A IV Conferência sobre a mulher, a realizar-se em Beijing, em setembro de 1995, insere-se no conjunto de Conferências Mundiais promovidas pelas Nações Unidas nesta década, com o objetivo de buscar uma reorganização no mundo no período pós-Guerra Fria, tendo como foco os chamados “temas globais”, de interesse para toda a humanidade. O conjunto de eventos se iniciou com a Conferência sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, em 1992; incluiu a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, em 1993; abarcará a Conferência sobre População, em 1994; a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social em Copenhague, em 1995; e irá até a Conferência sobre Assentamentos Humanos, em Istambul, em 1996. Como país atuante na esfera internacional, particularmente interessado nos temas enfocados, em função das nossas dificuldades internas, o Brasil deve preparar-se adequadamente para participar desses eventos. E a elaboração de relatórios sobre a situação nacional é o primeiro passo nesse sentido, conforme recomendação da própria ONU, para quase todas as Conferências*.

Ministro José Augusto Lindgren Alves, chefe da Divisão das Nações Unidas do Ministério das Relações Exteriores

As palavras do ministro, proferidas em março de 1994, retratam a imagem fiel da realidade. Atualmente as Conferências da ONU são espaços privilegiados de elaboração de novos instrumentos governamentais para a ação política de âmbito mundial.

Dizer que as resoluções desses fóruns, aprovadas por unanimidade, são recomendações que o governo do sistema ONU poderão seguir ou não, ou que só serão acatadas desde que não firam suas leis nacionais e sua soberania, é mera figura teórica. Basta lembrar que tais orientações estão “amarradas” à concessão de financiamentos para a execução de políticas públicas, sugeridas pelas conferências, e se reportam também aos empréstimos em geral, à relação da dívida externa e, ao fim e ao cabo, tudo isso integra o que se conhece hoje como ajuste estrutural. De fato tudo se faz para incrementar o receituário dos poderosos senhores encastelados nas instituições de Bretton Woods – Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM e Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT).

A novidade aqui é perceber que a ONU é uma instância de poder supranacional, que tende a se tornar mais e poderosa, sob a ótica de um mundo unipolar. Isso é preocupante na medida em que a ONU tem tido uma prática de desconhecer os preceitos da democracia internacional. Nas suas instâncias decisórias, nem todos os países possuem o mesmo poder. O famoso Conselho de Segurança corriqueiramente ignora o objetivo central para o qual a ONU foi instituída: promover a paz, a justiça, a não agressão, a mediação dos conflitos, os direitos dos povos, a cooperação e as liberdades fundamentais. Seus organismos financeiros (FMI, BM), em vez de estabelecer a verdadeira “cooperação internacional”, adotam e induzem a uma prática de espoliação e saque dos povos e são co-responsáveis pelo aumento da fome, da pobreza e da miséria em todo o mundo!

Adquirindo consciência de tudo isso, qualquer pessoa – em pleno uso de suas faculdades mentais e de um mínimo de sentimento humanitário – tem dificuldades para acreditar que, por fazer denúncias da opressões, a ONU assuma sinceramente compromissos de combatê-las, e quais são suas verdadeiras intensões ao criticar com grande alarde os indicadores sociais de pauperização e miséria.
Sobretudo fica a pergunta e a ansiedade de descobrir quais os mais recônditos desejos desse governo “senhor do mundo” em relação ao destino dos povos.

Evidenciamos isso melhor quando analisamos o Programa de Ação resultante de qualquer um desses colóquios. São, à primeira vista, cartas de “boas intenções”, que constam de princípios gerais humanitários, envoltos em uma piedade piegas para com os oprimidos. Cada subtema enuncia os seus objetivos e medidas (planos de metas), além da alocação dos recursos financeiros necessários às “mudanças”. No entanto, as propostas de resolução dos problemas primam pela ambiguidade na maioria dos pontos, desse modo colocando a nu as contradições.

Os exemplos mais gritantes dessas ambiguidades são as “boas intensões” de conciliar: “alívio do pagamento da dívida externa com a implementação do ajuste estrutural com face humana”; e o “livre mercado com o desenvolvimento humano”.

Discutir temas globais, diagnosticar os problemas e propor soluções são tarefas que consomem muitos recursos e tempo dos organismos da ONU. Particularmente em relação à situação das mulheres, é preciso não desconhecer se essa tem sido uma instância internacional que empreendeu significativas gestões para dar visibilidade aos problemas por ela vivenciados, inclusive fazendo com que os governos reconhecessem oficialmente a opressão de gênero, e por inúmeros motivos tem se posicionado muito pelo empowerment (capacidade e poder social, econômico e político) das mulheres. No entanto, precisamos nos ater a um detalhe fundamental:

“[a ONU] não é um prolongamento do Movimento de Mulheres, nem uma aliada natural das mulheres, mas um centro de poder para onde confluem principalmente os mesmos governos que pouco ou quase nada têm feito para promover a igualdade entre os gêneros em seus respectivos países” (1).

Mas o que chama a nossa atenção é que a ONU, ao mesmo tempo em que infringe as regras da convivência democrática internacional entre as nações, insiste em assegurar o “processo democrático” de suas conferências para o movimento social, alocando recursos financeiros e humanos para garantir as conferências paralelas locais, regionais e mundiais e exigindo, como condição fundamental, que os governos se empenhem para estabelecer o diálogo com a sociedade.

Mais importante ainda é descobrir que o chamado “processo democrático” do sistema Nações Unidas possui uma conceituação nova e sui generis. Aqui entende-se como a fênix pode renascer das cinzas: enfraquece-se o poder de definição de prioridades e de decisão dos governos nacionais e promete-se poder de algumas definições, e até decisão, ao movimento social, através do aceno de uma democracia sem intermediários, diálogo direto governo e povo, negociação face a face, parceria. Tudo isso pode ser sintetizado em uma inocente terminologia: participação popular!
Segundo Carlos Guerra Rodríguez (2):

“(…) até governos autoritários (ainda que nem todos da mesma forma) têm considerado a participação como um conjunto de técnicas que legitimam seu poder e permitem a expressão controlada (o grifo é nosso) dos sentimentos populares, uma vez que eliminam os canais independentes e de organização e da representação”.

De acordo com Wolfe (1991, citado por Rodriguez), a participação popular só é vista como “o ingrediente que faltava” e é um recurso, o recurso por excelência, da receita neoliberal. Aliás, disso ninguém mais duvida.

Na prática, existem sérias distorções no “processo democrático” da ONU. Vejamos algumas. Superestimam-se as expectativas de participação popular, massageia-se o ego e “facilita-se” tudo, inclusive a organização, através de investimentos financeiros, durante algum tempo. “Apóia-se”, dessa maneira o surgimento de pressão popular organizada! Em resposta, engendram-se “políticas públicas compensatórias” (e o nome já diz tudo!) que deverão ser implantadas e implementadas em regime de co-gestão. Desse modo, aposta-se neste tipo de “participação popular” como uma forma de aliviar e até libertar o Estado se suas funções sociais.

E sobre isso é emblemática uma fala recente do presidente Fernando Henrique Cardoso: “Nós não podemos repetir sempre a mesma história de ter uma visão de Estado quase imperial ao se relacionar com os outros Estados. Você veja hoje a questão das ONGs (Organizações não Governamentais). É uma questão delicadíssima. Existe uma forte demanda das ONGs no Banco Mundial, no Banco Interamericano de desenvolvimento, para que elas sejam informadas do que está acontecendo. O Brasil é contra sistematicamente porque o Estado brasileiro não quer ver diminuído o seu poder de decisão.

Eu acho que não se trata de diminuir esse poder, mas de se repensar o Estado em função de uma sociedade civil que conseguiu se organizar mais. Eu ouvi um neologismo naquela reunião que nós fizemos em Brasília, criado pelo Casttels [Manuel Castells, sociólogo espanhol]: ele chamou as ONGs de Organizações Neogovernamentais. É um bom neologismo. Porque é o que elas são. Elas pensaram que eram outra coisa, mas agora é isso que elas são. Esse é um fato novo, que tem que ser incorporado à nova visão de mundo. O Estado hoje não é um organismo fechado, ele está penetrado por setores da sociedade civil” (3).

Precisamos nos deter mais sobre o papel das ONGs no diálogo com a ONU e outros organismos internacionais de “cooperação financeira”, pois vai ficando evidente que, se elas realmente se dispuserem a cumprir o papel de Organizações Neogovernamentais, consolidarão o papel que muitas delas já desempenham, na prática são canais que “atravessam” o movimento social e intermedeiam os conflitos de classe, ao eleger a luta no campo da superestrutura como única e ao aceitar ser essa “pressão popular” “fabricada” para parceria com o Estado, assumindo assim tarefas da alçada do governo.

O Estado cada vez menor e liberto de sua obrigações, em detrimento da justiça e da seguridade social, suplanta o livre arbítrio de suas cidadãs e seus cidadãos, a autonomia do movimento social, e passa a ser fomentador da auto-ajuda, da solidariedade, da busca de equidade com participação (o compartilhar da desigualdade social, da pobreza), e assim chega-se ao “fundo do poço” do figurino neoliberal, situação em que a cidadania propositiva/participativa – a participação – “não perturba a distribuição de poder e de riqueza existentes” (4) e legitima o sistema cruel e excludente de exploração e todas as formas de opressão.

A defesa do Estado mínimo é feita às escâncaras por algumas ONGs, sob o argumento de que “quem lutou pela democracia tem a obrigação de construir a cidadania com o seu suor e parceria”. Alegam ser “politicamente incorreto”, além de “antiético”, fugir do “compromisso” de substituir o Estado. Diga-se de passagem que esse tipo de parceria nada mais é que “o dever” de desobrigar o Estado com o cumprimento de suas funções sociais, da atenção que ele não pode mais oferecer, porque o ajuste exige que ele tenha mínimo, “gaste” pouco e , em contrapartida, explore ao máximo e poupe, até as raízes da insanidade, para poder juntar dinheiro para sustentar os seus credores: os países ricos.

Esse raciocínio indica duas coisas: ou é um puro e inocente plágio, ou é a aplicação ao pé da letra da política de certo presidente norte-americano (acho que Kennedy): “Não perguntem o que os Estados Unidos podem fazer por você, mas o que você pode fazer pelos Estados Unidos”.

Esse é o jogo da ONU, milimetricamente controlado pelos países imperialistas. Temos de dar a mão à palmatória: é uma nova e inteligente modalidade de fazer política! E tem se mostrado muito eficiente, sobretudo para fazer com que o movimento social não respire entre uma agenda internacional e outra, a ponto de estar sempre “correndo atrás do prejuízo” e não ter tempo de atuar em prol de suas verdadeiras necessidades estratégicas.

Por outro lado, cabe ressaltar que nem tudo está perdido, apesar da visão panorâmica de terra atrasada, embora os documentos finais dessas conferência expressem, abertamente, uma política normatizada pela ética “de que estamos todos no mesmo barco e devemos sobreviver ou morrer juntos!”. O compromisso do sistema ONU é com a Paz Social; logo, o conteúdo básico é o de emperrar as mudanças. Mas é nesse lema conflituoso de Paz Social que estão contidas as brechas, os respiradouros para uma ação política antiimperialista, antiopressora.

Um bom exemplo dessa afirmação é o caso do Brasil nas preparatórias para o Cairo e agora rumo a Pequim. Na presença de um movimento feminista e de uma intelectualidade temperados na luta contra a ditadura militar e pelas liberdades democráticas, o diálogo entre governo e sociedade transcorreu em clima de respeito mútuo e muita negociação, além do que o Itamaraty foi muito sensível às proposições mais avançadas em relação às questões da Conferência de População, a ponto de – apesar das solicitações da Santa Sé para que o governo do Brasil adotasse

O que é a ONU

A ONU é um organismo intergovernamental de caráter mundial, criado em 26 de junho de 1945 com o aval de 51 países, com o objetivo de manter a paz e a segurança internacionais. A sua atuação deveria se pautar pela cooperação no campo da saúde, finanças, cultura, transporte, comunicação e informação meteorológica. Atualmente 182 países são membros da ONU. Esta organização é dirigida por representantes dos governos filiados. Funciona através de organismos especiais e atua através de agências específicas. São órgãos especiais da ONU:

– Assembléia Geral, na qual até cinco representantes equivalem a um voto;
– Conselho de Segurança, composto por quinze membros, dos quais cinco são permanentes: Estados Unidos, Rússia, França, China e Grã-Bretanha;
– Conselho Econômico e Social, que conta com 23 membros, com mandatos de cinco anos; este órgão atua através de agências regionais: CEPAL (América Latina), ECE (Europa), ECAFE (Ásia e Extremo Oriente) e CEA (África);
– Conselho de Tutela;
– Corte Internacional de Justiça, coordenada por uma Secretária, cujo secretário- geral é indicado pela Assembléia Geral.
– O orçamento da ONU é oriundo da contribuição dos países-membros, cuja cotação mínima é 0,04%. Os Estados Unidos têm contribuído com até mais de 1/3 do orçamento. posturas “religiosas” – as negociações e os acordos com o movimento social e a intelectualidade já estarem em tal estágio avançados que não havia mais como retroceder.

Nesse período rumo a Pequim, as relações continuam em clima de cordialidade. Não se sabe se o governo brasileiro (ou a ONU) disse qualquer coisa quando nós, as feministas, repudiamos, em evento nacional (Rio, janeiro de 1994), a atitude intervencionista da USAID de querer “bancar” a preparatória e a ida das mulheres brasileiras a Pequim. E o fizemos como uma demonstração de repúdio ao imperialismo e em memória de nossas heroínas e heróis da luta contra a ditadura militar financiada pela USAID. Começamos a preparar Pequim em grande estilo: fazendo política de resistência.

As feministas estão dando “o tom”, até agora, nos eventos oficiais e paralelos, inclusive como consultores e participantes dos oficiais. Em Mar del Plata, o Itamaraty prestigiou muito as propostas feministas. Um espanto! A continuar assim, só falta mesmo o Brasil se rebelar contra o Consenso de Washington (como sonhar é de graça…).
Temos de entender que a cordialidade e o respeito, nessas relações em curso no Brasil, não acontecem em todo o mundo.

A primeira geração planetária

Saber utilizar esse respiradouros a favor da justiça social (e não da Paz Social) é um grande desafio do momento para as forças políticas comprometidas com as causas populares e democráticas. Na busca da Paz Social, os países pobres pressionam os países ricos por maiores e mais facilitados financiamentos, e têm conseguido algumas vitórias. É sob a ameaça de explosão social que a sociedade civil tem sido ouvida pelos governos locais e incluído suas reivindicações nos considerandos, nos princípios e até nas metas dos documentos finais da ONU. São êxitos consideráveis, embora pontuais, que, mesmo não revertendo de imediato em mudanças substanciais na qualidade de vida dos povos, transformam-se em bandeiras e direitos universais dos oprimidos e podem ser pontos de aglutinação para as lutas mais avançadas.

No fundo, trata-se de um jogo perigoso para ambos os lados. Pode cooptar e desarmar grande parte das(os) lutadores(as) do povo, mas o reverso é que pode tornar-se um desestabilizador do status quo, na medida em que, para conter a pressão social, a contrapressão dos governos consiste em ceder espaços que possibilitam o controle social dos seus Planos de Ação (monitoramento). E monitoramento, se bem compreendido politicamente, não poderá, indefinidamente, significar parceria acrítica. Ao ceder no monitoramento, os governos passam a andar “no fio da navalha”.
Antes de avançar mais nesta análise inicial, superficial e panorâmica, lembremos:

“Somos a primeira geração planetária. Somos as(os) primeiras(os) a viver, diariamente, a globalização da economia, da comunicação, da cultura, das finanças, da depredação do meio ambiente, o incremento da pobreza. O fim do século está nos alcançando com um governo mundial quase anônimo – as redes financeiras mundiais –, autocrático, desprovido de responsabilidades sociais e de mecanismos de controle (…) Compartilhamos muitas coisas, tais como uma possibilidade de articular redes reivindicatórias de direitos universais. Compartilhamos também a feminização da pobreza, o recorde do desemprego e do subemprego, as novas formas de discriminação de gênero, as altas taxas de mortalidade por razões reprodutivas; e a violência crescendo vertiginosamente (…) abre a necessidade de refletirmos sobre qual o contexto em que serão aplicados os “planos de ação” que os governos e as ONGs estão elaborando para consolidar a igualdade entre os gêneros na próxima década. Devemos formular questionamentos relativos aos efeitos que terão as atuais políticas mundiais sobre as mulheres, a fim de que possamos apresentar propostas que ultrapassem o retórico” (5).

Considerando essa realidade, é possível afirmar que, conforme o contexto que está sendo imposto a nós, talvez não estejamos fazendo toda a política que precisamos fazer.

Esta situação traz também muitas indagações. Por exemplo: por que o movimento social deve e precisa participar destas conferências, se “de cara” elas objetivam criar instrumentos destinados a promover a Paz Social e a postergar o enfrentamento com as forças opressoras? As forças políticas consequentes não deveriam renegar esse processos, denunciá-los, desmascará-los e jamais participar deles?

Estas perguntas são procedentes, em especial porque tais programas de ação dessas conferências e as políticas públicas propostas se detêm, exclusivamente, nas manifestações externas das questões. No entanto, “devemos fazer política de acordo com as circunstâncias” – um ensinamento clássico do marxismo que parece andar muito esquecido. Parece que os movimentos sociais – em particular os menos tradicionais, como o feminista e o ecológico –, embora ainda não dominem bem a sua aplicação, conseguiram extrair muitas lições desse ensinamento.

É de uma sabedoria profunda e de uma sagacidade admirável a ONU garantir os Fóruns Paralelos às Conferências Oficiais. Antes de mais nada porque, ao negociar diretamente com o movimento social, se credencia como uma interlocutora qualificada e como parceria confiável para as massas em luta. Assim aplica bem sua política de conciliação de classes.

Acredito que esses assuntos mereçam muitas outras indagações e reflexões. As apresentadas aqui são ainda bem iniciais, no entanto, muito elucidativo, e serão melhor visualizadas conhecendo-se a trajetória das mulheres nesses fóruns, posto que elas são as atrizes sociais com maior acúmulo de experiências com o sistema Nações Unidas, quer no enfrentamento, quer na parceria igualitária ou de cooptação.

O exemplo e o aprendizado das mulheres

As mulheres, no plano internacional, têm respondido com muita mobilização e presença aos debates colocados pela ONU. Hoje constituem o setor da sociedade que mais vitórias tem conseguido, e tem travado muitas lutas com o sistema Nações Unidas. Foi assim na ECO 92, na Conferência do Cairo e nas Conferências sobre a Mulher, e ficam lições muito enriquecedoras (vide box “Conferências das Nações Unidas para a Mulher”).

As mulheres estiveram presentes nas preparatórias locais, regionais e em todas as Conferências Mundiais dos anos 1990 – Rio, Viena, Cairo, Copenhague, Pequim, Istambul –, nos fóruns paralelos e nos oficiais. Têm também se destacado muito como força de pressão qualificada e respeitada, com um poder de negociação que a ONU está aprendendo a não subestimar, desde que tomaram de assalto a ECO 92, polemizando as hediondas formulações de que “existem úteros antiecológicos” (das pobres, das pretas) que produzem poluição (população supérflua); seres predadores da natureza exaurem os recursos naturais não renováveis; “há gente demais” e “no planeta não cabe mais gente”. O Movimento Feminista conseguiu aglutinar muitos outros movimentos e governos (sobretudo do Grupo dos 77) em torno da idéia de que no capitalismo é que não cabia mais gente. Ao politizar a defesa do Planeta, as mulheres tornaram-se perigosíssimas!

Salta aos olhos que a “massa de manobra” que a ONU pretendia ter à sua disposição não é facilmente manobrável. Essa é a razão das muitas cunhas vitoriosas que as mulheres têm colocado nas intensões nefastas desse “governo mundial”. E a ONU não tem descuidado de admitir e respeitar a força das mulheres organizadas e tem privilegiado a interlocução com elas.

A agenda de Washington é contra a agenda das mulheres

As participantes dos vários e concorridos debates sobre ajuste estrutural, realizados no Fórum de ONGs da América Latina e do Caribe (Mar del Plata, Argentina, setembro de 1994), preparatório para a IV Conferência Mundial de Mulheres, saíram de lá convencidas de que a agenda de Washington é contra a agenda das mulheres. E não poderia ser diferente.

Entendendo-se a lógica do Consenso de Washington, percebe-se haver uma tentativa de eternização da relação de dependência econômica e de subordinação política dos países pobres aos países ricos, e sobra para as mulheres “a responsabilidade de paliar a crescente deterioração econômica, social e política no contexto da escassez de recursos e falta de poder” (6).

Fica explícito também que a ênfase nas políticas públicas compensatórias tem muito de enganação, mesmo lembrando que elas objetivam “compensar” a espoliação

Ação institucional governamental voltada para a mulher

Data do começo do século e corresponde, sempre, a uma resposta dos governos à pressão do movimento organizado das mulheres.

Período pré-ONU

A Convenção de Haia, em 1902, elaborou e aprovou leis sobre o casamento, o divórcio e a guarda dos filhos. Em 1904 e em 1910 formou celebradas convenções que "suprimiram" o tráfico de mulheres e crianças. Mas foi o governo da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, o primeiro do mundo a conferir igualdade de direitos para as mulheres; e a Rússia foi o primeiro país a realizar políticas públicas, visando implementar a igualdade de fato. Podemos afirmar que a Revolução de Outubro deu visibilidade às reivindicações femininas no mundo e que as conquistas das mulheres na ex-União Soviética obrigaram os países capitalistas a "ceder" às exigências femininas, na questão do voto em particular, pois quando se instalou o governo socialista na Rússia apenas uma dezena de países havia legalizado o voto feminino.

Em 1923 a V Conferência dos Estados Americanos aprovou a recomendação de um estudo que visava assegurar a plenitude dos direitos civis. e políticos para as mulheres. Em 1928, em Havana, foi criada a Comissão Interamericana de Mulheres. Em 1933 foi elaborada a I Convenção sobre as Mulheres Casadas.

A XVI Assembléia da Liga das Nações (1935) discutiu a condição feminina em relação aos direitos civis e políticos. O direito ao voto foi um tema relevante, ao lado do direito de propriedade, direito ao trabalho, fixação de residência e guarda dos filhos. Esta assembléia indicou ainda a realização de uma pesquisa sobre a situação das mulheres que abordasse o direito público, civil e penal. Tal estudo não foi concluído por causa da Segunda Guerra Mundial.
Em 1938 a IX Conferência Internacional dos Estados Americanos adotou duas convenções sobre direitos civis e políticos (Bogotá).

A ação da ONU

Quando da criação da ONU, em 1945, a Assembléia Geral recomendou que os países-membros deveriam garantir às mulheres os mesmos direitos dos homens, visto que dos 51 países fundadores apenas a metade garantia estes direitos. Em junho de 1946 foi criada a Comissão sobre o Status da Mulher.

Em 1952 foi elaborada a Convenção sobre Direitos Políticos da Mulher. Em 1970, na 30ª Assembléia Geral, a Comissão sobre o Status da Mulher apresentou um Programa de Ação Combinada, objetivando a total integração da mulher no desenvolvimento. Em 1972 a Assembléia Geral declarou 1975 como o Ano Internacional da Mulher, elaborou a Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação à Mulher e indicou a realização da I Conferência Mundial sobre a Mulher, com o objetivo de buscar a igualdade e a participação da mulher na vida social e política. do ajuste estrutural, ou seja, eles sabem que estão degradando, ao máximo, as condições de vida do povo, e tentam abafar os conflitos! Apesar de aprovar, assinar e juramentar “apoio” para a capacitação e o aumento da autodeterminação das mulheres (empowerment), os governos têm feito pouquíssimo, e só o fazem sob pressão cerrada das mulheres organizadas.

Diante da constatação de que um punhado de políticos e de tecnocratas pode decretar a nossa fome, o subemprego, o desemprego e a feminização da pobreza, e de que os governos dos países pobres e em desenvolvimento dizem amém a isso, já não basta mais pressionar apenas esse governos. É preciso encarar a ONU como um espaço merecedor de pressão sem tréguas. Mas será ela um “governo planetário”, com o qual podemos também dialogar e até negociar, quando for possível, e que responda aos nossos anseios? Ao reconhecer a interlocução direta com a ONU, de certo modo não enfraquecemos os governos nacionais e não conferimos à ONU o poder de governo mundial?

A grande pergunta que fica no ar é se adianta alguma coisa (e o que adianta) nos debruçarmos a realizar diagnósticos sobre a nossa situação (velha conhecida de todos os governos e da ONU), propor saídas, se a política de Washington e seus prepostos (nossos governos) dificultam cada detalhe da nossa luta pela sobrevivência.

Para que servem mesmo os nossos documentos e os de nossos governos? Para que servem os inúmeros acordos e tratados, assinados por quase todos os países com o objetivo de aliviar a opressão das mulheres, se eles não têm priorizado essa política, e nossa vida na prática não tem se tornado melhor?

É certo que incluir nossas reivindicações em documentos internacionais pode não se traduzir de imediato, e nem em médio prazo, em mudanças de nossas vidas. É provável que entre a “intenção e o gesto” haja muitas diferenças – uma delas é o Consenso de Washington –, mas… podemos construir bandeiras universais e reforçar a solidariedade feminista internacional, e isso talvez fortaleça muito nossas lutas. Mas é inegável que assim tornamos mais visíveis nossas denúncias e reivindicações. De um lado, forçamos a ONU a adotar um discurso mais realista, de outro, temos oportunidade de intercambiar com as mulheres do mundo inteiro, trocar experiências, unificar nossas bandeiras, nossas lutas… E isso não é importante?

A questão racial na mira da ONU

Comenta-se que a ONU convocará duas Conferências Mundiais antes do ano 2000. Uma sobre as migrações e a outra sobre o racismo – questões com dinâmicas peculiares, embora o fator “classe” consiga interligá-las em profundidade, e que constituem temáticas globais, potencialmente explosivas, em fase de recrudescimento.

Essas conferências devem merecer, do governo e do povo brasileiro, atenção redobrada; a conferência sobre o racismo, em especial, é a grande oportunidade para os militantes demonstrarem seu grande poder de articulação política, inclusive interna.

Avalio que o Movimento Negro brasileiro enfrentará entraves, lutas e dissensões para caminhar o processo preparatório. Em primeiro lugar porque jamais participou em bloco de outras conferências, e aqui o “fator inexperiência” e a pouca inserção internacional poderão dificultar as discussões necessárias, sobretudo porque as conferências dos anos 1990 assemelham-se a uma bola de neve que não pára de crescer. Cada nova conferência engloba tudo das anteriores. Isso significa que precisamos conhecer tudo o que já foi decidido nesses fóruns, além de ter uma visão crítica do papel da ONU e de suas conferências no palco mundial dos conflitos em geral. Em segundo, porque os temas ditos globais ainda não fazem parte da agenda do Movimento Negro brasileiro, além do que existem setores que vinculam a sua "autonomia” à decisão de não dialogar com “governos brancos”.

O preocupante em tudo isso é que, se o Movimento Negro brasileiro não se dispuser a participar “prá valer” – preparando-se desde já –, corre o risco de optar por fazer uma política parcial e local, fora do curso das grandes lutas políticas. E isso adiantará o que, e para quem?

* Médica do Programa de Saúde Escolar do SESI-SP, assistente do programa Saúde Reprodutiva da Mulher Negra, do CEBRAP, diretora da União Popular de Mulheres do Estado de São Paulo (UPMESP) e autora do livro Engenharia genética: o sétimo dia da criação.
** Entrevista concedida ao Voar é Preciso, boletim informativo do Conselho Estadual da Comissão feminina, São Paulo, p. 5. José Augusto Lindgren Alves é autor de Os direitos humanos como tema global, São Paulo, Perspectiva, 1994. Conferências da Nações Unidas para a Mulher (7)

México, 1975 – Na Assembléia Geral das Nações Unidas ficou designado o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher. De 16 de junho a 02 de julho houve a I Conferência sobre a Mulher na cidade do México. Os principais tratados foram: Igualdade, Desenvolvimento e Paz. Duas(dois) mil delegadas(os) governamentais produziram dois documentos:
1. Declaração do México sobre Igualdade da Mulher e a sua Contribuição para o Desenvolvimento e a Paz.
2. Plano Mundial de Ação para Implementação dos Objetivos do Ano Internacional da Mulher.
Em outubro de 1975 as Nações Unidas declararam os anos de 1976 a 1985 como a Década da Mulher.

Copenhague, 1980 – De 14 a 29 de julho de 1980, as Nações Unidas realizaram a II Conferência Mundial sobre a Mulher na cidade de Copenhague, na Dinamarca, com o objetivo de avaliar os progressos obtidos desde a I Conferência e traçar ações para a segunda metade da Década da Mulher.
A Conferência das Nações Unidas para a Década da Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e paz incorporou três subtemas à agenda: educação, emprego e saúde. O documento final resultou em um Programa de Ação para a Mulher.

Nairóbi, 1985 – De 15 a 26 de julho de 1985, as Nações Unidas convocaram a última Conferência Mundial sobre a Década da Mulher, que constitui a III Conferência Mundial sobre a Mulher. Abordou como temas principais igualdade, desenvolvimento e paz, e como subtemas educação, emprego e saúde. Duas(dois) mil delegadas(os) governamentais presentes procederam à revisão e avaliação das realizações da Década da Mulher. Foi elaborado e aprovado o documento Estratégias para o Progresso da Mulher para o Ano 2000.

Pequim, 1995 – De 4 a 15 de setembro de 1995, as Nações Unidas convocarão a IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz, em Pequim, China. Os documentos mais importantes a serem discutidos são:
1. Pesquisa Mundial sobre o Papel da Mulher no Desenvolvimento.
2. Plataforma de Ação.

Fóruns paralelos de ONGs
A proposta inicial de haver um Ano Internacional da Mulher foi feita pela Federação Democrática Internacional de Mulheres (FEDIM). As ONGs de Mulheres estiveram à frente de todas as atividades do Ano Internacional e da Década da Mulher.

México, 1975 – De 16 de junho a 2 de julho de 1975, na Cidade do México, 6.000 mulheres (e alguns homens) participaram da Tribuna do Ano Internacional da Mulher, encontro não governamental paralelo, organizado pelo Comitê de Planejamento de ONGs. Igualdade, desenvolvimento e paz foram o ponto focal das sessões plenárias diárias. Além disso, foram organizados workshops (100 planejados pelo comitê e 100 voluntários), para tratar de uma variedade de temas desde pequenos negócios da mulher rural até treinamento de mulheres astronautas. Para manter seu propósito original, a Tribuna do Ano Internacional da Mulher não publicou nenhuma declaração, entretanto abriu novas possibilidades de ação e fez com que surgissem novos programas e organizações.

Copenhague, 1980 – De 14 a 20 de julho de 1980, em Copenhague, simultaneamente à Conferência das Nações Unidas, reuniram-se 8.000 mulheres e alguns homens, em um Fórum Paralelo de ONGs. Discutiram os mesmos temas da Conferência Oficial e outros assuntos como: escravidão sexual da mulher, feminismo e salários. Este Fórum também não divulgou nenhum manifesto, mas contribuiu para um forte crescimento do movimento de mulheres e para o desenvolvimento de novas redes em todo o mundo.

Nairóbi, 1985 – De 10 a 19 de julho de 1985, o encontro paralelo à Conferência de Nairóbi foi o Fórum 85, que aconteceu na Universidade de Nairóbi, no Quênia. Quinze mil pessoas participaram de sessões plenárias, mais de 1.400 workshops e manifestações e discussões de grupos, que incluíram eventos especiais, como o Tech and Tools, um festival internacional de filmes e vídeos. Os temas tratados foram os mesmos da Conferência Oficial, mas foram enormemente expandidos para incluir assuntos como: mulher, lei e desenvolvimento; direitos das lésbicas; mulher nas artes e na música etc.
O Fórum 85 não produziu nenhum documento formal, mas estimulou novas organizações e redes, além de dar uma plataforma internacional para as perspectivas feministas e o acesso a uma grande variedade de assuntos.

Pequim, 1995 – No NGO Fórum, a se realizar entre 31 de agosto a 12 de setembro, aguarda-se a presença de, aproximadamente, de 30.000 mulheres.

Notas

(1) LEÓN, Irene. “Mulheres: agendas do movimento”, série Aportes para el debate, n. 2. Quito, Agencia Latinoamericana de Información (ALAI), area mujeres, setembro de 1994, p. 1 (editorial).
(2) RODRIGUEZ, Carlo Guerra. “Democracia Y participacion ciudadana: en busca de la equidad e de nuevos recursos?”, Revista Mejicana de Sociologia. México, Instituto de Investigacionaes Sociales, março de 1994, p. 191-204.
(3) Entrevista de FHC a Clóvis Rossi e Carlos Eduardo Lins da Silva, Caderno Mais, Folha de São Paulo, 18 de dezembro de 1994, p. 6.
(4) RODRIGUEZ, Carlo Guerra. “Democracia y participacion ciudadana: en busca de la equidad o de nuevos recursos?, Revista Mejicana de Socilologia, México, Instituto de Investigacionaes Sociales, março de 1994, p. 191-204
(5) LEÓN, Irene. “Mulheres: agendas do movimento”, série Aportes para el debate, n. 2. Quito, Agencia Latinoamericana de Información (ALAI), area mujeres, setembro de 1994, p. 1 ( editorial).
(6) LEÓN, Irene. Foro de ONGs de Mujeres: inventando o século XXI. Quito, Agencia Latinoamericana de Información (ALAI), Ano XVII, II Epoca, 23 de agosto de 1994, p. 1.
(7) Transcrito do texto Conferência das Nações Unidas para a Mulher, Pequim 1995, Fundo de desenvolvimento das Nações para a Mulher (UNIFEM), baseado na publicação do International Women’s Tribune Centre – 95 Preview, abril de 1993.

Bibliografia
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EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54