Visitamos no final de abril a República Popular Democrática da Coréia, esse distante e enigmático país do extremo oriente considerado como “integrante do eixo do mal” pelo presidente dos EUA, George W. Bush. Atendíamos assim a um convite do Comitê Central do Partido do Trabalho da Coréia (PTC) tantas vezes reiterado nos últimos dez anos, desde que os camaradas João Amazonas e Haroldo Lima lá estiveram – ocasião em que se encontraram com Kim Il Sung, o líder histórico da Revolução Coreana, dirigente invicto da Guerra da Coréia e o chefe do Partido e do Estado na epopéia do início da construção do socialismo.

Fomos com o propósito de conhecer algo sobre um país que não raras vezes é vítima da contra-informação e de campanhas caluniosas orquestradas pelos meios de comunicação sintonizados com a Casa Branca, a CIA e o Pentágono. Na bagagem, o sentimento de solidariedade do nosso Partido e do nosso povo para com uma gente que pelos livros já sabíamos ser lutadora e heróica, inteligente e laboriosa, e descobrimos, pelo contato com centenas de cidadãos, dos mais simples aos mais altos dirigentes do Partido e do Estado, das mais diferentes idades, das mais tenras crianças aos mais provectos anciãos, ser também generosa e hospitaleira, educada e gentil, culta e nobre, sadia e bela.

A curta duração da nossa permanência no “país das manhãs serenas” (tradução do nome próprio Koryo, Coréia), os compromissos protocolares, as conversações bilaterais de trabalho com a direção do PTC e a participação nos festejos do 15 de abril, natalício de Kim Il Sung, convertido em data nacional após seu falecimento em julho de 1994, não foram suficientes para dar aos viajantes elementos para uma análise aprofundada sobre o socialismo coreano. Mas os dez dias que lá passamos encheram-nos de impressões impactantes. A paisagem escarpada e árida apenas entrevista antes do pouso da velha mas potente aeronave russa dos tempos soviéticos é a primeira indicação do grau de dificuldade que os coreanos enfrentam para construir um país próspero – o meio natural hostil, muitas vezes inóspito sob 40 graus centígrados abaixo de zero quando o inverno está no auge. Não era o caso quando chegamos. Apenas soprava um resto de vento siberiano e uma agradável temperatura média de 15 graus centígrados sob o céu claro e um sol já primaveril.

Mesmo o olhar acostumado à diversidade de paisagens urbanas, aturde-se ao contato com Pyongyang, a capital da República destruída até a última pilastra pelos bombardeios da aviação norte-americana durante a Guerra da Coréia, que os coreanos reergueram no ritmo frenético e imparável do cavalo alado Choliman – famosa figura da mitologia coreana, cujas torre e estátua dominam uma das principais artérias da nova cidade. A reconstrução da capital é um capítulo à parte da história contemporânea da Coréia, comparável a uma epopéia. Da geração revolucionária de construtores dos anos 50 e 60 do século passado, os coreanos herdaram uma cidade moderna, com amplas e extensas avenidas e ruas, limpas como salas de estar e alamedas de um palácio real, seus alvos prédios e conjuntos residenciais. Nos anos 80 e 90 a cidade se embelezou com a construção de marcos alusivos à Revolução, ao Partido, ao líder – o Arco do Triunfo, o monumento do Partido, a Torre da “Idéia Djutche”, o Arco da Reunificação da Pátria, o Palácio Kumsunsan, onde se encontra o mausoléu de Kim Il Sung, o Cemitério dos Mártires, o museu da Revolução, lugares “sagrados”; na peculiar concepção dos coreanos, que consideram natural e mesmo necessária a veneração aos feitos do passado e do presente, todos eles, ainda segundo essa peculiar visão de mundo, materializados na figura do líder, alvo de homenagens e cultos, incompreensíveis à nossa maneira de ver e ser.

Para nós, comunistas brasileiros, que nos temos exercitado e provado no esforço criativo de elaboração de uma linha política própria que inspire e oriente a revolução socialista no Brasil, a visita à Coréia foi uma confirmação a mais de que não há modelos de socialismo a serem seguidos e copiados, como não há figurino teórico, a partir do qual medir o grau de acerto da linha política de um partido comunista no poder. Durante a semana e meia que permanecemos na Coréia observamos, ouvimos, indagamos, quedamo-nos admirados e fomos assaltados por muitas perguntas quanto ao futuro imediato e de longo prazo do socialismo coreano.

A República Popular Democrática da Coréia, fundada em 1945, surgiu no contexto de uma guerra de libertação nacional em que os comunistas assumiram o posto de vanguarda no combate à ocupação japonesa. No princípio, foi uma democracia popular clássica, cumpriu as tarefas democráticas e antiimperialistas, depois passou à construção do socialismo contando em grande medida com suas próprias forças, mas também com não pouca ajuda soviética e chinesa e, embora com as peculiaridades nacionais e o independentismo próprio do caráter nacional coreano e do conjunto de idéias sistematizado por Kim Il Sun com a designação de “Pensamento” ou “Idéia Djutche”, a construção do socialismo na Coréia seguiu seu curso consoante o espírito da época, no quadro do campo dos países socialistas e do que se convencionou chamar de modelo soviético.

Nessas circunstâncias, o povo coreano, sob a direção do Partido Comunista, denominado Partido do Trabalho, conquistou remarcáveis êxitos na construção de uma sociedade socialista. Organizou a agricultura com base na propriedade coletiva – estatal e cooperativista, nacionalizou e estatizou os principais meios de produção, soergueu uma moderna e diversificada indústria pesada e ligeira, com razoável nível tecnológico. Nos marcos da comunidade econômica dos países socialistas, o país crescia e o povo vivia satisfatoriamente. O Estado socialista dava passos graduais mas certos do asseguramento dos direitos sociais universais.

Os sobressaltos da História, se bem não destruíram o socialismo coreano, atingiram-no duramente, impondo aos governantes e ao povo ingentes dificuldades e enormes sacrifícios. A derrocada do socialismo no Leste da Europa e a dissolução da URSS no início da última década do século passado amputaram os mercados e as fontes de abastecimento do país, exauriram reservas de combustíveis e alimentares. Sujeito a um brutal cerco econômico e ao isolamento, resultantes de uma deliberada política de estrangulamento capitaneada pelo imperialismo norte-americano e ainda, como agravante, atingido por sucessivas calamidades naturais, o país sofreu um baque. Sem combustíveis nem insumos, a indústria foi levada a um estado de semiparalisia, a agricultura foi quase devastada.

Particularmente a partir de 1994, teve início um período que durou sete anos, chamado de “marcha árdua” – período de escassez, inclusive alimentar. Os dirigentes coreanos nos asseguraram que começam a surgir perspectivas de superação das dificuldades, que ainda são grandes. Não há elementos para afirmar que o desempenho da economia já melhorou. O Partido e o governo continuam achando ser possível ultrapassar os obstáculos contando com as próprias forças e mantendo o modelo vigente. Não cogitam promover reformas radicais na estrutura econômica nem a abertura ao exterior, embora uma experiência piloto de implantação de uma zona franca esteja em desenvolvimento no norte do país. Numa situação de isolamento externo e ameaça de guerra, o PTC adotou a política de primazia militar, considerada como eixo da construção do socialismo.

Apesar das dificuldades e graves ameaças aos destinos da nação, estão incólumes as conquistas básicas da Revolução. Nas nossas incontáveis andanças à margem do protocolo, não vimos gente andrajosa nem faminta, mendigos nem crianças abandonadas. Nas ruas cruzávamos com cidadãos saudáveis e bem apessoados. Uma gente que leva um padrão de vida modesto com dignidade.

Causou-nos enorme admiração a importância atribuída às grandes obras de caráter socialista e atividades coletivas e de massas, entre elas o majestoso Palácio dos Estudos do Povo, um complexo centro educativo-cultural, freqüentado diariamente por mais de 10 mil pessoas em busca de leituras, cursos nos mais variados domínios do conhecimento e atividades artístico-culturais; e o luxuoso, mas também funcional, Palácio das Crianças, onde mais de 5 mil meninos e meninas freqüentam diariamente em horário extra-escolar para cultivar talentos. Centenas de artistas mirins ali se formam dando copiosos espetáculos lítero-artístico-musicais. O coreano nos pareceu talentoso na música e dança e exímio acrobata, coreógrafo e ginasta. O espetáculo de ginástica massiva que tem lugar durante a primavera no Estádio Primeiro de Maio, para um público de 150 mil pessoas, é realizado por cerca de 100 mil desportistas amadores, todos crianças e jovens. Algo único no mundo, mesmo para nós que consideramos manifestações de massas como o Futebol e o Carnaval como “o maior show da Terra”. Dirigido pelo coreógrafo Kim Sun Jo, o espetáculo de hora e meia de duração alterna movimentos sincrônicos de ginastas que desenham com o corpo complexas figuras, com danças, acrobacias, balé e teatro. O espetáculo desta primavera, apresentado todas as noites até o final de junho, intitulado “Arirang, Independência e Paz”, é dedicado ao maior anseio de todos os coreanos, do Norte, do Sul e de ultramar – a reunificação da pátria.

A multimilenar civilização coreana já passou por incontáveis intempéries, mas não cremos que nenhuma tragédia se compare à da divisão do país provocada por uma manobra, um artifício, uma ingerência e uma agressão do imperialismo norte-americano. A Coréia é uma e era una até o dia 26 de junho de 1950, quando os EUA provocaram a guerra. Depois de duros combates e batalhas, com centenas de milhares de mortos, um acordo de paz selado em 27 de julho de 1953 acabou com a Guerra da Coréia, mas o alto preço da paz foi a divisão do país em dois. Desde então existem a República Popular Democrática da Coréia, a Coréia do Norte, e a República da Coréia, a Coréia do Sul.

Uma divisão artificial. Dois países, mas um só povo, uma só língua, uma só história, uma só tradição, famílias divididas, aldeias cortadas ao meio. Os coreanos sofrem a divisão com a dor de uma amputação, da perda de um ser amado. Sonham com a pátria unida, reunificada, para o que usam uma palavra peculiar – ARIRANG – espécie de senha da nação coreana, algo tão intraduzível como a dorida SAUDADE luso-brasileira. Visitamos Pamunjong, aldeia fronteiriça da província de Kaesong. Entramos na casa onde se realizaram as conversações e foi assinado o acordo de paz. A sensação é a de estar vivendo um fato histórico tão recente (faz apenas 50 anos) e inconcluso, porque rigorosamente o problema coreano iniciado com a guerra de 1950-1953 continua sem solução pelo simples fato de que os imperialistas norte-americanos não abrem mão de possuir uma base no extremo oriente. O maior obstáculo à reunificação da Coréia é a presença em território sul-coreano de 40 mil soldados norte-americanos e a existência de mais de mil artefatos nucleares na parte sul da Península. Fomos testemunhas da tensão existente na zona de exclusão onde permanecem face a face, separados por uma linha riscada no chão, de um lado soldados norte-coreanos, de outro soldados sul-coreanos e norte-americanos. Poucos quilômetros adiante, no interior da Coréia do Sul, o terreno é minado e além das demarcações convencionais, a fronteira é caracterizada por um extenso muro de concreto armado, construído pelos norte-americanos em comum acordo com o governo sul-coreano.

Os dirigentes do Partido do Trabalho da Coréia nos informaram sobre os esforços desprendidos e as gestões realizadas de parte a parte ao longo das últimas décadas tendo em vista criar um ambiente favorável à reunificação da pátria. Têm havido cooperação econômica, intercâmbios culturais, esportivos e técnico-científicos, visitas de familiares para ambos os lados. No ano passado, em 15 de junho, foi dado o passo mais significativo, com a assinatura da Declaração Conjunta Norte-Sul pela
Reunificação pelos dirigentes máximos dos dois países. Muitas vezes esses esforços são baldados pela ação deletéria e sabotadora do imperialismo norte-americano que não tem nenhum interesse na reunificação da Coréia porque representaria a extinção de sua base militar naquela região estratégica.

A reunificação é uma necessidade para a Coréia e para a paz no mundo. A nossa delegação expressou de público, discursando num grande ato político com cerca de 5 mil pessoas no grande auditório de Pyongyang, o apoio dos comunistas brasileiros a essa grande causa, que pode ser alcançada perseverando na independência, rejeitando a ingerência de forças estrangeiras, na unidade da nação, admitindo que numa Coréia reunificada coexistirão dois sistemas e dois governos segundo um princípio confederativo e no caminho pacífico, pois o uso da força implicaria numa tragédia maior.

Saímos da Coréia esperançosos de que sob a direção do Partido do Trabalho, o povo daquele país encontrará forças para superar as dificuldades à construção do socialismo, saberá defender sua independência e soberania. E certos de que é uma questão de tempo histórico o apagamento da fronteira artificial e o ressurgimento de uma só Coréia, do monte Paektu (extremo norte) ao monte Hanna, no extremo sul.

José Reinaldo Carvalho e João Batista Lemos são membros do Secretariado do Comitê Central do PCdoB

EDIÇÃO 65, MAI/JUN/JUL, 2002, PÁGINAS 12, 13, 14, 15