Como primeiro grande marco dessa luta, destacam-se as célebres conferências que o engenheiro Anhaia Mello, professor da Escola Politécnica de São Paulo, pronunciou no fim dos anos da década de 1920 no Instituto de Engenharia, introduzindo em nosso meio o correto balizamento doutrinário do conceito de serviços de utilidade pública.

Por essa época, a Light-São Paulo e a Light-Rio já estavam consolidadas no Brasil, dominando o eixo Rio-São Paulo. Além disso, uma subsidiária da American & Foreign Power, por sua vez, subsidiária da Bond and Share, já atuava no interior do estado de São Paulo, de onde se alastraria, alcançando várias capitais de outros estados.

Anhaia Mello fustigava diretamente essas empresas. Referindo-se ao suprimento de energia elétrica, doméstica e industrial, que devia ser barato e abundante, o que evidentemente não ocorria, citava um tratadista norte-americano (era a época do New Deal de Franklin Delano Roosevelt) segundo o qual, dada a função essencial da indústria elétrica. cabia ao Estado desempenhá-la. Com efeito, só o Estado podia respeitar a real natureza do serviço público; já a chamada livre iniciativa obedecia à motivação de lucro, não à de serviço, requerida no caso.

E havia ainda o aspecto econômico e financeiro dessas concessionárias, que integravam um complexo sistema internacional de supercorporações, estruturado com base em prodigiosos artifícios financeiros. Poderosas, defendiam seus lucros e tinham recursos para denegrir o Estado. A propósito, Anhaia Mello lembrava o aforismo segundo o qual as campanhas que se faziam contra a propriedade pública eram "a prova da força política das empresas e não da ineficiência dos governos". Esses princípios são acolhidos no Código de Águas, promulgado pelo decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934, que regulava o serviço de produção, transmissão e distribuição de energia elétrica no Brasil.

Esse texto legal determinava uma atenta fiscalização sobre o setor. Mas as empresas, apoiadas pelos seus aliados e prepostos, se rebelavam, inconformadas com a tentativa de imposição de disciplina. Principalmente se furtavam à tomada de contas por parte do poder público, consignada no artigo 182 do Código de Águas.

Nem por isso deixavam de obter vantagens e se expandir, pois a atividade não podia ser interrompida.
Contudo, apesar dos favores recebidos, os serviços prestados eram precários e de má qualidade.

Rosevelt: dada a função essencial da indústria elétrica cabe as Estado desempenhá-la

Tomemos o caso da Light, encarregada dos serviços de luz e força, transportes urbanos e telefones.
O déficit de telefones em São Paulo, que era de 20 mil em 1941, continuava crescendo, subindo para 40 mil, num total de 70 mil linhas instaladas em 1949.

No setor de energia elétrica havia déficit na capacidade das usinas geradoras e também faltava material para atender às extensões, tanto no consumo particular, como no concernente à iluminação pública. O consumo médio efetivo quase alcançava a capacidade de geração, deixando o fator de carga sempre muito alto e praticamente suprimindo a imprescindível capacidade ociosa.
A queda de voltagem já se tomava habitual, acarretando prejuízo aos usuários.

Como podia tudo, a Light-São Paulo obteve uma resolução que a premiava pelo mau serviço prestado: era autorizada a suspender certos tipos de ligação residencial e comercial, até que fosse estudada e aprovada uma tarifa mais alta, que induzisse os usuários a consumir menos energia… Instaurava-se o binômio escassez-aumento de tarifas.

Numa brochura de 1950 intitulada O racionamento da energia elétrica, o engenheiro Plínio Branco apontava a inversão completa das expectativas que provavelmente haviam norteado a concessão. De uma situação monopolista, cheia de favorecimentos, era lícito supor no mínimo um serviço eficiente como retorno. Uma vez que ocorria justamente o contrário, caracterizaVa-se, na verdade, um insólito "monopólio para não servir". E esse tipo de monopólio atuava nos pontos de entrada da região mais próspera e desenvolvida do País. Mas o que se podia esperar de uma subsidiária da Brazilian Traction, simples elo de uma rede de empresas operadoras, em cujo topo se encontravam os organismos financeiros dirigidos pelos J. P. Morgan e outros? A contradição entre os interesses das corporações e o progresso do nosso país eram cada vez mais evidentes.

A condenação do sistema de concessões era ponto pacífico na opinião pública esclarecida.
Na Assembléia Legislativa de São Paulo, o engenheiro Catullo Branco, então deputado pelo Partido Comunista, fizera em 19 de setembro de 1947 importante pronunciamento a esse respeito. Já em sua plataforma eleitoral havia defendido, entre outros pontos, a produção de energia elétrica abundante e barata e a incorporação ao Estado das companhias e "monopólios que entravam o progresso da nação". Uma vez eleito solicitava, coerente com esse programa, a desapropriação das usinas da Light, arrolando uma série de argumentos bem fundamentados e louvando-se nas teses de Anhaia Mello e outros.

Contudo as concessionárias sabiam que não havia condições políticas internas ou externas para a encampação. O que as preocupava era a garantia de recursos para a remessa de lucros, visto que as reservas cambiais do país, acumuladas durante a guerra, se haviam exaurido.
É nesse contexto que a Light se lança em uma nova e grande cartada, precavidamente endividando o Brasil em seu benefício.

Alegando falta de recursos, a Brazilian Traction, da qual era subsidiária, solicitava ao Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) um empréstimo de 90 milhões de dólares, que o Brasil deveria avalizar. Como instrumento de chantagem, interrompia as obras de um projeto em curso, que apresentava como imprescindível, apesar das severas críticas de técnicos abalizados.
Por essa época se desencadeava a luta contra o anteprojeto do Estatuto do Petróleo, que permitia concessões para pesquisa e lavra a empresas do cartel, contanto que se registrassem no país. Nessas condições, na temática da mobilização popular, era incluído o repúdio ao endosso do empréstimo da Light e assim a tramitação da matéria no Legislativo, iniciada em 1948, foi muito conturbada.

Um novo passo no enfrentamento com as concessionárias é dado pelo presidente Getúlio Vargas logo em seguida à criação da Petrobras. Em discurso pronunciado em Curitiba, no dia 20 de dezembro de 1953, o presidente acusava as empresas de eletricidade de já haver ganho muito no Brasil e de ter um capital realmente empregado em dólares ínfimo em comparação ao acúmulo em cruzeiros, os quais eram transformados em dólares "para emigrá-los ao estrangeiro, a título de dividendos". Além disso, o notório mau desempenho dos serviços retardava a expansão industrial do país. Tão grave era a situação que a hipótese da encampação não era descartada: "ou nós criamos fundos necessários para estabelecermos as bases da indústria da produção da energia elétrica nacional, ou teremos que encampar as empresas que não estão dando o resultado que desejamos".

Nesse mesmo discurso de Getúlio era anunciada a idéia da formação da Eletrobrás, nos moldes da Petrobras, recém-criada pela Lei 2004, de 3 de outubro de 1953: "Assim como foi criada a Petrobras, que está sendo montada a fim de fornecer recursos necessários para a extração do petróleo brasileiro, nós estamos elaborando, agora, uma companhia de eletricidade que deverá ser denominada Eletrobrás".

O Brasil estava então à beira do colapso em energia elétrica. O déficit era estimado em um milhão de quilowatts, o que configurava um estrangulamento intolerável. Já em meados de 1953, o governo remetera ao Congresso um projeto criando o Fundo Federal de Eletrificação, cuja importância seria ressaltada no discurso de Curitiba, em dezembro.

Em 10 de abril de 1954 era enviado ao Congresso o projeto criando a Eletrobrás (Centrais Elétricas Brasileiras S/A) gestora dos recursos da União a serem aplicados no setor.
Havia uma situação de fato determinada pela presença coatora das empresas concessionárias e a Assessoria Presidencial, conhecedora da força de que dispunham, foi extremamente cautelosa no diálogo com elas. Em vão lhes era explicado que o conjunto da proposta não lhes era desfavorável. pois provavelmente ficariam com a distribuição da energia grossa recebida das empresas oficiais, como de fato ocorreu. Na verdade, o que as corporações não queriam mesmo era a ingerência estatal, consubstanciada na direção orgânica de uma entidade como a Eletrobrás.

Pelo artigo 14 do projeto o governo permitia à Eletrobrás operar diretamente ou através de subsidiárias e empresas a que se associasse. E o parágrafo 4° desse artigo conferia à Eletrobrás a possibilidade de tomar ações dessas empresas, capitalizando-as portanto. O governo admitia, pois, colocar-se na defensiva.

Mas também o projeto da Petrobras, enviado à Câmara por Getúlio Vargas em fins de 1951 abrira o direito de participação na atividade petrolífera a quaisquer sociedades organizadas no país, independentemente de suas reais vinculações ao cartel. Tratava-se talvez de uma atitude excessivamente timorata, visto que no setor do petróleo, conforme sublinhara o general Horta Barbosa nas suas luminosas conferências de 1947, o país agia perfeitamente em tempo, por não haver ainda interesses criados. De qualquer forma, o avanço atingido pela opinião mobilizada, bem como os posteriores desdobramentos político-partidários durante o encaminhamento parlamentar do projeto, permitiram corrigir esse gravíssimo desvio de percurso e implantar o monopólio estatal do petróleo pela Lei 2004, de 1953.

No caso da energia elétrica, sendo óbvio que todas as razões – técnicas, legais e financeiras – apontavam para o controle sobre as concessionárias e o envio do projeto era respaldado por uma intensa campanha da opinião nesse sentido, os trustes, como eram chamados na época, não quiseram arriscar. Visto que mesmo a encampação só não se fazia por pressões políticas externas e internas e os interesses criados eram enormes, as empresas (escarmentadas pelo precedente da Petrobras) através dos seus porta-vozes nos órgãos de imprensa e no Legislativo, passaram a promover o maior alarido, afrontando o governo. Assim conseguiram que a criação da Eletrobrás, conforme se lê na carta-testamento, fosse "obstaculada até o desespero".

Descartada a Eletrobrás, o projeto que instituía o Fundo federal de Eletrificação se transformava na Lei n. 2.309, promulgada em 31 de agosto de 1954, uma semana apenas, portanto, após o 24 de agosto. Os recursos a arrecadar passariam a ser administrados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Embora parte do Fundo se destinasse exclusivamente aos empreendimentos estatais, a gestão do BNDE, que podia auxiliar as empresas privadas, permitia facilitar as coisas. Em suma, sem a Eletrobrás, a criação do Fundo, carreando novos recursos para o setor, passava a ser vista pelas concessionárias como um bom negócio.

No novo quadro partia-se para uma perspectiva de abundância de energia, gerada pelo Estado com os recursos do contribuinte e fornecida às companhias para a distribuírem. De fato, os principais beneficiários de Paulo Afonso, Três Marias e outros empreendimentos desse porte, seriam a Bond and Share e a Light, que ainda recebiam recursos para instalarem também geração própria, além de manter o controle de projetos que reputavam fundamentais.

Nas palavras do deputado federal Gabriel Passos, em discurso pronunciado na Câmara, na sessão de 30 de junho de 1958, as empresas concessionárias dos serviços de luz e energia já não queriam "mais saber do afanoso trabalho de criar a fonte de energia. Desejam apenas distribuir aquela energia que o governo, o capital brasileiro tem conseguido". O parasitismo era acintoso.

Além disso, mal grado os artifícios financeiros através dos quais se tomava cada vez mais prósperas, continuavam se queixando da pretensa exiguidade das tarifas e fazendo novas exigências.
Assim, em 1956, o Instituto de Engenharia promovera em São Paulo, de 9 a 13 de abril, a Semana de Debates sobre Energia Elétrica, à qual compareceram figuras exponenciais ligadas às empresas concessionárias, e que, com unanimidade, se definiram contra o "intervencionismo estatal". Defendiam, de modo geral, o ponto de vista de que cabia ao Estado, em qualquer setor, mobilizar recursos para a construção das grandes obras reclamadas pela necessidade de desenvolvimento do país; feito isso, porém, o empreendimento, qualquer que fosse, deveria ser transferido à iniciativa privada.

Como não podia deixar de ser, os participantes da Semana condenaram enfaticamente a ingerência do Estado no setor de energia elétrica. Regozijavam-se, contudo, com a criação do Fundo Federal de Eletrificação e esperavam do governo, agora que já dispunha de amplos recursos, assistência imediata aos interesses das empresas concessionárias. Quanto à Eletrobrás, simplesmente a descartavam: era-lhes intolerável a idéia de uma direção orgânica, exerci da por uma empresa estatal. (A Eletrobrás só viria a ser criada em 1961). Também não faltaram os habituais ataques ao Código de Águas (que descumpriam) e queixas quanto à exiguidade das tarifas. O senhor Otavio Bulhões, um dos expositores, referiu-se jocosamente à relutância de ministros da Viação em conceder aumento de tarifas designando-a como populismo, no sentido de temor à impopularidade…

Em última análise, pretendiam: plena liberdade na obtenção de lucros, através da fixação do que chamavam de "tarifas realistas", garantida pela modificação do Código de Águas; e também a consolidação de uma coexistência entre a iniciativa privada e as atividades do governo, que lhes permitisse, com segurança, projetar as usinas e linhas de transmissão de acordo com seus interesses.

Com os representantes do setor de eletricidade ocupando postos-chave na administração, essas teses foram ganhando força e as conclusões da Semana de Engenharia passaram a ser invocadas inclusive como argumento para a proposta de reforma da legislação vigente, preconizada pelas concessionárias.

Foi assim que em 28 de novembro de 1958, para grande indignação da Frente Parlamentar Nacionalista, era promulgada a Lei n. 3.470, cujo artigo 57 permitia a correção do valor original dos bens do ativo imobilizado, ao arrepio do Código de Águas. Tratava-se de uma espécie de correção monetária pelos índices do Conselho Nacional de Economia; e a elevação da base de cálculo se refletiria também no valor das tarifas.

Simultaneamente com esse retrocesso, porém, criava-se um fato novo que culminaria na encampação da Companhia de Energia Elétrica Riograndense (CEERg), vinculada à American & Foreign Power, por sua vez subsidiária da Bond and Share.

Já em 1957 a Comissão estadual de Energia Elétrica (CEEE) requerera ao governo federal a encampação da CEERg, cuja concessão devia expirar em 2 de junho de 1958. O contrato assinado em 1928 previa vigência por 20 anos, com prorrogação por mais dez, que ocorreu.

Enquanto a CEERg servia Porto Alegre de maneira muito insatisfatória, a empresa do governo do Rio Grande do Sul já supria cerca de 50 municípios, estando em curso a absorção de empresas locais pela administração pública. O aproveitamento dos desníveis hidráulicos requeria recursos de grande vulto, e de âmbito regional. Dessa forma, as empresas municipais foram desistindo em favor do estado, em alguns casos tomando-se acionistas de empresa estadual.

Não havia razão para continuar a sujeição ao mau serviço da CEERg, mesmo porque a própria prorrogação já expirava, e era natural que o governo estadual assumisse o serviço. O que tornou a situação peculiar e deu destaque ao caso, foi a questão do tombamento contábil, que as concessionárias sempre repeliram.

O procedimento se iniciou com a solicitação de encampação feita pelo estado do Rio Grande do Sul ao governo federal, ainda na gestão do governador Ildo Meneghetti, seguindo-se a determinação do Ministério da Agricultura para que se constituísse uma comissão a fim de efetuar o tombamento da empresa.

Até 1958 a CEERg (americana) mandou ao exterior duas vezes mais dólares do que havia recebido de empréstimos

A comissão se organizou e em 30 de maio de 1958 apresentava seu relatório.
Nele se concluía que, em caso de encampação, a CEERg nada tinha a receber, mas sim a restituir. Só os dólares remetidos pela empresa para o exterior a título de juros representavam um excedente de aproximadamente 200% dos dólares recebidos a título de empréstimo. E a maioria dos empréstimos havia sido contraída junto à American & Foreign Power (subsidiária da Bond and Share) configurando-se, portanto, simples transferência de recursos entre companhias pertencentes aos mesmos acionistas. A conclusão era cristalina: nada havia que pagar à Companhia; ao contrário, era a esta que cabia fazer uma restituição.

Sobre essa decisão histórica, bem como sobre a própria façanha do tombamento, assim se expressaria Jesus Soares Pereira, anos mais tarde: "Pela primeira vez, nos termos da legislação brasileira, tombava-se o patrimônio de uma empresa concessionária para verificação da parcela ainda por amortizar. Esse tombamento e essa apuração deram lugar – não tem outra palavra – à verificação de um escândalo de grande porte. Evidenciou-se como o regime de concessão se prestava à deturpação de toda ordem e como era oneroso ao consumidor".

Contudo a gestão Meneghetti já se aproximava do fim quando da apresentação do relatório da comissão de tombamento; e, além disso, a CEERg envidava manobras protelatórias para evitar que as conclusões a que se chegara tivessem consequências práticas.

Esse compasso de espera terminou, porém, com a posse do governador Leonel Brizola, que imediatamente retomou a questão, conduzindo-a a bom termo, com coragem.
Assim, levando em conta as conclusões do relatório, foi requerida ao Juízo dos Feitos da Fazenda Pública a desapropriação da CEERg por utilidade pública e a imissão de posse. E uma vez despachado o requerimento, a empresa passou a ser administrada pela Comissão Estadual de Energia Elétrica (CEEE).

No Rio Grande do Sul, essa conduta teve respaldo da Câmara Municipal de Porto Alegre e da Assembléia Legislativa do Estado, com apoio unânime do todos os partidos.
Com efeito, tratava-se de uma decisão correta do ponto de vista administrativo, ainda mais que o fornecimento de energia a Porto Alegre se encontrava completamente estrangulado, prejudicando o desenvolvimento econômico da área, em particular, o industrial. E era uma decisão perfeita também do ponto de vista contábil.

Mas principalmente se constituiu numa decisão exemplar do ponto de vista político, despertando entusiasmo na opinião pública esclarecida do Brasil inteiro, ao trazer à tona, de maneira eficaz, o emaranhado proposital através do qual as corporações se protegiam. A encampação de 1959 representou um expressivo triunfo nacional e popular da luta antiimperialista.

* Paula Beiguelman é Professora Associada da USP e vice-presidenta do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo.

EDIÇÃO 50, AGO/SET/OUT, 1998, PÁGINAS 70, 71, 72, 73, 74, 75