaté) e com a perspectiva de colapso no fornecimento aos consumidores de São Paulo e Rio de Janeiro as empresas controladas pelo poder público passaram a atuar nesses estados.

Quanto à redução de preços através da privatização da distribuição, o exemplo da vizinha Argentina é bastante ilustrativo e demonstra, como em outras questões, que o caminho seguido não é nada aconselhável. Após obter um admirável desempenho no setor, aquele país privatizou a empresa GAS DEL ESTADO e dividiu o mercado entre oito companhias privadas. Rapidamente a tarifa média triplicou e os grandes consumidores foram privilegiados em detrimento dos de menor porte. O que demonstra também que a privatização não favorece a grande maioria da população com a melhoria da qualidade do serviço. A explicação é a natural tendência dos capitais privados de buscarem negócios de lucro certo em curto prazo. No caso do gás canalizado, somente os grandes consumidores asseguram lucro certo, enquanto a rede domiciliar, por não ser rentável, não atrai investimentos privados.

Busca também o Poder Executivo apoiar-se na “redução da interferência estatal nas atividades produtivas, de forma a liberar recursos públicos escassos para as funções precípuas do Estado, mormente no campo social”. Mais uma vez, os argumentos não se sustentam diante dos fatos. A experiência internacional, principalmente nos chamados países desenvolvidos, é justamente no sentido contrário ao que se pretende dar ao Brasil. Na Comunidade Européia, maior consumidora mundial de gás natural, países como França, Itália e Espanha, através das estatais GAZ DE FRANCE, ENI e ENAGAS, respectivamente, participam diretamente da distribuição e ainda exercem forte atividade de fiscalização e normatização. Agindo assim, os referidos países exercem funções precípuas do Estado, que é oferecer bem serviços eficientes e de boa qualidade à população, sem abandonar as funções sociais. No caso brasileiro, a privatização de estatais, sob o argumento de “liberar o Estado para melhor exercer sua função social”, mesmo tendo trocado empresas como a CSN, a USIMINAS, a EMBRAER e outras por “moedas podres”, não trouxe nenhuma melhoria no atendimento às necessidades sociais do povo brasileiro.

Voto em separado

Pelas razões acima expostas e considerando que a PEC n. 04 faz parte de um conjunto de propostas que submetem o Brasil aos interesses de grandes grupos empresariais, em especial ligados ao capital estrangeiro, sendo portanto um grave atentado à soberania nacional, voto pela rejeição da proposta governamental e pela manutenção do texto atual do Parágrafo 2º, do artigo 25 da Constituição Federal.

Inácio Arruda
Deputado federal, PCdoB-CE.

EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 24, 25, 26, 27, 28