A morte programada da República das letras
A «reforma» realizada na pesquisa e no ensino superior público é qualificada por seus autores de «modernização». Essa reforma introduziu o privado. Diretamente pelo viés das filiais, da mudança de estatutos, de contratos, de indivíduos e, indiretamente, pela promoção de um modo «empresarial» de gestão de pessoal, de orçamentos, de projetos de pesquisa e ensino. Essa modernização é, de acordo com seus autores, a conseqüência da reestruturação profunda das instituições, do pessoal, dos métodos concernentes e do próprio espírito da pesquisa. Atacam-se ao mesmo tempo os meios de trabalho, os estatutos do pessoal e das instituições; e a pertinência do desenvolvimento científico e pedagógico, a dignidade e a liberdade dos pesquisadores.
Trata-se de um ataque contra o que se chamava de «República das Letras», isto é, o corpus social, sem uma constituição formal, na maior parte das vezes constituído de funcionários («pensionistas») do Estado que, desde a Renascença, num espírito de liberdade e de abertura, inicialmente na Europa, depois no mundo todo, difundia, produzia e transmitia o saber «clássico» (ciências, letras, artes).
Essa «reforma» é o declínio nacional de uma evolução mundial. Descrever o mecanismo destrutivo realizado por esse ataque necessita de uma análise do discurso neoliberal e da filosofia científica que a acompanha. Desmontado esse mecanismo, além da refutação, ponto por ponto, podem-se esboçar novas perspectivas.
A situação antes de reforma
A situação francesa, fruto da resistência e da libertação, mas também da longa história das instituições estatais e nacionais desde François I, caracterizava-se, em relação aos outros grandes países do mundo ocidental, pela diversidade e importância das instituições públicas, resultantes de diferentes épocas:
A alta Idade Média, com as primeiras Universidades; O Renascimento, com o Collège de France; Os séculos XVII e XVIII, com as academias, os arsenais e as manufaturas, os museus; A revolução, com as grandes escolas, os conservatórios, os grandes ministérios; O século XIX, com a instituição e o desenvolvimento do Ensino Público; A libertação, com o CNRS, o CEA, as grandes empresas nacionais.
A reforma geral, de forma brutal
Para realizar essa reforma geral, era preciso, simultaneamente: lançar uma campanha na mídia, para convencer a opinião pública e os representantes da nação; lançar as mudanças textuais (regulamentares e legislativas); assegurar a neutralidade, até mesmo a cumplicidade, dos principais atores da pesquisa e do ensino superior (sociedades científicas, sindicatos, academias, associações, etc.).
A campanha na mídia
Como um ataque de artilharia, a campanha na mídia visa preparar o terreno para uma importante mudança. Na verdade, é preciso convencer numerosos atores – interno e externos – da necessidade, da pertinência, da possibilidade, das vantagens dessa mudança. Esse alarde de mídia, editorial, quando examinado através das contradições, mentiras e dissimulações, permite formar-se, simultaneamente, uma idéia a respeito dos objetivos da reforma e de seus motivos teóricos.
Descobrem-se os argumentos de ordem filosófica, ideológica, econômica, política, científica e técnica,
que, em outras circunstâncias, seriam esquecidos, talvez até dissimulados.
Além da falsificação histórica, o procedimento que consiste em opor e atiçar as profissões, uma contra a outra (confundindo seus papéis e esquecendo suas recíprocas contribuições – uma boa cultura acadêmica em geral foi a base da formaçao dos engenheiros até uma época recente -, suas escolhas e respectivos gestos) é exemplo próprio da barbárie introduzida na esfera intelectual.
De acordo com os “modernos”, somente sobreviverá a “big ciência”, que necessita de aparelhos colossais, que apenas as organizações multinacionais podem operar, em centros onde um batalhão de cientístas transformados em técnicos especializados só devem ter um espaco muito restrito de autonomia e de conhecimento (pois eles devem se especializar bem depressa). Na verdade, é preciso separar os níveis de concepção, de construção e de utilização desses gigantescos instrumentos. Em geral, e sempre foi assim, impossibilitou-se que os cientistas-exploradores construíssem seu próprio navio (que, no século XVIII representava uma despesa muito grande). Mas eles devem participar da concepção, responder as questões dos construtores e formular outras. É a mesma coisa para um acelerador, um foguete, um reator, um computador. Em seguida a interncionalização era uma das bases dessa “República das Letras” do século das luzes: Alexandre von Humbolt conta, em sua Viagem as Américas, que seu salvo-conduto valia em tempo de guerra. Ele embarcava com seu material em uma corveta inglesa para chegar a um ponto da costa da Venezuela. Da mesma forma uma equipe de cientistas franceses, que partiu do Taiti sob o reinado de Luís XVI, voltou a Paris, passando por Londres, em plena geurra anglo-francesa, sob a Conveção (Almirante Julien de la Graviére, “Memórias de um marinheiro de antigamente”) com todo o seu material e suas economias (em ouro!!!)
Obviamente, os argumento são mais de ordem ideológica que filosófica: é preciso colocar a ciência a serviço dos dirigentes da indústria e da finança, com a elite internacional dirigindo o mundo.
Conseqüências para os pesquisadores, os laboratórios e as pesquisas
Essa política causa inúmeros «estragos colaterais»: muitos laboratórios fechados, equipes dissolvidas, pesquisas abandonadas, instrumentos destruídos, funcionários desmotivados, assustados, até mesmo deprimidos. Na verdade, para aqueles que fizeram a escolha pela pesquisa pública, é a negação de todos os princípios, de todos os valores pelos quais haviam escolhido essa profissão.
As conseqüências para a posição da ciência na sociedade
Uma ciência sob tutela
Por um lado, o autoritarismo, as ameaças, a hierarquização, mataram em grande parte o debate na comunidade «oficial». Assim, surge um «pensamento único», e, à sua margem, os «marginais», não reconhecidos pela comunidade, freqüentemente reduzidos ao silêncio. O pesquisador «oficial» aparece assim como uma figura neutra. Evidentemente, essa situação é atribuída ao estatuto do funcionalismo (estável ou contratado). No seu «tratado da pintura», Leonardo da Vinci apregoa e se orgulha de sua posição de funcionário, artista de Florença. Os reestruturadores-avaliadores de sua época, os bons padres, finalmente levaram Leonardo a fugir para a França, a aliada dos turcos…
Por outro lado, a intromissão maciça dos interesses privados (laboratórios mistos com industriais, contratos, criação de filiais, privatização de serviços, aplicações financeiras cruzadas, prêmios científicos como Philip Morris), tutelaram a pesquisa e o ensino superior. Assim, o presidente de Paris VI tenta, em tese, obrigar os estudantes a assinar um compromisso de exclusividade, proibindo publicações e contatos com o exterior sem prévia autorização. Essa tentativa abortou graças à ocupação do 22º andar da alta torre de Jussieu.
É preciso ressaltar, nessa história, o papel nefasto da Europa, que só subvenciona a pesquisa por meio de «contratos», incluindo os salários. O ministério reveza essa política com a substituição dos cargos estatutários por cargos de CDD, baixando a sustentação de base e tornando a pesquisa «contratável». Ora, nesses «contratos», os dois parceiros não estão em pé de igualdade: os contratos europeus e ministeriais são uma verdadeira tutelagem num eixo determinado (os seis eixos atuais correspondem exatamente aos seis eixos do CNRS e das maiores universidades), num método definido, com parceiros, se possível, industriais ou financeiros: laboratórios de física teórica são assim «incitados» a trabalhar sobre um modelo financeiro.
O pesquisador (universidade, CNRS, CEA, INSERM, etc.) é a tal ponto «dependente», que certas fundações privadas (das quais não se conhece o estatuto dos funcionários e nem mesmo os financiamentos…), qualificam-se como «independentes», em oposição à pesquisa pública. Volta-se à distinção entre ensino público e privado, sendo que este último se proclama «livre».
Em inúmeros casos, os pesquisadores do setor público foram acusados de serem dependentes dos recursos de financiamento externo. Todas as ciências foram atingidas:
– a Mineralogia, com o caso do amianto;
– a Biologia, com os casos do sangue contaminado, dos OGM, do relatório sobre a água, da telefonia sem fio (celulares), da vaca louca, da clonagem humana;
– a Física, com os pesquisadores acusados de trabalhar em armas de destruição em massa, ou simplesmente de aperfeiçoar a vigilância de toda a população;
– a Meteorologia, acusada de vender a seus melhores clientes as melhores previsões, recebendo subvenções governamentais para a previsão de marés negras ou de efeitos climáticos, como o efeito estufa;
– a Oceanografia, com o problemas de recursos marinhos, o IFREMER acusado de estar sob contrato europeu e de fornecer pareceres enviesados;
– a Antropologia, cujos pesquisadores facilitariam a intromissão de multinacionais sobre os recursos locais (selvas e desertos da Ásia, África e das Américas, do Pólo Norte);
– a Sociologia, com pesquisadores convidados, via contratos (fundação Rockfeller), a refletirem a respeito de métodos suscetíveis de tornar a população receptiva a decisões que recusava.
Desacreditando a ciência
A prioridade concedida à chamada «demanda societal» torna dependente o trabalho do pesquisador, e exclusivo do comanditário o resultado das pesquisas, cujo efeito é destruir a universalidade, a transparência desse resultado. A ciência torna-se, assim, esotérica. Ela não se refere mais a um «universal», como os filósofos da Antiguidade, da Renascença e do século das Luzes, mas a um «paradigma», muito bem descrito por Kuhn, referência local, singular a uma comunidade, em relação aos métodos, à linguagem, aos resultados: uma empresa proíbe a publicação dos resultados de uma pesquisa financiada por ela se for prejudicial aos seus interesses. De acordo com Kuhn, a teoria do paradigma incita a definir o cientista não mais em função da «lógica da pesquisa», mas em função da «psicologia do pesquisador», que o leva a uma grande obediência…
Esse descrédito da ciência e dos pesquisadores é acompanhado por uma menor publicação de livros científicos no nosso país, pois eles precisam de um investimento a longo prazo, incompatível com os atuais critérios de avaliação. Isso leva a uma baixa maciça de inscrições nas ciências exatas das universidades: 40% nos últimos anos. As grandes faculdades ainda não foram atingidas, pois seus cursos levam a uma carreira que pode ser administrativa, industrial…
O desmoronamento do sistema científico parece próximo, em particular pela falta de reciclagem dos transmissores do conhecimento, sob o pretexto da evasão estudantil.
Oretorno do mágico e do religioso
Uma outra conseqüência é a retomada de tudo o que é esotérico, mágico, religioso. A razão torna-se inimiga; a reflexão, impossível; o saber prejudicial. A realidade, incompreensível; a verdade, relativa e individual. Os primeiros beneficiados são as seitas, os astrólogos, os publicitários, os vendedores de videogames, de romances (Harry Potter), de filmes e de lazeres «mágicos» (Walt Disney).
Mas os verdadeiros beneficiados são e serão as igrejas, únicas habilitadas a recuperar a herança pela morte da pesquisa e do ensino público: toda vez que uma escola torna-se inviável num bairro, perigosa para as crianças, eles se dirigem para o ensino privado. Só os jesuítas, os marianistas e outras congregações cristãs, muçulmanas, judaicas, hinduístas ou budistas podem construir, introduzir, manter escolas em todos os locais do planeta, rivalizando com as melhores instituições públicas.
Assim, na Nicarágua, em plena revolução sandinista, os jesuítas continuavam a ensinar física, com trabalhos práticos, na universidade católica de Manágua. Nos países da América Latina, as universidades e faculdades católicas são muito disputadas (acarretando grandes despesas para os pais) por todos os estudantes das classes médias, que continuarão seus estudos, e freqüentemente suas carreiras, nos EUA.
Volta ao contexto exterior, francês e mundial
Os textos fundadores da privatização- privatização pretende ser global em todos os países, pobres e ricos, grandes e pequenos; global em tudo, produção de objetos e de serviços (securidade, saúde, educação, seguro bancário…). É o objetivo dos próximos acordos da OMC, chamada atualmente de AGCS, e antigamente de AMI. As grande diretrizes desse projeto para o 3º milênio encontram-se particularmente nos textos da Comissão Trilateral, a OCDE, Davos, OTAN, a Comissão Européia, e outros fóruns, nos quais só a casta dominante, a «elite» ocidental tem direito à palavra. Essa política, em relação às nossas instituições científicas, é a tendência do nosso setor e do nosso país de uma política geral, elaborada pelas castas dominantes do planeta. Citemos um exemplo de «elite»: o Sr.
David Packard, falecido, foi o co-fundador, em 1996, de um grande fabricante de computadores (HP), professor em uma universidade católica americana (Notre Dame), membro do Council for Foreign Relation e da Comissão Trilateral. As universidades americanas, públicas ou privadas, têm muito a ganhar com a destruição das universidades de outros países.
Os grandes princípios são: volta do contrato, redução do espaço legal, de forma a defender os interesses dos grandes proprietários, privatização, desregulamentação e globalização.
De certa forma, é a volta à sociedade feudal, regida pelo contrato, com as três ordens: a nobreza, isto é, as forças repressoras militares e policiais; as ONGs e as Igrejas, encarregadas da santidade, da educação e da caridade aos pobres; a burguesia dominando a economia.
Exemplos estrangeiros
É interessante citar alguns exemplos estrangeiros: na Rússia, depois do fim do sistema soviético, a maior parte dos cientistas fugiu. Aqueles que permaneceram sobrevivem graças a contratos estrangeiros.
Na Grã-Bretanha, o processo de privatização geral, e principalmente na pesquisa e no ensino superior, atingiu o paroxismo. Na Europa, esse país é realmente o precursor dessa política, bem descrita no livro l’Etat captif (O Estado prisioneiro), que logo será lançado na França. Tudo é privatizável. Isso, no âmbito intelectual, leva à perda total de liberdade para os pesquisadores, provocando graves crises sanitárias (notadamente a da vaca louca).
Nos países do Terceiro Mundo, pode-se freqüentemente dizer que não sobrou mais nada. Os raros projetos que subsistem não têm nenhuma autonomia intelectual e material em relação ao Norte.
Os danos da privatização
Essa política destrói qualquer política local, nacional, de solidariedade, de desenvolvimento, de saúde, de defesa, de transporte, de educação, de divisão territorial. O pesquisador «reconhecido internacionalmente», na verdade, não passa de um peão, de um instrumento da política das multinacionais, a serviço das quais são colocados sua experiência, seu saber, seu eventual prestígio (prêmio Nobel, etc.). Assim, a «República das Letras» foi totalmente corrompida, infiltrada, desviada de seu objeto e de sua essência. Ela não é mais um instrumento do progresso da humanidade, mas de sua sujeição.
Um filósofo grego, citado por Vitruve no seu tratado de Arquitetura, declarou que o maior tesouro que se pode legar aos herdeiros é aquele que, no pior dos naufrágios, dá para salvar: só o saber permite, em qualquer lugar do planeta, reconstruir uma família, uma cidadania, um trabalho, amigos. Ora, a privatização do ensino e da pesquisa priva os povos do planeta desse saber, retirando-lhe sua propriedade (principalmente seu usufruto, pois ele pertence a todos); esse saber do qual só uma ínfima minoria mundial que possuir o instrumento de trabalho poderá ter. Os cidadãos tornam-se totalmente desarmados diante de ações prejudiciais (amianto, ondas de calor, efeito estufa, poluição, guerras…) das multinacionais que, afinal, obtêm o embargo de propriedade sobre a subsistência e a liberdade dos indivíduos (Microsoft, Monsanto…).
Para qualquer indivíduo, coletividade, nação, o uso de um serviço, objeto, necessário a sua existência, ou agradável aos sentidos ou a sua inteligência, não passa mais por um trabalho de adaptação, de reapropriação ou de invenção, de um hábito ou de um saber aberto a todos, mas pela compra por um trabalho picado, que não lhe pertence mais, e do qual ele não possui nem o começo nem o fim, ou pela venda (e perda) de seu patrimônio. Os indivíduos mais pobres (cerca de cinco a seis bilhões) são proibidos de viajar. Somente os objetos e tecnologias patenteados e licenciados são difundidos, à força se necessário, a todo o mundo. E, com essa difusão, é proibido fazer uma cópia, uma adaptação local independente: as idéias, os processos de fabricação, as descobertas são cada vez mais confidenciais,
É o contrário do espírito de Diesel, cujo motor, não-patenteado, foi concebido precisamente para poder ser copiado, adaptado e utilizar a maior quantidade possível de opções de combustível. Uma classe social reduzida, por mais inteligente e formada que seja, não pode regular o mundo por todos os outros: irá gerar pobreza, catástrofe ecológica, guerras, miséria, fome, epidemias. Ela pretende cuidar desses problemas com a caridade e os agrava: a distribuição do superávit industrial, agrícola, farmacêutico beneficia os traficantes de qualquer espécie, destruindo as últimas atividades criadoras e produtivas que poderiam subsistir.
Fora das zonas cada vez mais reduzidas, onde são concebidos esses produtos que se impõem no planeta, o mundo é progressivamente invadido por objetos, edifícios, tecnologias, veículos iguais. O mundo se uniformiza e se torna feio. Os mais pobres só tem o direito de ficar com o superávit e os dejetos dos ricos. Os recursos do planeta são desperdiçados, levando o futuro a uma gestão regida pela força.
Se, ao contrário, houvesse uma política que transferiria o mínimo de objetos e de serviços, mas o máximo de indivíduos e de saber, isso permitiria uma adaptação local mais criativa, mais estética das ciências e tecnologias. Permitiria o intercâmbio de descobertas científicas, de invenções técnicas e artísticas, para o maior benefício de um maior número.
Um exemplo
Afora os escândalos mais comuns (experiências biológicas no Terceiro Mundo, falta de cuidados por motivos financeiros, estrangulamento de países inteiros por peritos «econômicos», destruição de paisagens, de conhecimentos por empresas «atuantes«…), há conseqüências mais sutis que eu gostaria de ilustrar com um exemplo. A substituição dos sistemas de transporte coletivo (canais e trens) pelo carro individual é uma ilustração da política mundial. Além da dependência em relação ao petróleo e à força militar americana, além da poluição petrolífera, a destruição desses sistemas coletivos tem três conseqüências, encontradas na quase totalidade nos modernos sistemas de transporte, de comunicação, de saúde, de construção:
1) uma desqualificação geral do trabalho. A construção de uma estrada é muito menos qualificadora que a de uma estrada de ferro ou de um canal. A gestão de uma rede ferroviária demanda todas as qualificações: controladores, engenheiros, mecânicos e eletricistas qualificados. Einstein teve a idéia da relatividade ao examinar as patentes registradas para sincronizar os relógios, quando se construíam as redes ferroviárias. Ora, quanto mais um grupo assalariado é estruturado e qualificado, mais ele tem a tendência a fazer greve e se mostrar descontente com suas condições de trabalho. Essa desqualificação serve então para justificar a destruição da instrução pública por ser inadequada. Isso provoca uma baixa geral do nível de instrução e, portanto, do nível geral de civilização.
2) Uma desfiguração maior das cidades e das paisagens, uma destruição do meio ambiente, um caos urbano total, uma segregação social e racial. As estações das redes ferroviárias mantêm-se, geralmente, como obras-de-arte que se inserem perfeitamente na arquitetura local, ao contrário desses gigantescos postos de gasolina e supermercados que enchem as estradas. A importação de tecnologias totalmente opacas necessita impor «normas» de qualidade (ISSO 2000) que devem ser seguidas sem nenhuma discussão, impedindo qualquer adaptação local artística, ambiental ou política, seja na utilização ou na produção. Abandonados os costumes, destruída a formação artística, a construção e a utilização do sistema de transporte não pode mais levar em conta regras estéticas.
3) Uma ineficácia econômica maior: fora dos países que dominam os mercados mundiais (essencialmente os do OCDE, mais, talvez, a China e as monarquias petrolíferas), os países se encontram totalmente dependentes das multinacionais, impondo-lhes uma economia que não corresponde em nada a suas necessidades: eles importam petróleo e veículos a um custo alto, poluindo seu ar, ocupando seu solo, matando suas crianças. Os carros percorrem cidades gigantescas a 10, até mesmo 5 km/hora, realizando um trabalho que poderia ser feito perfeitamente por bicicletas, com calçadões arborizados, metrôs, canais e trens, com toda a segurança. Um governante angolano contou-me que, com a independência, Angola foi proibida de importar material ferroviário, necessário a sua rede. A primeira coisa a ser privatizada e desmantelada, na política neoliberal, é o sistema ferroviário.
Na fachada de um magnífico edifício do século XIX, em Manhattan, há uma frase em francês, em homenagem a Luís XI, Richelieu, Colbert e todos os franceses que reconstruíram o correio público: é o correio público central. Desde então, de acordo com as diretrizes da Trilateral, o correio francês foi desregulamentado e logo privatizado. De acordo com Gibbon, o autor de Chute et déclin de l’empire romain (Queda e declínio do Império Romano), a existência do correio público é um indício de civilização de um país: o que pode ser da República das Letras sem correspondências longínquas, seguras e rápidas?
Portanto, trata-se do planejamento do caos global, no qual os mais ricos, os mais fortes, impõem seu direito, seu ponto de vista: de certa forma, trata-se da versão moderna do julgamento de Deus, o combate dos dois protagonistas que substituiu na França merovíngea os processos romanos. Na maior parte dos países, isso leva à eliminação de qualquer instituição de pesquisa e ensino digna desse nome. Instala-se um deserto cultural, científico e artístico. O país torna-se cego, e só pode seguir as diretrizes das instituições internacionais.
As fundações e ONGs são uma solução?
Na pesquisa, inúmeras fundações são freqüentemente citadas como um exemplo a ser seguido, apesar do exemplo da ARC e de outras associações denunciadas pelos sindicatos.
Portanto, é preciso examinar o papel das ONGs: não se trata, também, de uma privatização da ação social, cultural e intelectual? Maquiavel, no seu «Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio», nota que os romances condenavam, como o maior crime, a caridade que vemos como uma boa ação. Os romanos consideravam que a caridade era um meio do patrício perverter a república, já que convertia seus clientes em seus dependentes, ao passo que os cidadãos livres são dependentes apenas da cidade. Para os romanos, a liberdade da cidade e dos cidadãos não poderia aceitar grandes defasagens de riquezas: a riqueza de alguns cidadãos é um perigo para a República. A chegada do principado, depois a cristianização e, finalmente, a destruição do império, deviam-se, de acordo com inúmeros autores clássicos, a essa concentração de riqueza e de poder nas mãos de uma ínfima minoria, concentração que vemos hoje em uma escala impensável. A riqueza de um punhados de indivíduos ultrapassa a da maioria dos países da terra e seu poder é superior ao mais poderoso dos monarcas: freqüentemente, eles dispõem de um monopólio planetário sobre um objeto (ex., os elevadores Otis) ou um serviço essencial (os sistemas de exploração Microsoft). De acordo com a nossa atual constituição, vinda da Libertação, «qualquer serviço ou indústria que se torna um monopólio deve ser nacionalizado».
Portanto, não é mais possível, conforme dizia Gibbon, fugir para um outro país quando se é perseguido em um: o pesquisador que atacar esses monopólios será renegado no mundo todo, por atacar o único fornecedor de um produto essencial.
Finalmente, surgem dois casos extremos: num, o indivíduo, a empresa, a cidade, se inserem num sistema que não é mais dominado em nada, pois todas as formas de intercâmbio local foram destruídas e substituídas pelas «licitações» internacionais, que garantem o predomínio total dos grandes grupos, tanto como licitadores quanto como licitantes. Em outro, esses se excluem do sistema, se auto-organizam e são apenas tolerados, na medida em que se restringem a um sistema do tipo da máfia. Eles não apresentam nenhuma perspectiva de ameaça para o sistema mundial, o chefe, os padres, garantindo, por meio de finanças, a neutralidade da tribo e, se preciso, a sua cooperação.
Existe alguma alternativa?
Uma volta ao passado
Quando a Idade das Trevas se instalou, com a queda do Império Romano, as escolas de filosofia foram fechadas (por Justiniano, em 550), as bibliotecas pilhadas, dispersadas, queimadas. Na «Intolerância Religiosa e a Política», Bouché-Lecler cita um pensador cristão, Felix Minucius, declarando aos pagãos: «vocês punem os crimes cometidos; entre nós, até o pensamento é um pecado». A Igreja decide o que é verdadeiro e ninguém pode duvidar disso. A Renascença é uma redescoberta dos textos antigos e um ressurgimento do ato crítico. Sem dúvida alguma, a queda do Bizâncio no meio do século XV trouxe engenheiros, documentos e segredos escapados dos palácios de Constantinopla. Os pensadores gregos e latinos foram traduzidos e copiados, às vezes sem nem mesmo serem citados. Mas nos reinos e repúblicas cristãos, tanto o poder político quanto o religioso não podiam aceitar uma liberdade muito grande dos intelectuais, dos letrados, dos sábios. No entanto, o exemplo da Antiguidade mostrou que era necessário um mínimo de liberdade para o desenvolvimento dos conhecimentos científicos e artísticos, garantias da manutenção da potência, ou até mesmo da existência do mundo cristão. O compromisso vindo da Renascença, de criação de prêmios, academias, institutos reais, bolsas e subvenções, por um lado, garante créditos e honras, mas, por outro, garante também o controle da comunidade de sábios, letrados e artistas. Em seguida, foi introduzida uma certa liberdade de organização (no século XVII), chamada de «República das Letras».
No século XIX, essa política chocou-se com um novo problema: a forma colonial surgiu na Renascença, de uma sociedade escravocrata ou neo- escravocrata, garantindo aos privilegiados das metrópoles rendas polpudas, tornando-se o sistema de base de toda a sociedade ocidental, dominando o mundo. Ora, a «República das Letras» trocava e publicava dados científicos, teorias, técnicas, tornando-se perigosa, pois uma enorme massa de trabalhadores, nas colônias e nas metrópoles, escravos de direito ou de fato, devem ser afastados desse saber, fonte de liberdade.
Para evitar o perigo, recusaram-se a construir uma universidade, até mesmo escolas, nas colônias, reduzindo a instrução exclusivamente ao primário. Só uma ínfima minoria de filhos de trabalhadores das metrópoles tinham acesso ao secundário. Em alguns casos, nos quais havia universidades nas colônias, em geral, eram destinadas aos brancos ou a minorias manipuladas pela potência colonial (hindus, nas colônias inglesas). A recusa em instalar indústrias e escolas técnicas ultramarinhas teve um impacto militar, impedindo a França de dispor de bases adequadas no império quando da invasão de 1940.
Nas metrópoles, a onda do nacionalismo e as guerras européias do século XX foram a oportunidade de militarizar a ciência, e de dar as primeiras estocadas nas liberdades científicas: o caso Dreyfus é também o primeiro caso de espionagem técnica. A guerra econômica manteve o papel das guerras mundiais e da Guerra Fria, pela sujeição da ciência aos poderes financeiros, políticos e religiosos (ideológicos). Pela disciplina imposta, pela taylorização das tarefas e competências, os grandes centros, os grandes projetos científicos são o pretexto para o controle total do pensamento, com o qual sonha qualquer sistema totalitário. Esses centros, segundo a teoria do paradigma, são o local onde nascem as «revoluções científicas». Fora desses centros, desses sistemas, tchau e bênção. A guerra que necessita, para a infelicidade das elites, de instrução para o povo, tem também um remédio: a caserna.
Qual outra política?
De acordo com Maquiavel, os problemas de Roma (que chamaríamos hoje de «luta de classes» e «revoluções») não causaram sua fraqueza, como se diz freqüentemente, mas seu poder, pois, assim, uma dinâmica contraditória levava a soluções, agia, preconizando o interesse geral. Da mesma forma, o grande sucesso do serviço público à francesa ocorre justamente pela manutenção de um equilíbrio entre a liberdade, que implica a existência de sindicatos livres, de diversos partidos, de pequenas empresas, e de um setor estatal poderoso (em torno de 50% do PNB), colocando a única verdadeira potência coletiva nas mãos da coletividade.
Ora, a política atual garante o total predomínio da oligarquia sobre a sociedade, cuja caricatura é a televisão – mediocracia berlusconiana. Os tratados de Maastricht e OMC mudaram a distribuição, permitindo à oligarquia tradicional de retomar seu poder sobre a economia e o Estado. Portanto, a sociedade está sob tutela. Como ao final do império romano, a religião totalitária da taxa de lucro, monoteísta, não aceita nenhuma reconsideração, nenhuma heresia. Ela traz o caos em tudo, em todo lugar… Sem uma renacionalização maciça, de bancos, seguros, arsenais, indústrias e transportes coletivos, indústrias de ponta, redes de comunicação, produção e distribuição de energia, minas… associada a um estatuto de agentes para preservá-la da precariedade, a liberdade estará perdida. É preciso reconstituir uma autoridade coletiva a serviço de todos (o Estado), para impor uma gestão racional de recursos.
Uma condição para o sucesso da renacionalização é o apoio na razão, na lógica e, portanto, na liberdade, ao preço, se necessário, de fracassos passageiros: «naufragando as colônias, sobrevivem os princípios». Assim, a Convenção mantém sempre a legalidade e Robespierre, para salvar a própria vida, recusou-se a usar a força do motim. A Revolução francesa, no seu caráter universal, e mantendo seus princípios, atravessa os séculos. Da mesma forma, é preciso reconstituir a «República das Letras», aberta, independente e exclusivamente a serviço da coletividade, única até para fornecer as soluções racionais necessárias.
Enquanto trabalhador intelectual, funcionário do Estado, um pesquisador científico não pode se envergonhar de sua posição. A liberdade de expressão, a garantia de independência em relação a todos os poderes, não é um privilégio, mas uma condição do exercício de sua profissão e de suas funções, que implica também uma grande responsabilidade. Ele deve descobrir perspectivas nessa época de pensamento único, de resignação, de volta ao mágico, de obscurantismo, de individualismo e de recusa do interesse geral. É como na caverna de Platão, com sua experiência, ele deve explicar aos outros condenados os movimentos incompreensíveis das sombras.
Só a volta aos princípios (primazia da razão, liberdade de expressão e de pensamento, abertura e desejo de progresso intelectual, primazia do interesse coletivo sobre o privado…) que haviam inspirado os membros da «República das Letras» permitirá uma renovação científica. Esses princípios não devem ser confinados a apenas uma minoria de intelectuais, mas devem inspirar a sociedade toda. E esses princípios não são compatíveis com uma sociedade na qual o poder público, que seria também o conjunto do povo, trabalhadores, estudantes, aposentados (por trabalho, doença, velhice), possuísse a potência produtiva principal, deixando a economia local se organizar como quisesse (artesanato, pequena indústria, pequeno comércio). São as únicas garantias da potência da cidade, de sua liberdade e a de seus cidadãos. São também as melhores garantias de uma coexistência pacífica entre os povos do planeta.
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Jacques Maillard é físico do Laboratório de Física Corpuscular do Collège de France. Texto escrito em fevereiro de 2003.
EDIÇÃO 69, MAI/JUN/JUL, 2003, PÁGINAS 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79