A maioria dos filmes exibidos nos cinemas ou na tevê tem imagens que não se fixam na retina — meio caminho andado para não chegar à memória do coração. Explico: quem vai se lembrar daqui a algum tempo de quantos árabes ou russos ou turcos mataram os brutamontes Arnold Schwarzenegger, Bruce Willis, Stalone ou Van Damme em seus filmes de ação? Mas felizmente, em meio às picaretagens hollywoodianas que chegam às telas, há sempre alguma coisa delicada e emocionante.

Um exemplo é O carteiro e o poeta, do diretor inglês Michael Radford, ainda em cartaz em alguns cinemas e já nas locadoras, em lançamento da Abril Video. A história é simples. Perseguido no Chile por motivos políticos, o poeta comunista Pablo Neruda (Philippe Noiret) chega à Itália em 1951. Recebido com festas em Roma, logo é confinado numa afastada ilha da costa napolitana.
Enquanto isso, o dono do correio, também um militante comunista, busca um carteiro alfabetizado e com bicicleta para fazer a entrega diária das cartas que chegavam de todas as partes do mundo para o ilustre exilado. Sem ocupação fixa,o filho de pescador Mário Ruoppolo (Mássimo Troisi) consegue o emprego. Pouco a pouco, o time do aprendiz de carteiro vai se aproximando do aparentemente inatingível poeta.

Em idas e vindas à casa de Neruda, começa a nascer uma sólida amizade entre o simplório carteiro e o escritor sofisticado. São dois mundos de culturas diferentes que se encontram frente a frente, iluminados por versos tocantes (“sucede que me canso de ser homem”), lirismo e humanismo. Cada vez mais, Mario aprende com o poeta para que serve a poesia e o significado das metáforas, penetrando, assim, no mundo das imagens luxuriantes e sensuais, com as quais busca conquistar o amor da bela e difícil Beatrice (Maria Gracia Ruccinota). Do trabalho no mar vem uma dessas imagens, inspirada na vida do pai pescador, que aparece no famoso livro de Neruda Vinte poemas de amor e uma canção desesperada: “inclinado nas tardes atiro minhas redes tristes em teus olhos oceânicos”.

Na verdade, a poesia transforma o carteiro Mario em um novo homem, capaz de dar lições de humanidade ao mestre, quando diz que “a poesia não pertence àqueles que escreveram, mas sim àqueles que precisam dela”. Descobre ainda, na compreensão das palavras, que a poesia pode ser um canal de ligação e união entre os homens. Quando Neruda parte de seu exílio, Mario, saudoso do amigo, usa um gravador para fazer o seu registro poético com os infinitos sons que brotam da ilha onde nasceu. É o marulhar das águas do Mediterrâneo, em ondas curtas e longas; o vento no cimo da ilhota roçando as folhas da vegetação; o coração de seu filho que vai se chamar Pablo, em homenagem ao poeta, ainda no ventre de Beatrice; ou as badaladas do sino da igreja, incluindo uma reclamação do pároco local.

Saí do cinema com um travo triste no peito, mas com esperança. A morte do carteiro pela repressão no comício em Roma, antes de ler um poema dedicado ao amigo Neruda, mostra que ele e muitos homens buscavam, como outros buscam hoje, o caminho certo em direção ao futuro.

O ator, o autor, o diretor e a personagem

Doente cardíaco crônico, Massimo Troisi morreu logo depois do termino das filmagens de O Carteiro e o poeta, em 1994, aos 41 anos. Grande comediante, foi ele quem praticamente comandou o projeto filme e, com olhos sempre arregalados, desempenhou seu papel à perfeição. Nascido em Nápoles. Troisi participou de dois melhores filmes de Ettore Scola: era o criado herói em A viagem do Capitão Tornado e o projetista do cinema em Splendor.

O filme é baseado num romance de Antonio Skarmeta, escritor chileno radicado em Berlim. No original, o livro chama-se Ardente paciência, uma referencia a um verso de Rimbaud citado por Neruda ao receber o Premio Nobel de Literatura em 1971: “Na aurora, armados de uma ardente paciência entraremos nas esplendidas cidades”. Na adaptação cinematográfica, a historia sofreu duas modificações. A ação se passa no Chile, na Isla Negra, e no filme, é transferência para o Sul da Itália, Roisi fez o carteiro com 40 anos e, no livro, a personagem era um rapaz de 14 anos.

Antes de dirigir O carteiro e o poeta, o diretor inglês Michael Radford já tinha três filmes em seu currículo: Another time, Another Place, Incontrolável paixão e 1984. Em entrevista aos jornais, ao ser indagado do motivo de seu interesse pela literatura, respondeu: “ Porque sou um homem instruído. Estou interessado em literatura e em seu poder. Ela é muito importante para todos nós. Foram feitos poucos filmes sobre o poder da literatura”.

“Embora eu tenha me tornado militante muito mais tarde no Chile (em 1945), quando indressei oficialmente no partido, creio ter-me definido como um comunista diante de mim mesmo e durante a Guerra Espanhola.”

Assim o poeta Pablo Neruda, em seu livro de memórias Confesso que vivi, explica a escolha de seu caminho político. Neruda nasceu em 12 de julho de 1904, na cidade chilena de Parral. Seu nome era Ricardo Elicier Neftali Reyes Bassoalto, e só aos 16 anos adotaria o pseudônimo que o tornaria famoso. Marxista e revolucionário, cantou as angustias da Espanha de 1936 e a condição dos povos latino-americanos e seus movimentos literários. Diplomata desde cedo, foi cônsul na Espanha e no México. Desenvolveu intensa vida política e publica, enquanto publicava obras como Espanha no coração, Terceira resistência. As uvas e o vento e Canto geral. Visitou o Brasil em 1945. “Fiquei surpreso quando vi a multidão que enchia o estádio Pacaembu, em São Paulo. A meu lado, Prestes, diminuto de estatura, pareceu-me em Lazaro recém- saído do Tumulo, elegante e correto para a ocasião (…) Li um poema em sua homenagem que escrevi poucas horas antes. (…) Apesar de meus temores, o poema lido em Espanha foi compreendido pela multidão. A cada linha de minha leitura pausada estalava o aplauso dos brasileiros. Aqueles aplausos tiveram profunda ressonância em minha poesia. Um poeta que Le seus versos diante de cento e trinta mil pessoas nunca mais será o mesmo, nem pode escrever da mesma maneira depois dessa experiência”, recordava o poeta. Indicado à presidência do Chile em 1969, renunciou em favor de Salvador Allende. Faleceu em 23 de Setembro de 1973 em Santiago, oito dias depois da queda do governo da Unidade Popular e da morte de Salvador Allende.

EDIÇÃO 42, AGO/SET/OUT, 1996, PÁGINAS 82