O estudo sobre o tempo próprio das costureiras que trabalham em seu domicílio para a indústria da confecção em Goiânia e entorno, foi realizado em 2001, com o objetivo de investigar, no contexto do trabalho flexibilizado e em tempos de globalização econômica, como essas mulheres – que voltaram para casa atendendo à nova organização produtiva –, organizam seu tempo; e como vivem seu tempo próprio – tão importante para a construção de sua autonomia. É uma investigação que partiu do princípio de que o trabalho é fator emancipador na construção humana e possibilita a independência, e a autonomia, necessárias à emancipação das mulheres.

Em sua experiência cotidiana, nos relatos de grupo, essas costureiras retrataram uma situação que é coletiva, permitindo-nos identificar e reconhecer a rede de significados e de valores que orientam suas vidas, e que se manifestam como um comportamento socialmente adaptado que extrapola o âmbito individual. Esse cotidiano desenhado representa o tempo de vida em sua conotação existencial, diferenciando-se do tempo histórico e do tempo institucional.

Nesse sentido, as costureiras faccionistas na busca de sua independência econômica neste trabalho profissional, feito em domicílio, re-significam ou re-criam seu espaço e o seu tempo na busca de emancipação. Costurar por facção é um trabalho que se caracteriza como uma atividade com origem na esfera pública, pago por peça produzida e realizado no próprio domicílio, espaço doméstico onde também se vivencia o privado, a intimidade. Nesse caso, o doméstico foi tratado como uma das dimensões do trabalho de reprodução social que é, também, realizado no espaço do domicílio; e, o privado, como uma esfera da intimidade e da privacidade – a apropriação de si, o tempo e o espaço de recolhimento à vista de poucos, em confiança, particular de cada um.

Em síntese, além das diferenças individuais consideramos os condicionantes sociais no contexto de desigualdade social para identificar: a) o que aquelas mulheres pretendiam para si próprias; b) a nova situação que conforma a construção da subjetividade e da identidade delas próprias; c) como organizam e dominam seu próprio tempo e espaço; e d) a consciência que elas têm das condições oferecidas por essa nova organização do trabalho e as possibilidades de construir sua autonomia.

A presença das mulheres no mundo do trabalho

Na história das sociedades, as contradições têm sido uma constante, tanto assim que, sob a perspectiva social, as mulheres pertencentes às classes de poder e as mulheres proletárias ocuparam espaços diferentes e tiveram trajetórias diferenciadas. Ocorre que, ao largo dos três últimos séculos, principalmente às mulheres dos setores populares, foi possível vender sua força de trabalho, resultado da organização capitalista de produção e de conquistas sociais, próprias da luta por sua inserção e valorização no espaço público. Efetivamente, sua presença como trabalhadoras, vem atender às necessidades da crescente produção industrial, decorrentes da ampliação das demandas que impulsionaram tanto os avanços tecnológicos quanto as grandes transformações econômicas ocorridas nos últimos tempos.

Mesmo assim, nestes últimos anos, apesar de estarem na produção e de haverem conquistado a igualdade jurídica, em geral, nem sempre as mulheres têm vivido plenamente essa igualdade. Ainda que presentes no espaço público como trabalhadoras, os seus salários são menores que os dos homens no exercício das mesmas funções e sua situação como trabalhadora está colocada num patamar secundário e, nem sempre têm a mesma representatividade nos postos de chefia e de poder. No âmbito da sociedade, é reforçado o que lhes foi atribuído como tarefas próprias “de seu sexo” na família, no espaço doméstico, onde elas também pouco participam das decisões importantes.

O novo trabalho domiciliar e a construção da autonomia das mulheres

O trabalho flexibilizado por facção se legitima junto à sociedade e, principalmente, junto à mulher trabalhadora, com base num tipo de discurso e no “apelo” do setor empresarial, que têm ecoado e ido ao encontro do anseio de independência e de autonomia, fundados na liberdade individual, tão desejados e proclamados desde a modernidade – reforçados e apresentados nos tempos atuais, aparentemente, sob outra lógica –; o trabalho com independência, sem patrão e sem cartão de ponto.
Isto se evidencia e se manifesta no cotidiano dessas mulheres trabalhadoras que desejam ter maior autonomia sobre as suas vidas e algum domínio sobre o uso e a organização do seu próprio tempo, identificado como sua própria “liberdade”. No entanto, neste novo trabalho, as costureiras faccionistas enfrentam outras situações novas, pois, para realizarem seus projetos e organizarem seu tempo, elas se submetem a circunstâncias e condicionamentos de sua própria classe que colocam à prova sua capacidade de competir entre elas mesmas, numa situação desigual, para superar os desafios da concorrência para se integrarem nesse trabalho para sobreviver. E, sobre essa liberdade elas assim se manifestam:

“Aquilo ali é um serviço, que, ao mesmo tempo que é livre, você tá mais preso do que se você trabalhasse fora”.
Está assim, explicitado o caráter contraditório dessa nova organização do trabalho que promete a possibilidade de vida identificada como própria da classe de poder, mas, que ao divulgá-lo, tergiversa as vantagens que a própria classe de poder leva para si, nessa organização do trabalho. No entanto, é nesse modelo em que se espelham essas costureiras que, em seu cotidiano trabalham e estão sujeitas a todas as pressões que enfrentam os trabalhadores assalariados. Eis o que disseram as contratadas pelas faccionistas:

“(…) Entre nós, as costureiras, é costume chamar este trabalho de ‘trabalho de enxada’, como o trabalho das pessoas que estão no campo, trabalhando de sol a sol. Porque trabalhamos muito na ‘facção’ e o salário é muito pequeno. Mas tem a vantagem que trabalhas em casa, cuidas de teus filhos e da família ao mesmo tempo. (…)”
“(…) as pessoas pensam que tu estás ali todo o dia para servi-las. (…)”

Sob a perspectiva dos avanços sociais que se fizeram repercutir na vida das mulheres, e da construção por elas mesmas de uma nova subjetividade e de seu tempo próprio, o novo trabalho em domicilio, de costura da roupa de vestir por facção, é paradoxal. Mas, convém lembrar que no caso das costureiras faccionistas, segundo lhes oferecem os intermediários, constitui-se uma alternativa, às vezes única, de trabalho, principalmente para aquelas mulheres que têm pouca ou nenhuma qualificação profissional e são responsáveis pelo sustento da família e a manutenção da casa:

“(…) Eu trabalho para sustentar a casa e minhas filhas… e a vida”. “Mantenho a casa, estou só (…).” “Eu faço facção em casa, ajudo [economicamente] em casa (…) com a maior parte, não? (…) meu marido trabalha… mas ele está enfermo, tem problemas, tem um pequeno açougue, pouca coisa, não?”.

Ou seja, frente à realidade que tais mulheres enfrentam para sobreviver, quando buscaram o trabalho profissional, elas se viram diante da possibilidade de optar por esse tipo de trabalho que lhes facilitasse cumprir, segundo elas, os papéis que lhes foram designados em nossa sociedade: mãe, esposa e dona-de-casa. Assim, embora busquem sua independência, elas se encontram como únicas responsáveis por tarefas que lhes impedem de construir seu tempo e sua autonomia, pois têm a educação sexista que receberam reforçada.

A construção do tempo próprio: condição para a autonomia das mulheres

Todo esse conjunto de elementos, tão próprios do trabalho flexibilizado, intervém no cotidiano, e, portanto, na própria vida das costureiras faccionistas e na construção da subjetividade, do tempo próprio, da autonomia delas. Daí a necessidade de partir da história de cada uma dessas mulheres – uma história que está conformada pelo lugar que cada uma ocupa na estrutura produtiva –, considerando-se, sempre, sua incorporação massiva e sua permanência no mercado de trabalho, fato este significativo na construção das mulheres como pessoas e cidadãs.

Essa incorporação no mercado de trabalho está delineada, de um lado, pela histórica situação de discriminação vivida por elas, nos moldes da sociedade patriarcal, e pela sua longa história de lutas e de conquistas; de outro, pelos fatores de ordem econômica que, em momentos de crise, favorecem a reformulação de estratégias de sobrevivência familiar, sempre reforçando a submissão e a opressão de gênero. Além disso, a esse respeito, devem também ser consideradas as profundas mudanças verificadas nas pautas de comportamento e nos valores relacionados com os papéis das mulheres na sociedade, dentre elas as que afetam a queda da fecundidade, a expansão da escolaridade, o acesso das mulheres à universidade e as mudanças nas pautas de consumo. Tudo isso, portanto, sugere que as mulheres estão condicionadas à estrutura social e a todos os seus componentes: a cultura, a ideologia e as formas de trabalhar e de viver no cotidiano, bem como o ambiente em que vivem, além das características históricas que delineiam o perfil de suas vidas e demarcam tanto os seus projetos como as possibilidades de realizá-los socialmente.

Outras referências são também importantes para a construção de sua autonomia, tais como a capacidade que têm de construir a si próprias onde, no cenário da vida, o individualismo e o processo de individualização desenvolvem-se com base, inclusive no protagonismo das mulheres historicamente silenciadas.

Dessa maneira reforça-se a ideologia da mulher cuidadora e responsável pelo trabalho doméstico tido como tarefa sua; como por exemplo, uma costureira justificou o excesso de trabalho que executava: “o trabalho dignifica”. Como se vê, esta é a demonstração de que esse trabalho está naturalizado como uma tarefa sua, pois, também se referem a “quem” o realiza – aos filhos e ao marido – como seus “ajudantes” em casa, nos finais de semana justificando que é tarefa sua realizá-lo todos os dias. Ou seja, mesmo reclamando que trabalham muito, consideram “normal” que as mulheres realizem a dupla jornada, principalmente as que ganham pouco e não podem pagar a uma empregada doméstica, admitindo, de forma naturalizada, a sua própria situação de classe.

Foi exatamente nessa realidade que se identificou como essas costureiras, à época, organizavam no seu cotidiano, os usos do tempo e do seu tempo próprio no espaço tradicional onde realizavam seu trabalho doméstico, e como vivenciavam as relações afetivas familiares, conciliando com o seu tempo próprio.

Entre aquelas mulheres, a capacidade e a possibilidade de organizar e viver o tempo próprio estão condicionadas pelo nível de consciência social de cada uma sobre si mesma.
Daí a necessidade de se considerar, no estudo realizado, os condicionantes sociais que interferem na construção da subjetividade e identidade delas mesmas bem como as diferenças pessoais de cada uma, dentro daquele específico contexto de desigualdade social. Pode-se inferir que a capacidade de cada pessoa de organizar e viver o seu tempo próprio depende das circunstâncias impostas pela sociedade e da sua capacidade em superar os desafios da própria sobrevivência para construir sua autonomia.

Elas organizam e articulam seu tempo em função do trabalho que realizam no seu próprio domicílio, somando-o ao seu tempo de trabalho doméstico. Assim, elas vão vivenciando suas relações afetivas familiares e a sua intimidade a partir do tempo que lhes sobra do trabalho que realizam – este sim, tratado como prioritário.

“Vivemos para o trabalho”

Trabalhar como faccionista no domicílio foi a forma encontrada de conciliar o trabalho profissional remunerado ao trabalho doméstico não-remunerado, estabelecido socialmente como “papel social das mulheres”, acreditando que, dessa forma, elas teriam maior tempo livre, ou seja, mais disponibilidade para organizar o uso do tempo, e definir o tempo para si mesmas. Elas buscam esse tipo de trabalho, esperando realizar sua independência econômica e ter mais tempo livre, elementos condicionantes para a construção de sua própria autonomia.

É, portanto, a partir dessa experiência de vida e de trabalho que, durante as entrevistas realizadas, elas questionam o que foi aqui chamado de “liberdade de trabalhar na própria casa”, reconhecendo que, em tais condições, acabam dedicando seu tempo livre ao trabalho doméstico, elemento do universo conformador de sua consciência e de sua subjetividade na organização e uso do seu tempo.

“(…) Não temos tempo para nós, não vivemos nossa vida. Vivemos para o trabalho e para a vida dos que estão em casa. Não temos tempo. (…)”

As faccionistas, para afirmarem-se no mundo público ou nas atividades profissionais, necessitarão reelaborar suas relações nos vários espaços (tanto no público quanto no privado e doméstico-familiar) com implicações sobre suas relações nas diferentes atividades de trabalho que desenvolverem, tendo em conta o que desejam viver e tomar para si no processo de construção de seu tempo próprio.
Tudo isso se resume num processo de construção de si mesmas, que está delineado socialmente, e ao qual estão também condicionadas pela situação própria da classe trabalhadora. Como elas próprias dizem, mesmo sendo donas de seu próprio negócio, trabalham “de sol a sol” na costura, como todas as outras costureiras, e, para organizarem o seu tempo têm que enfrentar as pressões da competição para efetivar os acordos individualmente, não só para definirem o preço de seu trabalho com os intermediários, como também, para garantirem sua cota de peças, ou melhor, o próprio trabalho. Seu principal projeto é manter sua sobrevivência e progredir num trabalho que realizam, onde, ao mesmo tempo, se ocupam das atividades domésticas: um espaço onde vivem e compartilham sua intimidade – seu próprio domicílio.

“(…) Eu tenho sonhado muito, mas já não sonho mais. O único desejo que tenho é de ter saúde e coragem para o trabalho, para criar minhas filhas. (…)”

O trabalho por facção não é contínuo e se realiza simultaneamente com o doméstico. Assim, podemos afirmar que são poucas as possibilidades que têm essas mulheres de delimitar e organizar o tempo e de se dedicarem a si próprias, viver seus projetos em seu cotidiano. Afinal, sempre que alguém deixa de lado o privado, são sempre menores as suas possibilidades de construir sua autonomia.

‘(…) a costura ocupa todo nosso tempo.Eu não tenho tempo para mim, vivo uma escrava do trabalho. Nem vou à igreja. Para me arrumar e a meus filhos é muito difícil. Passear nem se fala!. Assim ficamos. Vai passando a vida. (…)”
Entre suas expectativas de construção do próprio futuro, reclamam dupla jornada e percebem a discriminação e a desigualdade sem, no entanto, conseguirem desvincular-se das práticas pessoais que produzem tais contradições. Elas também reivindicam ter as mesmas oportunidades de qualificação, reconhecimento e valorização profissional – direitos básicos que possibilitam sua própria emancipação social. Denunciam que, ante a pressão da luta pela sobrevivência, são obrigadas a fazer acordos que desconsideram esses mesmos direitos, embora tenham tomado os atuais acordos sindicais como referência para negociar com os intermediários.
Desejam, através do trabalho, ter independência e liberdade de decidir sobre suas vidas integralmente, apesar de muitas delas viverem uma situação de submissão em casa, principalmente as que permanecem com maridos que decidem sobre quase tudo em suas vidas.

“(…) É muito bom ser livre, mas nós não somos livres: temos marido, filhos, pais e cuidamos de tudo. (…)”

No cotidiano, apesar de produzirem para o mercado, suas relações se restringem ao espaço do domicílio. Segundo relatam, depois de um dia de trabalho, quando chega a noite, durante todo o tempo não conseguiram sair até a porta; muito menos podem conversar com os vizinhos. Nisto se pode identificar o nível de isolamento que o trabalho por facção impôs àquelas mulheres – pela clandestinidade que o caracteriza e pela forma de exclusão do convívio social mais amplo que gera, sob a imposição da necessidade de cumprir os compromissos da produção.

“(…) Não temos tempo para nós, não vivemos nossa vida. Vivemos para o trabalho e para a vida dos que estão em casa. Não temos tempo. (…)”

Por isso, estão todas elas com limites para viver e desfrutar de qualquer tipo de vida social seja fora do trabalho ou fora de seu próprio domicílio. Pouco lhes resta, além das relações com a própria família no espaço doméstico ou com algumas visitas esporádicas a familiares. O uso de seu tempo livre pode ser traduzido como “trabalhar mais sem direito ao descanso”. Assumiram, integralmente, o trabalho doméstico – em sua mais ampla dimensão – como sendo de sua única responsabilidade.

“(…) Trabalhar em uma máquina não é brincadeira; à tarde sentes que dói todo o corpo e você ainda tens que limpar e arrumar a máquina, depois lavar a roupa, limpar o banheiro, e às vezes, à noite.”.
“(…) as coisas não são fáceis, a vida está cada vez pior”.
“(…) Eu sonhei muito, mas já não sonho mais. A única ilusão que tenho é a de ter saúde e coragem para o trabalho, para criar as minhas filhas. (…)”

Nessa situação de trabalho, as costureiras faccionistas se distanciam da apropriação de si mesmas. Estão fragmentadas como pessoas e como trabalhadoras – são muitas as suas perdas no plano dos direitos sociais e têm sua saúde afetada. Sua presença se restringe majoritariamente ao âmbito do domicílio em função do trabalho e são reduzidas suas relações de amizade e horas de descanso. São cada vez mais precárias as condições que enfrentam para exercer seu direito à cidadania e construir sua identidade, seu tempo próprio e conquistar sua autonomia. Resta-lhes, segundo disseram, organizarem-se para fazer frente a esses novos desafios e conquistar a liberdade que pretendem.

*Eline Jonas é professora titular de Sociologia da Universidade Católica de Goiás, Doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid. (endereço eletrônico: [email protected])

EDIÇÃO 68, FEV/MAR/ABR, 2003, PÁGINAS 75, 76, 77, 78, 79