Cultura e desenvolvimento social: partilhando responsabilidades
Gostaria de parabenizar os organizadores e os participantes desta primeira (e histórica) edição do Fórum Cultural Mundial.
Vejo este evento como um território livre e sincrético, em dimensão planetária, de encontros e trocas afetivas, políticas, econômicas, informativas… Culturais, portanto.
Vejo também como uma cátedra plural e urgente, devotada à reflexão sobre tudo o que diz respeito diretamente ao homem e suas possibilidades neste planeta.
Tudo o que não é natureza. Tudo o que está ligado ao fazer, ao pensar e ao sentir de homens e mulheres. Tudo, enfim, o que é cultura.
Parabenizo os organizadores também pela escolha e pelo enunciado do tema desta conferência inicial.
Está escrito no programa, “Cultura e desenvolvimento social: partilhando responsabilidades”.
Percebo aqui duas idéias fundamentais.
Em primeiro lugar, que cultura e desenvolvimento são conceitos e processos necessariamente interligados. Em segundo, que cultura e desenvolvimento são conceitos e processos necessariamente compartilhados. Sendo assim, não podemos conceber desenvolvimento que não seja cultural. E não devemos conceber desenvolvimento que não seja compartilhado.
Compartilhado por Norte e Sul, por incluídos e excluídos, por centros e periferias… Até para que essas palavras percam um dia o sentido sociológico.
Compartilhado também, enquanto responsabilidade, por governos e sociedades, instituições e indivíduos.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem define claramente os direitos culturais como parte dos direitos humanos fundamentais, dos quais somos zeladores. Também inclui o direito ao desenvolvimento.
Significa o reconhecimento de que as identidades culturais existem no diálogo com as demais, e dependem desse diálogo para sobreviver.
Significa o reconhecimento de que a promoção da identidade e da diversidade cultural e do convívio tolerante entre sociedades, grupos sociais e indivíduos é vital para a democracia e está entre os deveres básicos dos governos.
Significa, finalmente, o reconhecimento de que a cultura é uma das dimensões do desenvolvimento humano, e que o crescimento econômico e as trocas internacionais devem ser cultural e ambientalmente sustentáveis.
Este reconhecimento, explícito em mais de um documento da ONU, em mais de uma convenção ou acordo multilateral, deve ser reiterado e revitalizado, especialmente agora, quando a globalização e o progresso tecnológico se aceleram e se intensificam, para que, de palavra, de vontade, se torne exercício.
A cultura e as indústrias criativas desempenham papel importante na geração de renda e emprego, na qualificação das relações entre os indivíduos e na construção da paz entre os países. Por isso mesmo, o comércio mundial e os mercados devem respeitar os direitos culturais das sociedades, grupos sociais e indivíduos, contribuindo para a diversidade, e não para a hegemonia e a padronização.
O momento é extremamente favorável às alianças, às co-produções, aos programas de cooperação, entre a América Latina, a África, o Caribe, a Ásia, a Oceania, o Oriente Médio e outras regiões e sub-regiões em desenvolvimento. Podemos compartilhar experiências, mercados, energia, criatividade e equilíbrio entre os homens, e entre os homens e o planeta.
O principal motor das alianças – e também o limite na negociação de contrapartidas –, é a proteção e a promoção da diversidade cultural, através da qual o diferencial dos povos se manifesta, diferencial vital para o desenvolvimento.
Exatamente porque estamos tratando de humanidade, e de um movimento que tem o homem, ao mesmo tempo uno e plural, como centro, é que uma abordagem crítica do desenvolvimento implica a obsolescência dos adjetivos que serviam para compartimentar o tema.
Assim como o homem não é apenas o homem econômico, o homem social, o homem cultural, mas o homem-homem, ele soma e multiplicação das várias dimensões de sua existência, também o desenvolvimento é, necessariamente, econômico, social e cultural, “tudo-ao-mesmo-tempo-agora”, conforme a definição de Arnaldo Antunes.
Parece inegável que o sistema econômico que regula as relações entre os homens, as instituições e as nações nesta etapa da História, tem gerado ciclos de desenvolvimento que, a despeito de desiguais (em velocidade, intensidade e resultados) e combinados (no tempo e no espaço), impulsionam a humanidade à frente.
Embora várias vezes a percepção que tenhamos disso seja diferente, obra e graça da nostalgia de um passado-refúgio construído por nossa memória afetiva e pastoril, o fato é que, em boa parte das dimensões articuladas da vida, as coisas só fazem melhorar com o passar do tempo. Vive-se mais, diverte-se mais e guerreia-se menos atualmente.
Talvez as coisas pudessem melhorar mais… Para mais pessoas. E talvez pudessem melhorar sem exaurir os recursos que permitem essas melhorias. É isso que pretendo destacar aqui. Se for verdade que o sistema econômico tem sido eficiente na produção de crescimento econômico, também é verdade que foi ineficiente na abrangência deste crescimento e no aproveitamento de recursos vitais – principalmente, o recurso humano.
O economista Ignacy Sachs tem dito que este é o desperdício mais grave, pois irrecuperável: a vida humana não se estoca, ela flui. Falo, por exemplo, do desperdício da subjetividade humana. As idéias de Sachs, aliás, me parecem fundamentais para podermos enfrentar o paradoxo a que me referi há pouco. Para podermos reorientar o sentido de nossas ações e políticas, na sociedade civil e no Estado, neste jogo dialético e permanente de vetores sociais, na direção de potencializar, de maximizar, de incentivar o processo de desenvolvimento, tanto do que a literatura marxista chamou de "forças produtivas", como do próprio indivíduo, de sua inteligência, de sua criatividade, de sua sensibilidade, de suas capacidades, e de suas possibilidades de vida em sociedade.
Ao mesmo tempo em que se privilegiava uma e outra dimensão do desenvolvimento, conforme apontei anteriormente, difundia-se a noção equivocada de que o meio ambiente seria um custo, um estorvo para o avanço econômico, criando-se, assim, uma falsa oposição, que ganharia o status de antipodia fundamental, entre meio ambiente (e gestão inteligente de recursos ambientais e humanos) e crescimento econômico. Essa dicotomia foi superada, na esfera da reflexão e de experiências alentadoras, pelos adeptos do "desenvolvimento sustentado", que formularam, entre as conferências de Estocolmo e Rio sobre Biodiversidade e Desenvolvimento, a "Agenda 21".
Creio que um Ministério da Cultura preocupado com o tema do desenvolvimento pode contribuir decididamente, ao se ocupar da dimensão econômica da cultura e da dimensão cultural da economia. As indústrias criativas (e, portanto, "culturais") são, entre as atividades econômicas de hoje, as que mais se aproximam do triplo "win".
As tecnologias digitais potencializam esta vocação, ao reduzir o papel dos meios físicos de armazenamento, transporte e difusão de conteúdos. Uma política pública de cultura contemporânea pode ser não apenas compensatória ou inclusiva no sentido tradicional, mas geradora de empregos, renda e felicidade (e, portanto, de um desenvolvimento que, este sim, mereceria dois adjetivos sincronizados: sustentado e positivo).
A idéia de desenvolvimento tem pouco mais de meio século de existência. Ela começou no fim da Segunda Guerra Mundial, com os trabalhos de reconstrução da Europa. Ao longo do tempo, o conceito foi se tornando mais e mais complexo, como a própria realidade. No início, vingou a noção ingênua de que bastaria investir nas forças produtivas, pois o crescimento econômico resolveria tudo. De certo modo, aliás, estamos assistindo ao renascer desta visão, com o tempero das políticas compensatórias. Ao adjetivo "econômico", acrescentou-se depois o "social", o "político" e o "ambiental", que teve um impacto importante, obrigando os economistas a reconhecerem os limites do pensamento puramente econômico.
Das visões unidimensionais veio finalmente a visão multidimensional de desenvolvimento, que nos permite pensar o desenvolvimento (e seus indicadores) em termos de acesso efetivo ao conjunto dos direitos humanos, de três tipos: os direitos políticos, ou seja, a cidadania e a democracia; os direitos econômicos, sociais e culturais; e os direitos difusos, coletivos, como o direito à cidade, ao ambiente saudável, e também o direito ao desenvolvimento. O desenvolvimento é, assim, o processo, negociado entre os agentes sociais, de apropriação crescente e efetiva, por todos nós, dos direitos humanos.
Como este processo pode e deve ser induzido, estimulado, intensificado? Penso que através de quatro políticas complementares, a serem ministradas em equilíbrio.
A política de universalização da educação e da saúde, sem as quais não se vai a lugar algum.
As políticas compensatórias, que resolvem ou mitigam o imediato.
A política de distribuição primária da renda através do salário (e do emprego), com a inclusão crescente ao processo produtivo dos que estão em condições de trabalhar.
E a política de planejamento, estruturação e incentivo do mercado, para que ele realize o seu potencial de inclusão e democracia, e torne-se menos oneroso ao ambiente e à vida.
Para mim, essas políticas devem tratar de maneira desigual os desiguais, conferindo às ações um sentido afirmativo, que não necessariamente tem a ver com a simplificação das cotas, mas com o sentido geral de trocar "discriminações negativas" pelas "positivas".
Esta inversão de perspectiva torna-se crucial quando se analisa um aspecto vital para o desenvolvimento dos países, que é o comércio internacional. Os neoliberais dizem que a base do desenvolvimento geral seria o livre comércio. Como falar de livre comércio, porém, quando, segundo recente estudo da Oxfam, para cada dólar que os países industrializados transferem aos pobres e emergentes, como assistência, dois dólares fazem o caminho inverso, em virtude de condições adversas de comércio? Está claro que o princípio da "discriminação positiva" também se aplica aqui.
Daí a importância de outra vertente desta política, que visa ao fortalecimento dos organismos multilaterais, além da OMC, e a revisão de suas políticas, tendo a Argentina como exemplo do que um receituário obtuso pode produzir. Daí a importância de substituir o conceito tradicional de crescimento econômico pelo novo conceito de desenvolvimento "culturalizado" que aqui defendemos.
Muito se tem falado no Brasil, nos últimos meses, em crescimento econômico. Faço um alerta: se este crescimento não está orientado para as economias limpas e a distribuição de renda; e se aceitamos o império do econômico sobre outras dimensões da existência humana então teremos o que Sachs chama de "mal-desenvolvimento": o crescimento com elevado custo ambiental, social e cultural.
Veremos apenas a apropriação desigual e combinada das vantagens do crescimento, em benefício de poucos. Em oposição, afirmo um conceito ético de desenvolvimento, que deve se materializar nas políticas públicas governamentais e nas ações da sociedade civil.
O desenvolvimento não é um conceito da economia. A economia é uma dimensão, e também um instrumento, do desenvolvimento, um processo que tem finalidade ética e condicionalidade ambiental.
A idéia de um desenvolvimento em co-responsabilidade, que incorpore a cultura como base e multiplicador, faz com que o Ministério da Cultura do Brasil, neste Fórum, proponha os seguintes compromissos às demais autoridades aqui presentes:
1) Superar os desequilíbrios sociais, econômicos e culturais entre Norte e Sul do planeta, através da pactuação de medidas que apontem para a redução da exclusão e a promoção da igualdade.
2) Realizar políticas públicas para ampliar o acesso dos cidadãos aos direitos culturais, incluindo o fomento à produção cultural, o estímulo à difusão de bens e serviços culturais e a proteção do patrimônio cultural, material e simbólico, de nossas sociedades.
3) Promover espaços culturais diversos, de inclusão cultural e social, em que circulem idéias inovadoras e se compartilhem as inquietudes artísticas e intelectuais, e contribuir para a regulação, estruturação e dinamização das indústrias criativas em nossos países.
4) Priorizar o desenvolvimento de acordos bilaterais e multilaterais, políticas e fundos que estimulem a produção e as trocas culturais, de modo equilibrado, entre nossos países e os demais países do planeta, com vistas a um intercâmbio saudável de bens e serviços culturais.
5) Defender a exclusão dos bens e serviços culturais dos acordos de liberalização comercial em curso na Organização Mundial de Comércio (OMC), para que as trocas culturais aconteçam segundo o princípio da proteção à identidade e à diversidade cultural dos países.
6) Apoiar a Unesco em sua iniciativa fundamental de estabelecer, de comum acordo entre os países que fazem parte da ONU, uma Convenção Internacional para a Proteção da Diversidade Cultural, prevista para a Conferência-Geral de 2005.
7) Contribuir para a criação de um sistema internacional de trocas econômicas e culturais baseado na democracia, na igualdade de oportunidades, na correção dos desequilíbrios, no respeito às diferenças, nos direitos humanos e no diálogo pleno entre as culturas.
8) Divulgar esses princípios nos órgãos multilaterais e eventos internacionais de cultura dos quais venhamos a participar, com o objetivo de estimular um debate global sobre o papel da cultura no desenvolvimento sustentável das sociedades contemporâneas.
Eis o que move o Ministério da Cultura. Eis o que faço e digo nos eventos, nas reuniões, nos encontros nacionais e internacionais de que participo. Eis o que fundamenta este Fórum Cultural Mundial.
Gilberto Gil é ministro de Estado da Cultura. Este texto reproduz trechos de sua palestra ao Fórum Cultural Mundial (São Paulo, 30 de junho de 2004).
EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 73, 74, 75, 76