Ela já foi Josydeméia, Maria do Socorro, Ana, Luiza e Socorro Fragoso. Teve experiência como bóia-fria, fez-se passar por mulher da noite e possui em seus vários “currículos” profissões que nunca exerceu. Nesses fragmentos de vida sob a ditadura militar, um passado ainda muito presente. Permanecem pendências sociais e políticas, mantém-se o sono intranqüilo das mães de desaparecidos nos becos da ditadura, e fica a inveja, nos jovens de hoje, da luta de outrora. Todos eles, em todos os tempos, sempre ansiosos por marcar a história e transformar o presente.

Nos relatos, intimidades de uma estudante de serviço social, que não planejou grandes seqüestros nem pegou em armas para integrar uma guerrilha. Mas que militou contra a ditadura, que passou anos sem notícias da mãe, que teve de largar os estudos vez ou outra e que viu seu marido recente sumir numa missão secreta. Enfim, um ícone de tantos outros jovens que, naqueles tempos, tiveram de improvisar na clandestinidade, mesmo que isso significasse abandonar grandes prioridades e grandes amores. Até porque a política não deixava muita alternativa; reinava o instinto de sobrevivência e o espírito de liberdade.

Enxergar de forma mais íntima um dos tantos personagens da ditadura militar brasileira é conhecer melhor essa história. É também, para os jovens de hoje, uma forma de desmistificar as tantas lutas e heróis daqueles tempos. Falo isso porque eu mesma, filha de outro perseguido político, criei mitos sobre os opositores da ditadura (orgulho-me de ter nascido no ano em que os presos políticos foram anistiados). E já me perguntei, infinitas vezes, como era o dia-a-dia daqueles jovens caçados como terroristas. Quando se tromba com uma exímia contadora de casos, seja na mesa do bar, seja num livro-diário, percebe-se reais meandros das décadas de 60 e 70.

Pode-se pesquisar na internet, procurar nas enciclopédias ou nos mais renomados livros de história. O que faziam, como eram as paqueras e o relacionamento com as drogas só se sabe a partir do relato dos que foram condenados por suas posturas ideológicas. Por isso Uma história para Érica urge por ser lido. Mostra as mais marcantes experiências de uma figura importante do meio político mineiro – e melhor – que ainda carrega consigo toda a rebeldia, convertida em desejo por novos tempos.

O livro é um relato vivo de que a luta e a busca por mudanças não dependem de contextos, mas de garra. O fim da ditadura não foi, para Jô Moraes, o término de seus tempos de luta. Foi apenas um descanso para aquela vida de perseguida política. Hoje, mais de duas décadas após o fim da ditadura militar, nossa estudante de serviço social continua na batalha contra o que não consegue engolir: a dura vida das mães solteiras, os compromissos não-cumpridos pelo governo e o leite que deixou de ser entregue às mães carentes. O fim da ditadura representou para nossa personagem de múltiplos nomes, que se unem nas letras JO, apenas uma nova forma de lutar. Agora, não mais na clandestinidade e contra um sistema que usava e abusava, institucionalmente, da violência, da repressão e da censura. Mas num sistema ainda cheio de imperfeições.

Nossa ex-estudante de serviço social relata fragmentos do passado, sem peso nem saudosismo. Simplesmente com o curtir suave de quem lê um diário antigo. Ou de quem se sente gente por ter história, passado e muitos causos para contar.

Ana Magalhães

Confesso que já quis inúmeras vezes, ter nascido na década de cinqüenta, para, nos meus vinte anos, viver aqueles tempos difíceis e, cá pra nós, cheios de adrenalina. São relatos como os de Jô que nos fazem sentir semelhantes aos nossos heróis do período da ditadura e perceber que as injustiças sempre estão à espera de serem combatidas. Que esse livro – Uma história para Érica: fragmentos da vida sob a ditadura militar – seja um incentivo para nunca baixarmos a cabeça diante delas.

EDIÇÃO 66, AGO/SET/OUT, 2002, PÁGINAS 81