Cuba encerrou 1999 contabilizando notáveis 6,2% de crescimento do seu PIB. A performance da economia da Ilha impressionou os próprios cubanos que, no início do ano passado, não imaginavam taxas muito superiores a 2,5%. O feito torna-se mais significativo quando comparado com o minguado desempenho econômico do subcontinente.

No final do ano, um relatório da CEPAL mostrou que o PIB simplesmente não cresceu na América Latina em 1999. Em termos de PIB por habitatante, ainda segundo a CEPAL, a América Latina, sem contar Cuba, apresentou um decréscimo de 1,6%, enquanto a Ilha ostentou folgados 5,6%, ocupando o topo entre os países latinoamericanos. Entre 1995 e 1999, a América Latina cresceu, em média, 2,5%, enquanto Cuba, 4%.

Os resultados cubanos, no entanto, não devem ser medidos apenas em sua comparação com o andamento econômico do restante da América Latina. Por si só, essa comparação já é excepcionalmente favorável a Cuba. O que se deve levar em conta é que, apenas dez anos atrás, na esteira do colapso da União Soviética e dos regimes do Leste europeu, a Ilha praticamente chegou ao fundo do poço. Na época, o socialismo caribenho chegou a ser dado como terminal. É isso que verdadeiramente engrandece o significado do desempenho de sua economia no ano passado. Cuba, de fato, beirou perigosamente o colapso nos anos que se seguiram a 1989. Perdeu 80% do seu comércio exterior, o PIB despencou pela metade, 80% de sua capacidade industrial instalada deixou de ser utilizada, o déficit orçamentário quase quadruplicou entre 1990 e 1993 e o peso desvalorizou-se 120% em relação ao dólar americano. A Ilha ficou sem petróleo, obrigando a volta dos carros de boi na agricultura e da tração animal em boa parte dos transportes urbanos. O desemprego grassou. Faltou comida, roupa, energia elétrica e medicamentos vitais, artigos de limpeza e higiene pessoal. Com falta de papel e tinta, a atividade editorial foi praticamente paralisada no país. Com drástica redução no consumo diário de calorias na alimentação, os cubanos emagreceram e ficaram doentes. De fome, pessoas desmaiavam nas ruas. É bom não esquecer que, desde 1962, Cuba já vinha sofrendo perverso bloqueio econômico capitaneado pelos Estados Unidos, o que impunha ao país dificuldades adicionais nada desprezíveis, onerando enormemente sua economia. Estava armado, portanto, um duplo bloqueio à Ilha.

Mas Cuba renasceu das cinzas. Seu desempenho, na reconstrução da economia e na salvação do país é, segundo o deputado José Luís Rodríguez, Vice-Presidente do Conselho de Ministros, em seu informe à Assembléia Nacional sobre os resultados econômicos de 1999, uma "demonstração palpável do triunfo das idéias revolucionárias e socialistas sobre um modelo de capitalismo neoliberal que, pelo menos nos últimos 15 anos, apresentou-se ante os olhos do mundo como a única alternativa possível, especialmente para a América Latina, frente ao suposto fracasso da revolução cubana". De fato, e a despeito dos impasses descomunais a que foi submetida, Cuba transitou por esses anos dramáticos mantendo um desempenho notável, em particular na área social, onde manteve, praticamente intacto, seu formidável sistema de educação e saúde.

Em 1999, o Estado e as cooperativas construíram 25.500 casas, às quais se somam as mais de 41 mil edificadas pela própria população. Foram concluídos 4.300 apartamentos na rede hoteleira, aumentaram os investimentos na prospecção do petróleo, na modernização das centrais termelétricas, nas telecomunicações. O desemprego – de 6% em 1999 – é inferior ao de 1998. O salário médio dos trabalhadores elevou-se. Isto sem falar numa performance no geral positiva dos vários ramos produtivos. Ainda assim, persistem os impactos negativos acumulados durante os primeiros anos do período especial que o país assumiu para enfrentar principalmente o desmantelamento da União Soviética. O desempenho da indústria açucareira entre 1993 e 1998 jogou peso nesse resultado. O bloqueio norte-americano e a incerta conjuntura nacional dificultam a obtenção de créditos. Somente a queda dos preços do açúcar, entre 1998 e 1999, acarretou um prejuízo estimado em US$ 265 milhões nas exportações cubanas. O preço do barril de petróleo – que aumentou 2,5 vezes entre dezembro de 1998 e novembro de 1999 – também pesou sobre a economia cubana. Por isso o deputado Rodríguez, em seu informe, reconhece que "os níveis de produção alcançados, mesmo que apresentando uma evolução positiva, ainda se encontram longe de satisfazer as necessidades da população".

Encruzilhada ideológica

A reação da economia cubana tem como alicerce um conjunto de amplas transformações ocorridas imediatamente após ao desmantelamento da União Soviética. A entrada do capital estrangeiro, a instituição do trabalho por conta própria na cidade e no campo, a aceitação do dólar americano como moeda corrente, ao lado do peso, a priorização do turismo como fonte de geração de emprego e a entrada de divisas a curto prazo são algumas das reformas cubana. Nada indica que não tenham sido medidas absolutamente necessárias para que o país recuperasse seu vigor econômico nos marcos do socialismo.

Mas a nova formatação que conferiu uma certa pujança à economia cubana e garantiu que o país se distanciasse do abismo que beirou na virada da década vem sendo, ao mesmo tempo, responsável por modificações subjetivas importantes. A dramática encruzilhada cubana não foi apenas econômica. Apresentou e de forma contundente – uma larga e complexa dimensão ideológica.

A verdade é que a crise na URSS e no Leste Europeu "destruiu um dos principais padrões valorativos de comparação, através dos quais eram julgados muitos dos processos e acontecimentos da vida nacional ou internacional", afirma José Ramón Fabelo, Vice-Presidente da Sociedade Cubana de Investigações Filosóficas. Disseminou-se, em decorrência, uma atitude niilista em relação ao marxismo e aos valores a ele associados. Além disso, a hegemonia neoliberal estabelecida após as derrotas socialistas, difundiu massivamente – e Cuba não poderia estar de todo a salvo desse maremoto ideológico – concepções sobre o fim da história, a morte das utopias, o envelhecimento de aspirações por uma sociedade mais justa, o individualismo, o consumismo, etc. Tratava-se, segundo Fabelo, de "uma crise universal de valores".

Às influências da debacle no Leste europeu, somou-se a crise econômica interna, provocando, particularmente entre os jovens, uma deterioração nos valores tradicionalmente cultivados pela Revolução Cubana. Como explica Fabelo, "as crises de valores geralmente acompanham as comoções que têm lugar nos períodos de transição da sociedade (progressivos, regressivos ou de reacomodamento)", o que comumente gera "perplexidade e insegurança dos sujeitos sociais sobre qual é o verdadeiro sistema de valores e um sentimento de perda de validade daquilo que se considerava valioso". Assim, "a crise econômica provoca condutas mais pragmáticas, menos altruístas e menos solidárias, o ceticismo sobre o futuro da revolução e sua capacidade de enfrentar os problemas, uma inclinação à sociedade de consumo em busca de um escape para a difícil situação vivida".

Para Maria Isabel Domínguez, do Centro de Investigações Psicológicas e Sociológicas, "as difíceis condições do país e as dúvidas sobre os prazos de suas soluções, somadas à passividade imperante em muitos grupos, estão provocando uma certa incerteza ante o futuro que se traduz no reforçamento do imediatismo e do hedonismo ( … ), do consumismo e da busca de vias alternativas ( … ) que incluem a prostituição, o casamento por interesse e o delito". Assim, "aos valores da honestidade, do sentido do dever, da disposição positiva para o trabalho e da solidariedade, que deviam ser uma das normas de funcionamento socialistas e que ainda não haviam logrado se consolidar, superpõem-se a busca de saídas individuais que propiciam a dupla moral, o oportunismo e o utilitarismo". Há o predomínio de uma consciência de consumidor sobre a de produtor. Tal situação é tema do livro Trilogia Suja de Havana, do escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez, editado no Brasil, no final do ano passado, pela editora Companhia das Letras. Ali se mostra, com chocante contundência, as ondas de dissipação que atingiram e ainda atingem – setores da população cubana a partir do início da crise econômica.

Maria Isabel assinala que, ao longo do processo revolucionário cubano, tem havido "um forte consenso social em torno dos valores básicos da revolução como a igualdade e a justiça, o que tem mantido a maioria da população integrada ao projeto revolucionário. É verdade. Do contrário, não se poderia explicar a sobrevivência de Cuba ao duplo bloqueio. Ainda assim, o alto senso crítico – e a enorme sinceridade – dos cubanos identifica o que consideram elementos negativos presentes na sociedade e que contribuíram para agravar a interface ideológica das reformas do início dos anos 90. A primeira é a consciência igualitarista, reforçada especialmente durante os anos 80, que fomentava altas expectativas de bem-estar material acima das possibilidades do país. Em seguida, a deficiência no trabalho das instituições sociais responsáveis pela transmissão das normas e valores vigentes através do processo de socialização de crianças e jovens. Fragmentadas (isto é, desprovidas de um enfoque sistêmico), essas instituições, além do mais, promoviam uma socialização homogênea, não considerando suficientemente as diferenças entre os grupos sociais e entre os indivíduos. Já a tecnocratização sobrepunha a difusão de informações técnicos sobre as de natureza humanista. destinadas – estas – à formação de valores. Por fim, o paternalismo levou à se conferir aos jovens um papel passivo em sua socialização.

O assunto, obviamente, preocupa os dirigentes cubanos. Tempos atrás, a Assembléia Nacional promoveu um seminário a respeito do que chamou Uma Campanha de Espiritualidade e de Consciência. O encontro foi precedido por discussões que se espalharam pelo país envolvendo professores, cientistas, profissionais e trabalhadores em geral, organizações sociais, de massas e governamentais. O seminário buscou variadas abordagens – filosóficas. históricas, sociológicas, psicológicas e pedagógicas – do problema da formação de valores nas novas gerações. Intervindo na ocasião, o escritor Cíntio Vitier, Presidente do Centro de Estudos Martianos, sugeriu uma "espécie de nova alfabetização ética, patriótica e, desde logo. política", com base num encontro das novas gerações com a ética e a espiritualidade martianas". Um encontro dentro de um estilo pedagógico – como ensinava Martí – livre. coloquial, agradável, concreto. Para María Isabel Domínguez, "um traço fundamental desse momento é de conseguir que a necessária transformação sócio-econômica de nossa sociedade seja acompanhada de uma transformação ética, em que se abandonem dogmas e estilos caducos, mas seja preservado o mais valioso da moral nacional e revolucionária".

Esta imensa tarefa, segundo Cíntio Vitier, "não pode nem deve ser responsabilidade exclusiva da escola, ainda que tenha nela seu centro". Trata-se, garante, de "uma empresa de dimensão nacional, envolvendo todas as organizações e organismos relacionados com o problema". María Isabel Domínguez recomenda um reajuste de aspirações nas gerações mais jovens, de modo a melhor equilibrar as aspirações individuais e as metas sociais, além de ajustar mais adequadamente as aspirações às possibilidades reais de satisfazêIas, tanto individual, quanto socialmente. Tais objetivos, segundo ela, caminham em duas direções fundamentais. A primeira impõe que as oportunidades sociais estejam ligadas ao aporte que o indivíduo ofereça à sociedade. "A sociedade cubana tem de produzir seu grupo de referência interno, portador de um modelo de bem-estar próprio", afirma María Isabel, para quem tal referência deverá "contrapor-se à influência de outros grupos de referência com modelos de bem-estar forâneos e em desajuste com nossas condições".

A investigadora coloca a socialização das crianças e jovens como "a segunda direção dessa estratégia combinada", para a qual a questão chave é a elevação do poder de persuasão no trabalho educativo e político, combinando maior informação, maior participação e uma adequada política de estímulos. A escola, a seu ver, mantém seu papel determinante no processo de socialização, cabendo-lhe três missões essenciais: ensinar a pensar, ensinar não só para desenvolver habilidades técnicas parciais, mas fundamentalmente para entender a totalidade social; promover mudanças nas aspirações dos jovens enfatizando o papel de produtor sobre o de consumidor; reforçar a importância da formação de valores, fundamentalmente do valor nacional e do valor trabalho, combinando, para tanto, o papel da razão e o da emoção evitando, como diz Ramón Fabelo, "uma transmissão fria e esquemática de valores".

Fabelo considera vital demonstrar sistematicamente, tanto às novas gerações, quanto a todo o povo cubano, que "as reformas capitalistas que hoje precisamos introduzir (…) ainda quando possam acarretar consequências não desejáveis, são medidas absolutamente necessárias e inevitáveis em nossas condições, não se constituindo um fim em si mesmas, mas um valor instrumental, um meio que nos permitirá, em primeiro lugar, obter a recuperação econômica e preservar a prática de importantes valores como a independência, a dignidade nacional e as grandes conquistas de justiça social que a revolução trouxe a nosso povo". A seguir, Fabelo sugere uma "reconceituação da nossa utopia (…) de modo que seja possível outorgar um sentido estratégico nitidamente socialista a tudo o que fazemos, evitando a impressão de que nos movemos irremediavelmente em direção ao capitalismo".

"É imprescindível" – sublinha Fabelo – "resgatar a credibilidade do marxismo, despojá-lo dos vícios dogmáticos e das desfigurações históricas de que foi objeto, renová-lo criadoramente segundo as circunstâncias atuais, vinculado estreitamente com o ideal patriótico, independentista e socialista da Nação". Por fim, ainda segundo Fabelo, "deve-se propiciar às novas gerações um conhecimento maior da outra face do capitalismo, que geralmente se mantém oculta, onde se encontram a miséria, a insalubridade, a incultura, a injustiça e a morte". Para ele, é preciso demonstrar às novas gerações os limites históricos, ecológicos e humanos que tem o capitalismo como sistema, sua irracionalidade como modo de organização da sociedade, sua impossibilidade como modelo do futuro humano".
Cuba segue examinando e percorrendo seus caminhos. Como sempre, a revolução não se recusa a enfrentar as contingências históricas que de hábito surgem diante de si. Atua na economia, na política e na ideologia. "Uma revolução só pode ser filha da cultura e das idéias", disse Fidel Castro na aula inaugural da Universidade Central da Venezuela, que proferiu em fevereiro do ano passado. "Nenhum povo se faz revolucionário pela força. Quem semeia idéias, não necessita jamais reprimir o povo", acrescentou. Em tempos de socialismo pós – queda do Muro de Berlin, que desafia a inteligência dos seus construtores para opor-se ao dogmatismo, ao voluntarismo e à vulgarização da teoria, Cuba oferece ao mundo instigantes ingredientes – vários deles precursores e freqüentemente polêmicos – para uma reflexão crítica, dialética e, portanto, criadora, a respeito do socialismo e seus percursos nos primórdios do século XXI.

Luiz Manfredini é jornalisfa e escritor paranaense. Visitou Cuba em janeiro último.

EDIÇÃO 56, FEV/MAR/ABR, 2000, PÁGINAS 36, 37, 38, 39