Chamou atenção dos deputados federais do Rio de Janeiro, que estiveram no Palácio do Planalto a 27 de fevereiro passado, a franqueza e indignação com que o presidente Lula revelou não ser consultado sobre aumentos de gás, gasolina e outros. Em momentos anteriores, Lula já revelara perplexidade diante de fatos desse tipo, tendo se referido à trágica situação de “Estado terceirizado”, em que estaria sendo transformado o Estado brasileiro, para o qual fora eleito presidente.

Na verdade, Lula estava reagindo à situação que herdou do governo FHC – que criou um sistema de agências com autonomia operacional face ao Executivo, inclusive para fixar aumento de tarifas. A Agência Nacional de Petróleo, ANP; a Agência Nacional de Energia Elétrica, ANEEL; e a Agência Nacional de Telecomunicações, ANATEL, perfilam-se entre esses novos órgãos brasileiros que não precisam de autorização do Poder Executivo para deliberar sobre vários assuntos, como aumentos de tarifas.

A incômoda sensação experimentada por Lula, de se sentir no comando de um “Estado terceirizado”, seguramente será muito agravada caso seja confirmada a criação no Brasil de um Banco Central “independente”, ou “autônomo”, ou dotado da chamada “autonomia operacional”.

A política do capital financeiro no mundo e o papel do Banco Central

A “terceirização do Estado”, figura retórica aventada por Lula, protestando quando decisões importantes são tomadas à sua revelia, nos remete a um exame melhor das imposições que o capital financeiro está fazendo aos Estados nacionais. O Estado surgiu em determinado momento de desenvolvimento da sociedade, quando esta passou a ficar envolta em inconciliáveis contradições de classe. Não apareceu como algo imposto, de fora para dentro, mas foi um “produto da sociedade em um estágio determinado de sua evolução”, “um poder colocado, na aparência, acima das classes”, com o objetivo de administrar as contradições, “atenuá-las”, “mantendo-as dentro dos limites da “ordem”, para que a sociedade pudesse se desenvolver. Nos marcos do capitalismo, e na época do imperialismo, o Estado se reforçou extraordinariamente, do ponto de vista do arcabouço legislativo, do aparato repressivo e da máquina militar. Tudo para que, desenganadamente, ficasse assegurada a “onipotência da riqueza”.(1)

A “onipotência da riqueza” se expressou como onipotência do capital financeiro, ou do capital rentista, desde o início do século XX, quando o capitalismo assumiu a forma de imperialismo. O capital rentista auferia maiores rendimentos que o capital produtivo já em 1916, como mostrou Lênin, sendo esta a base do parasitismo do imperialismo, de sua propensão a crescer à margem da produção. Quando hoje se diz ser a “globalização” o “domínio do capital financeiro”, incorre-se em imprecisão, vez que esse domínio vem desde o início do século passado e a própria expressão – “domínio do capital financeiro” – foi usada por Lênin em 1916, em sua clássica obra sobre o imperialismo, exatamente para caracterizá-lo.

Contudo, sobretudo a partir da década de oitenta do século passado, promoveram-se mudanças importantes na dinâmica do capital financeiro. Traços distintivos fundamentais delinearam-se nessa fase a que se acostumou chamar de “globalização”. Surgiram formas novas de acumulação de gigantescos capitais financeiros, como os fundos mútuos e fundos de pensão. Desenvolveram-se mecanismos inovadores de formação de “capital fictício”, os ativos inflacionados, e transferiram-se enormes riquezas reais para o setor financeiro, via serviços de dívidas públicas e políticas monetárias determinadas.

As privatizações se constituíram no ardil que permitiu principalmente ao capital financeiro o controle de enormes ativos sem aporte correspondente de dinheiro. Prioridades foram definidas para telecomunicações, mídia, saúde e previdência privadas. E “novas formas de investimento” foram introduzidas, dando outra substância aos intitulados IED, “investimentos externos diretos”, que passaram a usar, como dinheiro, licenças, patentes e ativos chamados… imateriais. Também outros expedientes ganharam foro de dogmas, como as metas de inflação baixa, a liquidez, o superávit fiscal e o risco-país.

Todas essas alterações e políticas específicas, e os expedientes, foram impostos a diversos países, generalizando-se isso que, em linhas gerais, foi o receituário neoliberal que predominou durante mais de duas décadas, e é essencialmente a política atual do capital financeiro no mundo.
Os ganhos que essa política trouxe ao sistema financeiro internacional foram estupendos. A partir da década de 80, os “investimentos externos diretos” suplantaram o próprio comércio exterior no movimento de capitais, sendo que o IED do setor financeiro foi o mais importante. Em 1992, os ativos financeiros acumulados no mundo já eram o dobro dos PNBs de todos os países desenvolvidos (OCDE)!(2) A hegemonia do capital financeiro colocou-se em um nível extraordinário.

Importante acentuar que o instrumento básico para a implementação e controle dessa política nos diversos países tem sido o Banco Central – que coordena a política cambial, a política de juros, a emissão de moeda e é ainda, ele próprio, o banco que em última instância empresta aos demais bancos. Por isso, do ponto de vista do capital financeiro, a manutenção desse instrumento em mãos de pessoas perfeitamente integradas ao pensamento hegemônico passou a ser vital. Surge daí a questão da independência ou autonomia do Banco Central.

Banco Central independente, Banco Central blindado

Os Estados modernos nos países capitalistas desenvolvem-se continuamente segundo algumas vertentes. Uma delas diz respeito à representação cada vez mais aperfeiçoada que consegue ser dos interesses dominantes em seu país, seja através de legislação adequada, seja de mecanismos coercitivos respeitados e legitimados, seja através de aparatos bélicos. É nessa esfera que se define a marca de classe do Estado. Mas, outra vertente, por onde os Estados modernos se desenvolvem, a despeito de idas e vindas, é a da democratização. As massas populares, em decorrência dos avanços políticos e organizativos que acumulam, apesar das dificuldades, conseguem situar, junto ao Estado, posições cada vez mais importantes.

Surge daí a possibilidade de setores populares, ou camadas burguesas não representativas do setor financeiro, em aliança ou não, chegarem a posições de mando, em decorrência de vitórias conquistadas em batalhas políticas. Em seguida aparece a hipótese de essas forças quererem então mudar a política monetária do Banco Central.

O simples fato de essa possibilidade existir levou os financistas a desenvolverem uma tese que surpreende tanto por ser exótica quanto por ser levada a sério e aceita em largas camadas. Sustentam que “existe uma única política monetária correta, tecnicamente definida, economicamente neutra, que tem como pressuposto absoluto a estabilidade da moeda”, que é a política monetária em vigor, em razão do que, para que ela não corra o risco de ser mudada, faz-se necessário “isolar o Banco Central, como autoridade política, da influência de órgãos públicos representativos como o Parlamento e o Poder Executivo”.(3)

Precisamente para “isolar o Banco Central”, para colocá-lo sob a proteção de uma redoma blindada que o proteja das injunções políticas decorrentes de eventuais vitórias eleitorais de adversários, é que se levanta a figura do Banco Central independente. Independente de quem? Do Executivo e do Legislativo. Em outras palavras, inacessível ao povo através de seus representantes.
Dar independência, ou autonomia, ou autonomia operacional (essencialmente a mesma coisa), aos bancos centrais passou a ser ponto importante do ideário neoliberal. Seus diretores passariam a ter um mandato fixo para cumprir metas estabelecidas pelo Poder público (relativas ao sistema financeiro, e “sugeridas” pelos técnicos desse sistema).

Mandatados, esses diretores não poderiam ser afastados nem pelo presidente da República.
Diversos países foram levados a adotar a independência de seus bancos centrais. As características da independência variam, havendo mandatos que são de quatro anos, outros de oito, e havendo objetivos que oscilam entre a exclusiva defesa da moeda, ou da defesa da moeda aliada a crescimento econômico. O governo trabalhista de Tony Blair, em 1997, tomou a iniciativa de promover a independência do Banco Central inglês. Pelo menos mais trinta países fizeram coisa semelhante.
O problema para o Brasil, o espectro da “terceirização”

Eis que no Brasil, na bela primavera de 2002, uma frente de oposição antineoliberal ganhou as eleições. O perfil do presidente eleito talvez tenha sido o símbolo mais nítido da mudança que o povo queria no Brasil – um ex-operário metalúrgico, ex-retirante nordestino. O discurso da campanha, por ele encabeçado, era claro quanto aos objetivos que buscaria: um novo rumo para o país.

De logo, um problema se colocou: a política monetária do Banco Central iria mudar? Sim, dizem quase todos os vitoriosos. Não, dizem os setores financeiros hegemônicos. Os vitoriosos, recém-chegados ao governo sustentando bandeiras de mudança, sabem que é preciso mudar a política do Banco Central para incrementar o desenvolvimento, o emprego e a soberania – que em campanha prometeram. Sabem, por exemplo, que não podem fazer investimentos estatais para alavancar a economia e criar emprego, se o Banco Central mantiver a política de juros altos.

Contudo, os setores financeiros perderam o governo, mas não o poder econômico; e isso lhes possibilita interferir nos destinos do país, estabilizar ou desestabilizar sua economia, chantagear. De imediato indagam: mas, querem o desequilíbrio? A desestabilização? A volta da inflação? O risco-Brasil em alta? E com o vasto cabedal formulado nos últimos anos contra-atacam: “As forças vitoriosas têm todo o direito de incrementar sua política de viés social, pois para isto foram eleitas. Mas, acima de todas as tendências, acima da esquerda e da direita, está o interesse maior da nação, que a todos une, e que é o de resguardar a política do equilíbrio, da estabilidade e do controle da inflação. Razão pela qual o Banco Central, mesmo com a nova política do governo voltada para o social, que respeitamos e apoiamos, deve continuar com a política monetária da estabilidade, que é a política em curso. E para que isto fique institucionalizado, e em definitivo a ameaça de retorno da inflação seja espancada, faz-se necessário transformar o Banco Central em independente ou autônomo, ou com autonomia operacional, aliás, segundo os acordos havidos”. Os acordos havidos, referidos na simulação realista apresentada acima, partem do Acordo com o Fundo Monetário Internacional assinado pelo governo brasileiro de FHC em 4 de setembro de 2002, antes das eleições de outubro. Seu objetivo expresso é “garantir a estabilidade econômica e proporcionar um arcabouço para a continuidade das principais políticas macroeconômicas no ano vindouro (de 2003)”. Estabelece, ainda, que o governo brasileiro faria aprovar a Proposta de Emenda número 53, de 1999, que altera o Artigo 192 da Constituição, que permitirá “ao próximo governo, submeter ao Congresso uma proposta de autonomia operacional do Banco Central do Brasil”.

O Artigo 192 da Constituição prevê que a regulamentação do Sistema Financeiro Nacional, com todos os seus variados temas, seja feita por uma única lei complementar, segundo juízo do Supremo Tribunal Federal, em 1993. Daí por que o então senador José Serra elaborou sua PEC 53, permitindo que a regulamentação do dispositivo 192 da Constituição possa ser feita por partes, e desconstitucionalizando (liberalizando) sete outras matérias. A PEC 53 já foi aprovada no Senado e nas Comissões competentes da Câmara, estando pronta, desde agosto de 2001, para ir ao plenário.

Então, estão assim as coisas postas para o governo Lula: FHC passou oito anos à frente do Estado brasileiro e não encaminhou a independência do Banco Central do país; essa independência, ou que outro nome tenha, não serve aos interesses da mudança prometida ao povo por Lula e seus aliados; se feita, cria e engessa sério obstáculo ao desenvolvimento do país e à política de emprego para seu povo; estando a PEC 53 pronta para ir ao plenário da Câmara FHC não se sentiu encorajado a fazê-lo, por causa do risco de não conseguir maioria constitucional para aprová-la. Por que então o governo Lula, se conseguir aglutinar tão difícil maioria, teria que pô-la a serviço de desígnios tão estranhos aos seus interesses?

Ademais, por que na hipótese de ser aprovada a PEC 53, o governo Lula teria que, em seguida, encaminhar ao Congresso projeto de lei complementar para tornar independente, ou dotado de autonomia operativa, o Banco Central brasileiro?

A ironia de Lula ao falar em “Estado terceirizado”, revela a compreensão justa que o presidente está tendo de que existe o risco de ele ficar presidindo um país gigantesco sem ter o poder de tomar decisões fundamentais, nem mesmo ser consultado sobre elas, posto que, se o Estado não está terceirizado, pode acontecer que setores essenciais o estejam ou fiquem.

Batalhas políticas sérias se avizinham. Os setores hegemônicos estão mais ou menos confiantes no governo Lula, mas não estão dispostos a lhe entregar as rédeas do processo. O governo vive uma situação de transição, o rumo a ser seguido está sendo objeto de disputa. As pressões serão grandes da parte de quem foi alijado do governo, mas tem o poder econômico, e em decorrência o acesso à mídia, ao jogo das bolsas, ao dólar. O espectro da inflação é arma de chantagem que esses setores usam desavergonhadamente.

Não se deve subestimar as dificuldades para se travar a batalha contra a independência, ou autonomia, do Banco Central. Será insuficiente apelar apenas para firmeza ou coerência de autoridades e congressistas. É preciso engendrar táticas políticas e parlamentares apropriadas, buscar articulações não só com setores populares, mas com setores empresariais amplos, não ligados ao capital financeiro, aproveitar as nuanças do processo político para tomar iniciativas oportunas que desloquem o tratamento de certos assuntos para outra ocasião. É preciso, sobretudo, mobilizar o povo, esclarecê-lo, contribuir para a elevação de sua consciência, pô-lo em ação. Enfim, todo esforço deve ser feito para se criar uma opinião generalizada contrária à independência do Banco Central, para o que deve se vincular essa independência ao nefasto processo flagrado por Lula de “terceirização do Estado”. Não esquecer de que uma idéia correta, uma teoria, como disse Marx, se transforma “em força material, quando ganha as massas”.

*Haroldo Lima é vice-presidente do PCdoB.

Notas
(1) Lênin, O Estado e a Revolução.
(2) Chesnais, A Mundialização do Capital, p. 244.
(3) Morais, L. “A questão da independência do BC”.

EDIÇÃO 68, FEV/MAR/ABR, 2003, PÁGINAS 22, 23, 24, 25