Como pessoa da Universidade e cidadã brasileira, eu e a minha universidade estaríamos radicalmente contra e em oposição clara ao governo se o objetivo da chamada Reforma Universitária for de natureza fiscal. Se a proposta que vier do governo – – e aparentemente não é assim, estou até bastante entusiasmada – for uma proposta de desobrigação do Estado com relação à educação pública federal brasileira, e uma reforma que vise a restrições fiscais, estaremos contra.

Quero crer que não seja esta a reforma e há bons indícios pelos eixos apresentados pelo secretário do Ministério da Educação, Fernando Haddad, em reunião com a Andifes recentemente, que podem nos levar a ter esperança sempre renovada, mas prudente.

Poderemos estar de fato em um momento singular na história da educação brasileira para impulsionar transformações importantes que aliem a universidade pública federal e as demais instituições públicas federais de educação superior à agenda transformadora que a sociedade brasileira exige. E o governo foi eleito para executar o programa com especificações muito claras e no qual confiamos – pois não votamos em pessoas e sim em programas.

Posto isso, que é uma premissa política e uma premissa de compromisso institucional com esta grande instituição, talvez a mais republicana delas, que é a universidade pública brasileira, começarei a apresentar a proposta da Andifes. Ela está sendo entregue ao ministro da Educação que, convidado, aceitou vir à Andifes, simbolicamente, recebê-la.

Esta é uma proposta que já vem de muitos anos. Inclui um projeto de lei orgânica para as instituições federais de educação superior e há mais de 10 anos vem sendo trabalhado pela Andifes.

Educação superior: questão estratégica

O documento tem em seus pressupostos, ou pré-condições, alguns pontos que parecem ter eco nas medidas enunciadas pelo governo em sete eixos, que incluem autonomia; vinculação orçamentária que garanta o pleno funcionamento estável; políticas de recursos humanos; e missão da universidade. Esta universidade deve estar sempre cada vez mais contemporânea de seu tempo e antecipadora de seu futuro e do futuro da nação.

A universidade tem de ser vista pela sociedade e pelos governantes como instrumento de Estado e não de governos – a quem resistimos quando necessário e atuamos juntos quando podemos. Educação superior é política e é instrumento de Estado. Compete aos governos executar as ações que possam redundar em transformações de médio e longo prazo, que direcionem de maneira produtiva a atuação do sistema de educação superior no Brasil – que ainda não existe – na direção de sua missão principal: o desenvolvimento pleno da sociedade brasileira. Missão esta que se configura na formação de recursos humanos com uma visão cidadã de seu país e pela produção do conhecimento mais avançado para sua inserção soberana no cenário mundializado – onde nações hegemônicas dominam através da informação e do saber, as duas moedas mais preciosas da contemporaneidade. É neste cenário que se desenvolvem as relações comerciais, como bem indica a questão dos agronegócios: o Brasil é deficitário em todos os aspectos da importação e exportação, menos no dos agronegócios, que subsidiam nossa balança comercial. No Brasil, este setor avançou nos últimos dez anos devido às pesquisas feitas apenas nas instituições de pesquisa e ensino públicas como Embrapa, USP, Unicamp, UFMG, Federal de Viçosa, Federal de Lavras, UFPE, e tantas outras.

A educação superior gera riqueza e permite, junto a outros fatores, sustentar o desenvolvimento de uma sociedade, que espera a distribuição de riqueza de forma justa e adequada. Esse sistema é estratégico, por isso educação superior tem de ser política de Estado.

Reforma?

A proposta da Andifes não fala de reforma universitária, porque isto é um nome fantasia. Primeiro porque falar de reforma hoje tem um viés um pouco anacrônico. A universidade pública brasileira não precisa de reforma. Sua história respeitável é que nos trouxe até aqui, e muito pior estaria o país se não tivéssemos tido este instrumento. Precisamos estar atentos e sempre nos reestruturando, além do mais, a universidade não é a totalidade da educação superior.

Logo, ao invés de falar de reforma universitária, embora não aceitemos o “nome fantasia”, a Andifes apresenta ao governo uma proposta de reestruturação do ensino superior no Brasil. E esta proposta reitera os princípios propostos que têm marcado a atuação da entidade.

Autonomia

Reiteramos a defesa da autonomia porque é auto-aplicável, mas hoje menor do que antes da Constituição de 1988. Um exemplo muito simples pode ser dado: as nossas instituições hoje não contêm mais procuradorias. A Advocacia-Geral da União assimilou as nossas procuradorias. Nossos procuradores são os da Advocacia-Geral da União que, junto às instituições respondem ao ministro da pasta e não ao reitor. As universidades perderam a representação judicial e extrajudicial, e quem não tem representação no âmbito da Justiça não terá autonomia. Há falta de autonomia também na contratação de professores. Se esta reforma não reverter esta questão estaremos então chamando de reforma e de autonomia ao que jamais será e aceitando todos os resíduos autoritários que herdamos dos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso.

A crise das universidades não existe. O que está em crise é o Estado brasileiro. Agora, a crise do Estado brasileiro tem impactos nas universidades, gerando crises decorrentes nas instituições – que fazem 84% das pesquisas do país, formam os melhores quadros em todos os setores, representam os grandes avanços em patentes nacionais e internacionais. Temos também muitos problemas e muito que avançar, a exemplo dos currículos anacrônicos. Conseguimos flexibilizar nossos projetos acadêmicos, mas não estamos conseguindo crecer como deveríamos nos cursos noturnos.

Privatização X investimento

A universidade está sendo privatizada de dentro, mas não pelas fundações de apoio – que se bem controladas podem ter um bom papel – mas porque os professores estão sendo levados a privatizar seu tempo de trabalho, pois precisam complementar salário. É uma privatização muito mais perversa, mais difusa e difícil de controlar do que qualquer cobrança de taxa.

Sou favorável à educação pública e gratuita, e por muitas razões. Não existe na história do mundo contemporâneo nenhuma universidade de ensino de referência e pesquisa de verdade que não seja fortemente subsidiada pelo poder público. Estão aí Harvard e o MIT, nos EUA, que não me deixam mentir: os alunos que pagam não chegam a 15% dos orçamentos dessas universidades.

Pesquisa é matéria de soberania nacional, e pesquisa é fator muito caro – e o Brasil tem duas opções: soberania ou dependência no cenário de uma sociedade em que o conhecimento é a principal moeda.
Esta é a opção que o Congresso Nacional tem de fazer.

Financiamento (trecho do documento da Andifes)

Ao longo da década de 1990, a destinação de recursos públicos às IFES sofreu uma drástica redução, cujas conseqüências perversas no cotidiano das instituições são cada vez mais visíveis. A definição das formas de financiamento e a reafirmação do compromisso inequívoco do Estado com a educação superior pública propiciarão a inversão dessa tendência histórica e o estabelecimento de um investimento, planejado e contínuo, na modernização e no crescimento da educação pública. A captação adicional de recursos de outras fontes, sempre subordinada ao exercício das missões precípuas do ensino superior, sob nenhuma circunstância deve desonerar a obrigatoriedade do financiamento integral por parte do Poder Público, condição necessária para o pleno e efetivo exercício da autonomia. O papel das fundações de apoio deverá ser revisto, uma vez definido o cenário de funcionamento das IFES sob o regime de autonomia. A definição das fontes de financiamento possibilitará, inclusive, a adoção de estratégias capazes de contribuir para o fortalecimento do sistema como um todo. Além de atuar nos planos do ensino, da pesquisa e da extensão, as IFES constituem um vetor de desenvolvimento local e regional. Desse ponto de vista, o financiamento precisa considerar, sempre, tanto a expansão e o fortalecimento das maiores, e mais antigas, Universidades, quanto a criação de novas unidades e, ainda, o crescimento e a qualificação das instituições menos amadurecidas do sistema. Tais medidas deverão favorecer uma melhor distribuição da base científica nacional, a superação de desequilíbrios regionais e a elaboração de estratégias favorecedoras de arranjos produtivos locais. Esta é a opção que o governo tem de fazer: a educação superior pública é onde se faz pesquisa e deve ser política de Estado. Não pode ser de outra forma.

A reforma atual

Por que estamos falando de reforma? É claro que as universidades, as instituições de ensino superior, têm de viver em estado permanente de análise, ter sensibilidade com as mudanças e atenção voltada para o novo. Esperamos que deva ser esta a atitude permanente das instituições.

Entretanto, em alguns momentos a história ganha uma densidade inédita e determinadas questões são vistas de maneira mais aguda, fazendo com que escolhas e decisões efetivadas impliquem em conseqüências de duração mais longa. Hoje, no Brasil, acreditamos que felizmente estamos vivendo um desses momentos.

A concepção de educação superior como política de Estado é indispensável para que nosso país alcance os desejados patamares de desenvolvimento e a criação de um sistema nacional de educação superior capaz de construir e implementar novos marcos reguladores no campo da educação. Hoje se constitui uma oportunidade inédita para serem delineadas estratégias de longo prazo para o constante desenvolvimento das instituições de ensino superior brasileiras como instrumento de um projeto de nação que ainda não temos.

A universidade tem de ser parte de um projeto de nação; e se os governos e os parlamentares não trabalharem com as forças populares e a sociedade civil na direção de construir um projeto de nação, falar de missão de universidade é um discurso vazio. Porque a missão da universidade é dupla: ela tem de ser voltada a uma história quase milenar desta instituição no mundo ocidental, e também oriental, que tem de decorrer de uma dupla fidelidade: por um lado, ao conhecimento e ao saber por seu valor libertário, humanista, ao cultivo livre do conhecimento da razão; mas, por outro, à capacidade de que esta excelência, de que este saber, torne-se relevante e estendido às maiores camadas possíveis da sociedade, com acesso a todos os segmentos da sociedade e com equalização de oportunidades.

Estamos sendo chamados a confirmar esta vocação universitária: essa lealdade à tradição do saber e dos valores da ética e do conhecimento, e a necessidade de a universidade se tornar consciente da necessidade de uma inserção esclarecida no tempo e no espaço – neste nosso país de tantas desigualdades, neste tempo de tantas dificuldades, mas também de tantas possibilidades.

Políticas inclusivas de ideário republicano, caracterizador das sociedades modernas, constituem nos dias de hoje uma meta inadiável no campo da educação brasileira. Trata-se, então, de estabelecer procedimentos capazes de assegurar a manutenção e a ampliação dos patamares de qualidade tão heroicamente alcançados pelo sistema público de ensino superior brasileiro. Mas, ao mesmo tempo, de garantir um espalhamento mais uniforme deste sistema no território nacional, superando as nossas imensas desigualdades regionais. Finalmente, torná-lo mais acessível a todos os segmentos da população brasileira; portanto, superando e tentando superar as imensas desigualdades sociais, étnicas, de gênero, das pessoas com necessidades especiais.

Mas não se pode abrir-mão do mérito, porque o mérito também é um bem público, tanto quanto a educação superior. É possível fazer e buscar a democratização do acesso com uma variedade de instrumentos sem perder o mérito, que é a escolha dos melhores talentos de cada segmento, para que venham, através da educação superior, profissionalizar-se e ter realmente uma visão do país mais cidadã e mais completa.

Problemas

É fundamental que o encaminhamento do debate coloque em questão os problemas levantados pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Estamos falando em autonomia aqui quando a OMC votará em janeiro de 2005 – faltam 8 meses – a inclusão da educação no Acordo Geral de Serviços, a educação superior vai ser “tratada como banana”. Por exemplo, não poderia haver subsídio. Quando a OMC chegar a discutir que os investimentos do governo brasileiro no sistema público de ensino são subsídios, vamos ter de discutir se podemos aplicar dinheiro público para as universidades federais lá em Genebra (!). Isso é muito grave. E não tomemos esta questão de forma leve: a OMC quer também regular como serviço o patrimônio difuso: folclore, culinária, artesanato… Isso se chama globalizar e transformar em mercadoria controlada pela OMC os valores identitários de nossa sociedade.

Princípios

Os dois princípios que a Andifes advoga são: afirmação da educação superior como política de Estado e criação do conceito de educação superior como sistema nacional.
Quais seriam, então, os fundamentos da educação como política de Estado? Ela é um bem público, condição de desenvolvimento humano, econômico e social e de afirmação de valores e identidades culturais.

A educação superior tem de fazer formação ao mesmo tempo profissional e cidadã. Ela é condição de inclusão social duradoura. Ela tem de contribuir para a diminuição das desigualdades sociais e regionais. Ela deve abrigar a pluralidade e a diversidade e ser pautada por valores democráticos. Ela tem de atingir patamares cada vez mais avançados de qualidade. O conhecimento como bem público tem de ser qualidade e pertinência. Outra coisa importantíssima é a cooperação internacional.

Quanto à educação superior como sistema nacional, acreditamos que a valorização da qualidade é o valor fundamental e deve orientar a construção deste sistema. A educação superior tem de ser referência para todo o sistema educacional. Depende dela a qualidade da educação básica. Formamos os professores, fazemos a produção teórica e metodológica, inclusive de livros didáticos. Temos de prover a educação básica continuada e o MEC está lançando um programa muito interessante neste sentido.

Sem dúvida o ensino público superior tem de ser a referência. Tem de ser não, ele já é em qualidade, mas ainda insignificante em quantidade. Há várias décadas quando fiz meu curso superior, éramos 75% dos alunos em ensino público e 25% do setor privado. Hoje são 80% do setor privado e 20% do setor público. O sistema federal tem mais ou menos 15%. Quantidade não é qualidade. Mas se sua quantidade for insignificante, você não tem legitimidade para pleitear referência de qualidade. Então, a expansão do ensino é uma coisa que temos de fazer.

Hoje o Brasil atende apenas a 9% de seus jovens entre 18 e 24 anos em educação superior. Para não comparar com os EUA e Canadá, vamos comparar com a Argentina que atende a 40%. O Brasil perde na América do Sul também para a Bolívia e o Paraguai.

Um novo marco legal

Um novo marco legal deve formalizar o sistema nacional de educação superior. Só a universidade pode ter autonomia num sistema heterogêneo em modelos de instituições. Há lugar para todas, desde que tenha qualidade e a necessidade de modelos diferenciados de formação. Mas autonomia é para instituição que associa – de fato – ensino, pesquisa e extensão. E por pesquisa não se entende estudo, mas produção de conhecimento novo para o avanço do próprio conhecimento.
Agora, autonomia não é soberania. A universidade pública, não só ela, a educação é um bem público, uma concessão do poder público.

O governo tem de exercer um poder regulador rigoroso de todo o sistema e, no caso das universidades também. Mas não apenas pelo TCU, pela Secretaria Regional de Controle, pelo Ministério Público… Tudo isso é necessário, mas precisamos ser regulados pelo Congresso Nacional e ser cobrados pela sociedade civil – pois temos uma função pública, que nos foi delegada pela sociedade.

Temos de ter no sistema de educação superior formas de avaliação muito mais complexas e sofisticadas do que as pontuais que temos até agora, e que dêem resposta às metas de desenvolvimento da sociedade brasileira definidas no Congresso Nacional. A instituição também pode ter metas. Mas onde deverão ser estabelecidas as metas? No Congresso Nacional, que é o foro mais legítimo. É um fórum onde todas as forças estão representadas.

No sistema privado, fundamental para o atendimento de toda a demanda, há instituições muito sérias, que merecem nosso respeito e que de fato trabalham pelo interesse público. Mas há outras que deveriam ser fechadas. E nesse sentido algumas das propostas do governo devem ser examinadas cuidadosamente para separar “filantropia” de “pilantropia”.

EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 59, 60, 61, 62, 63