A o despedir-se do Senado, em dezembro de 1994, já presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso assim definiu o centro de sua tarefa à frente do executivo federal: colocar um fim à chamada “era Vargas”. É, disse, “um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade”. E, para não deixar dúvidas a respeito do que falava, completou: refiro-me “ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista.”

Abria-se mais uma etapa, talvez a mais grave, da luta entre o liberalismo de setores das classes dominantes brasileiras, do imperialismo e do grande capital (hoje designado como neoliberalismo), e a necessidade de reformas profundas na estrutura da sociedade brasileira para atender aos anseios de nosso povo e às necessidades do país. Trata-se de uma disputa que acompanha todo o período independente de nossa história, que se aprofundou depois da proclamação da República. Disputa que, depois de 1930, com a emergência de novas forças políticas dominantes que passaram a controlar o governo federal, colocou-se em outro patamar.

Até 1930, o conflito entre as duas correntes manifestou-se principalmente no choque entre os que defendiam a necessidade de industrialização, contra os que defendiam a vocação agrícola do país e a integração da economia brasileira no mercado mundial como produtor de produtos coloniais. A partir de 1930, a correlação de forças muda e o sonho industrialista começa a tomar forma num modelo de desenvolvimento que ficou conhecido, mais tarde, como nacional-desenvolvimentismo, cuja expressão mais clara deu-se no segundo governo Vargas, a partir de 1951, e que preconizava o uso dos instrumentos do Estado para a promoção da infraestrutura necessária ao desenvolvimento de uma indústria brasileira de bens de capital vista como a base para a industrialização autônoma do país.

Era um quadro difícil em que os novos dominantes não tiveram forças, ou disposição política, para derrotar de vez a velha oligarquia – derrotada em 1930, mas não eliminada. O poder político passou a ter novos sócios e a orientação econômica adotada contemplou também os interesses dos industriais, ao lado dos interesses do latifúndio e do grande capital comercial. Mesmo assim a industrialização se aprofundou – apesar da resistência dos velhos livre cambistas ligados ao latifúndio e ao imperialismo.

Sob seu governo, foi marcante a intervenção estatal em favor da industrialização. Vargas também criou condições para a incorporação dos trabalhadores à vida política ao adotar uma legislação trabalhista (que incorporou antigas reivindicações operárias) e ao transformar os sindicatos em verdadeiros órgãos do Ministério do Trabalho no movimento operário (subordinando a atividade dos trabalhadores e orientando-as dentro dos estritos limites permitidos pelo modelo de desenvolvimento adotado).

Este modelo voltou ao centro da política econômica brasileira depois de 1945, quando Getúlio foi deposto por militares ligados aos norte-americanos, e pela elite que via no nacionalismo do presidente uma ameaça a seus interesses. Assim, quando Getúlio voltou à presidência, trazido pelo voto popular, em 1950, nova crise se abriu. Embora moderado, o nacionalismo de Vargas assustava as elites e o capital estrangeiro, que se movimentaram para impedir sua posse.

O choque entre os dois modelos continuou sob Juscelino Kubitschek, que governou de 1955 a 1961. Juscelino fez uma mudança fundamental no modelo nacional-desenvolvimentista de Vargas e inaugurou um período de crescimento econômico baseado no capital estrangeiro cujo foco era o setor de bens de consumo duráveis (como eletrodomésticos, automóveis etc), abrindo as portas para as multinacionais, aprofundando um modelo, mais tarde chamado de dependente associado, aceitável para as classes dominantes, principalmente as elites agrárias e o capital financeiro, e para o imperialismo. Não alterava a estrutura social do país e tinha a vantagem, para elas, de manter o movimento operário sob controle. O latifúndio continuava intocado, o capital financeiro aprofundava a ligação com o imperialismo, a burguesia fazia bons negócios com as multinacionais e a classe trabalhadora parecia satisfeita com os empregos abertos pelas novas indústrias. Todos pareciam felizes e a concórdia parecia finalmente instalada na sociedade brasileira.

As contradições do período JK foram maquiadas pelo crescimento econômico. O ímpeto da produção industrial transformava profundamente a sociedade brasileira e, no campo, o impacto do capitalismo mudava a vida dos trabalhadores rurais com a crise do colonato (sistema em que o lavrador morava na fazenda e era remunerado pelo salário e pelo direito de ficar com parte da produção ou produzir para seu próprio consumo); começou, então, a crescer o número dos diaristas (depois conhecidos como bóias-frias).

A luta se agravou depois de 1961, quando Jânio Quadros, cuja eleição para a presidência foi encarada pelas forças conservadoras como uma “revolução pelo voto”, renunciou, abrindo caminho para que um herdeiro direto de Getúlio Vargas, o vice João Goulart, assumisse a presidência. Os ministros militares de Jânio tentaram impedir a posse de Goulart, iniciando uma crise que quase chegou à guerra civil.

Mas, foram derrotados e Goulart assumiu a presidência. Apesar de vacilante e ambíguo, seu governo foi marcado pelo esforço de implantação das chamadas reformas de base que poderia dar as bases para um desenvolvimento nacional autônomo. Pensava-se em ampliar a democracia, em realizar uma reforma agrária capaz de fixar o trabalhador rural no campo e formar um mercado interno para a indústria, adotou-se algumas medidas para disciplinar o capital estrangeiro (a principal delas foi a lei de remessas de lucros).

Quando Goulart foi deposto em 1964, os conservadores tentaram, inicialmente, voltar ao modelo de desenvolvimento liberal pré-1930, com Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos à frente da economia, durante o governo do marechal Castelo Branco. Mas, embora ditatorial, o período militar foi marcado pelo mesmo conflito entre os dois modelos de desenvolvimento, e a combinação contraditória entre as duas correntes – os militares ligados ao imperialismo, de um lado, e os nacionalistas de direita, de outro, marcou as disputas do período.

Ao contrário da opinião dominante – expressa por Fernando Henrique Cardoso em seu discurso de despedida do Senado – o modelo de desenvolvimento dos militares não foi o chamado nacional-desenvolvimentismo. O que se implementou nesse período foi o modelo associado dependente inaugurado sob Juscelino e, sob estas condições, o resultado foi uma internacionalização inaudita da economia brasileira. Uma presença maciça do imperialismo na economia, e o agravamento de problemas estruturais crônicos, que atravessam a história do país, mantêm e reforçam o caráter dependente de seu desenvolvimento, e impedem o pleno florescimento de todas as capacidades (técnico, artísticas, culturais, científicas, produtivas) de nosso povo.

O fim da ditadura militar, com a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, em 1985, abriu um período de transição democrática tumultuado. O Brasil estava, como corretamente registrou o Partido Comunista do Brasil naquela época, em uma encruzilhada histórica que impunha, justamente, a opção entre os dois modelos de desenvolvimento: a busca da autonomia e da soberania, ou o reforço da dependência e da integração subordinada do país à economia mundial. Foi esta segunda opção que prevaleceu com as eleições de Fernando Collor de Mello, em 1989, e Fernando Henrique Cardoso, em 1994 e 1998. Seus governos impuseram o modelo neoliberal, que desmantelou importantes instrumentos da soberania do Estado brasileiro. E subordinou ainda mais o país aos ditamen do FMI, levando à mais grave ameaça contra à soberania brasileira desde a Independência, em 1822.

A investida de Fernando Henrique Cardoso contra a chamada “era Vargas”, em 1994, já indicava sua clara opção pelo retorno ao mesmo modelo de desenvolvimento vigente antes da revolução de 1930. O modelo que preconizava estava baseado na estabilidade macroeconômica, e numa agenda de modernização que “nada tem em comum com um desenvolvimentismo à moda antiga, baseado na pesada intervenção estatal”. E ele era claro: alegava ser “preciso resgatar o Estado da pilhagem dos ‘interesses estratégicos’, das ‘conquistas sociais’ exclusivistas, do corporativismo – numa palavra, dos privilégios que distorcem a distribuição de renda”. Isto é, investir fundamentalmente contra as conquistas sociais dos trabalhadores. Outro pilar desse modelo, que só é considerado “moderno” quando se esquecem seus antecedentes anteriores a 1930, é a abertura da economia, que FHC declarava ser preciso levar adiante incluindo nela “os setores financeiro e de serviços – e sua integração ao mercado mundial”, numa “nova relação Estado-mercado” em que o “Estado produtor direto passa para segundo plano. Entra o Estado regulador, não no sentido de espalhar regras e favores especiais a torto e a direito, mas de criar o marco institucional que assegure plena eficácia ao sistema de preços relativos, incentivando assim os investimentos privados na atividade produtiva.” Finalmente, dizia, era preciso eliminar as “restrições anacrônicas ao investimento estrangeiro”, adotando “regras claras sobre a movimentação de capitais do exterior e para o exterior”.

FHC bem que se esforçou para varrer a “era Vargas” e seu modelo de desenvolvimento. Mas, sem um projeto nacional – ao contrário, subordinado por uma visão neocolonialista – seus oito anos de mandato permitem uma visão clara do contraste entre os dois modelos e a necessidade – que se impõe – da retomada do rumo do desenvolvimento autônomo e soberano, com valorização do trabalho; desafio recolocado para as forças progressistas e avançadas de nossa sociedade. E que tem, no projeto nacional legado por Vargas, corrigido a partir das necessidades e das condições concretas atuais do desenvolvimento brasileiro, uma base avançada para a retomada desse caminho.

A vitória da Frente Lula Presidente em 2002 e a posse do novo governo concretamente instaurou essa possibilidade.

José Carlos Ruy é jornalista e editor de Princípios.

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EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 66, 67, 68