Com a simplicidade de estilo e profundidade de análise que lhes são característicos, Norberto Bobbio acaba de nos propiciar uma brilhante afirmação da persistente e renovada atualidade da dicotomia entre esquerda e direita no mundo contemporâneo. Contra as apressadas e superficiais proclamações em contrário, o pensador italiano mostra, com lucidez, como visões dicotômicas emergem necessariamente de situações de contradição e conflito. Como estas não desapareceram junto com o “campo socialista” em 1989 – até se agravaram –, a polarização direita x esquerda continua sendo estruturadora de posicionamentos fundamentais diante de dilemas e desafios que nos são postos por uma história que teima em não chegar ao fim.

A distinção entre “direita” e “esquerda” não passa, é claro, de metáfora espacial. Mas, de mera localização fortuita da disposição dos Estados-gerais na França às vésperas da Revolução de 1789, ela adquiriu uma conotação motivadora e significante para os principais atores políticos do últimos dois séculos. Numa análise que se pretenda isenta de juízo de valores (algo que, sinceramente, me parece impossível), Bobbio localiza na postura diante do princípio da igualdade a “alma” da diferença entre os dois alinhamentos – a esquerda tendente a valorizar (e, portanto, a buscar meios de maximizar) o que é igual entre os seres humanos; a direita, a sua diversidade. Se olharmos mais fundo, no entanto, veremos na “alma” dessa “alma” a oposição entre humanismo e anti-humanismo, ou ainda entre universalismo e antiuniversalismo. Por isso o resgate da validade da dicotomia esquerda versus direita – com o qual estou de acordo – implica igualmente, um posicionamento crítico em relação ao particularismo pós-moderno tão em voga na atualidade.

O meu endosso da tese fundamental de Bobbio não exclui, no entanto, alguns reparos. Parece-me que o pensador italiano não compreendeu a solução original dada ao problema de Marx – a de propor combater uma desigualdade pela afirmação de outra (fim das desigualdades de classe para permitir o florescimento de desigualdades e diferenças individuais naturais) – confundindo-a com mero igualitarismo. Da mesma maneira, sua complementação da dicotomia de direita-esquerda pela díade de liberdade-autoridade me pareceu problemática, pois se baseia em uma identificação exclusiva da liberdade com o liberalismo e da democracia com democracia liberal, desqualificando qualquer oposição a estes como “extremismo”. Por fim, seria necessário identificar os contornos concretos assumidos por essa polarização nas realidades brasileira e latino-americana. Aqui, alguns temas tradicionalmente vinculados à direita na Europa e nos Estados Unidos – por exemplo, a defesa da identidade e soberania nacionais – são hoje patrimônio programático da esquerda. Em relação a isso, a leitura do primeiro capítulo de Utopia desarmada, de Jorge Castañeda, pode servir de bom complemento a Bobbio.

Nada disso altera, no entanto, minha apreciação fundamental do livro: trata-se de obra atualíssima, de leitura obrigatória para todos os interessados na política e seus dilemas. E, por falar nisso, na sua opinião, caro(a) leitor(a), o governo Fernando Henrique é de direita ou de esquerda?