Pablo Neruda: cem anos
Neruda foi importante no século XX e, pelos indícios, parece que continuará sendo também no século XXI não apenas como poeta do Chile porque, sendo um poeta chileno, possui – acredito eu – máxima autoridade literário-poética em nível mundial. Para mim, ler sua obra significa ler um conto escrito pela vida porque Neruda é único por aqui, no sentido de que nasce num país dos mais longínquos do mundo.
Digo isso porque Neruda foi um homem que fez sua história, foi atravessado pela história, mesmo ao nascer. Se acreditarmos que alguém possa ler o destino de uma pessoa, pode-se ver que nasceu, viveu e morreu rodeado pela história do Chile que, na realidade, é também uma história violenta. Ele cresceu numa espécie de acampamento militar, onde se derrubam bosques e matas para se construir cidades de madeira. Sua vida ao que parece é condenada, como foi também a de Gabriela Mistral, em sigilo, no anonimato; por isso, ninguém nunca soube quem era Neftali Reyes. No entanto, quando garoto faz uma descoberta definitiva para sua vida: a leitura, numa região, digamos, silenciosa. Anos depois, ele próprio diz: "não sei como a poesia chegou até mim". "Escrevi prosa, versos, com palavras titubeantes, renhidas, mas não com rima, pois eram dirigidos a minha mãe, que não conheci".
Ele sabe que a única forma de ser é no terreno da escrita – filha da leitura. E escreverá observando, contemplando a seu redor.
Fala-se muito pouco sobre o fato de esse rapazinho aos 13 anos de idade ter publicado seu primeiro artigo no diário de seu tio, Orlando Marsson, O amanhã de Temuco sobre entusiasmo, perseverança e, também, "ressurreição". Talvez imaginasse que muita gente havia morrido e merecia voltar a viver.
Não sei se tem algo a ver com a "Ressurreição" de Tolstoi. É uma questão interessante. De qualquer modo, ele a conhecia e pode ser… Porque nessa época ele fez uma visita à diretora de um colégio feminino, Gabriela Mistral, e ela não apenas o nomeia o Cavalheiro da Poesia e o reconhece como poeta autêntico, como também o aconselha: "você tem que ler, continuar a ler. Mas não a literatura francesa – cortesã de olhos exageradamente pintados. Leia a literatura russa. Nela, está o homem, os problemas do povo, a luta entre deus e o diabo". Seja como for, ele conheceu esse livro. Não sei se nesse momento ou algum tempo depois.
Ele descobre o poder da palavra, da palavra impressa, numa região, segundo ele, de péssimo desenvolvimento verbal. Gente que falava pouco e muito mal. Ele próprio não se considerava alheio a isso nesse momento. Mas com a leitura descobre o mundo – e literatura de países longínquos aos quais ele gostaria de viajar, de estar, é que lhe mostrou isso; como o sonho de adolescente, de rapazola.
E, ali, Neruda – essa pessoa, entre tantas outras, que vegeta nessa vida cinzenta, que não vai além disso – percebe desde cedo que é poeta e que deve dedicar-se a isso, nada podendo fazer para mudar esse destino. Mas, um poeta observador… Toda sua obra poética é autobiográfica, bem como de observação constante das coisas. E suas contribuições ao diário de seu tio – que as acolhe com assentimento – são, digamos, de tintura aristocrática. Críticas relativas à sociedade em que está vivendo, que vê formar-se. Porque no início parecia uma cidade democrática; mas perdeu esse espírito porque os ricos iniciavam… Também viu o pobre, o velho cego, a mulher ambulante com suas tralhas pedindo esmolas. Para ele, o mundo estava mal feito. E disse isso desde o começo. Transformou-se, quando presidente do Ateneu de Temuco, em agente e correspondente de uma revista que fazia história na sua época, Claridade, da Federação dos Estudantes. Pouco se fala sobre o fato de ele ter produzido para essa revista mais de 150 artigos, ainda rapazinho. Inclusive, vários deles acabaram publicados como editorial. Figuravam na primeira página sob a denominação "Máxima de hoje".
Geralmente, assinava com pseudônimos que retirava das novelas que conhecia. Lia todos os autores russos, mesmo os naturalistas, muito em voga no Chile. Eu consegui alcançar alguma coisa, um rastro dessa duração. Apesar disso, ele criou – bem como participou – muitos concursos literários, provincianos, na literatura.
Por essa época, morre em circunstâncias trágicas, o poeta Domingo Gómez Rojas. Preso, torturado, enlouquecido – essa juventude que parecia estar sonhando e atribuindo à poesia certos poderes modificadores, restava órfã. Neruda, no entanto, com 16-17 anos de idade, ganha um concurso literário com Canção da Festa, que canta a juventude:
"Porque a terra se inclina
Em um tremor poeirento e violento,
Vão nossas jovens almas preenchidas
Como as velas de um barco ao vento".
Ele sabia dessa mudança e, de alguma forma, sempre soube. Quer dizer, ele foi político desde rapazinho. Não se tornou comunista logo no início – foi um processo que também foi sendo modificado com os ventos da história.
E essa pessoinha, de repente, se vê transformada em personagem. Por quê? Pela força da poesia. Porque escreve poemas que todos recitam. Nesse momento em que recitar e declamar eram muito comuns. Ele recitava de escola em escola com outros jovens poetas (Romeo Murga, Victor Barberis). O poema mais famoso entre os jovens é Farewell, que diz: "amo o amor dos marinheiros". Isso, acredito, lhe dá a sensação de que a poesia pode fazê-lo transcender, sair de seu recanto escuro de Araucania, de Temuco e começar a ficar conhecido em Santiago – obter a glória local. Para isso, a poesia é o seu caminho.
Ele é um rapaz particularmente dotado intelectualmente. Transforma-se em personagem, adota o pseudônimo Neruda por medo das surras do pai por "escrever versinhos". Ali, está também submerso na boêmia que os jovens aprendizes de poeta dessa época consideravam literária. Porque essa idéia vinha com a marca de Paris. Verlaine, Rimbaud e o pobre Lelian haviam postulado a idéia de que o poeta não podia viver a vida burguesa, tinha de ser um rebelde em todos os sentidos. Podia ser também através do álcool, do absinto.
Entretanto, Neruda experimenta uma segunda sensação: descobre o sexo e a mulher. Tinha ele uma particularidade: era um poeta que, a partir de sua própria experiência, expressava essa sensação por escrito assim que a percebia. Quando jovem produzia de 4 a 5 poemas por dia. A poesia era sua forma de falar.
Assim se tornou um personagem. Mas um personagem pobre, em perigo, porque se encontrava, digamos, sob ameaça da tuberculose que já havia alcançado alguns de seus amigos por causa da boêmia. Ele sabia que precisava sobreviver, inventar uma fuga para o futuro. Mas se enganou, escolheu, graças a um amigo no ministério das Relações Exteriores, outro lugar: o Oriente.
Aos 19 anos de idade ele escreve Crepusculario, aos 20 Vinte poemas de amor e termina um outro livro que não publica por considerá-lo influenciado por outras vozes – especialmente a de Rabat Ercasty – e bastante, digamos, escandaloso, o Sentinela ardente.
Está no auge da glória local. Os dois livros que publica têm aceitação geral, atravessando o mundo estudantil; muitos o consideram "o poeta chileno".
Ele entende, então, que, por cantar sentimentos universais, como o amor, pode ir mais longe. No entanto, mesmo no Chile encontra-se em crise pessoal em muitos aspectos: a crise econômica, de costumes, do modo de vida; mas também em sua poesia triunfante. E isso é algo admirável. Outros poetas, com o fulminante sucesso de Vinte poemas de amor, insistem no tema do amor, que reduz a tanta gente… Ele o considera um perigo, porque também vive o momento que proclama o triunfo da vanguarda em nível mundial. E modifica sua poesia. Porque chega ao Oriente desconhecido, ninguém entende espanhol nem fala com ele. É obrigado a falar em inglês – com aqueles que conhecem inglês – e tem que esquecer sua língua materna. Um desafio e uma ameaça contra ele próprio – ou se anulará a esse ambiente alheio.
Ocorrem também tantas coisas maravilhosas e trágicas, como as que registra em Tango de viúvo, uma poesia soberba. Porque, evidentemente, tudo isso responde a experiências vividas, algumas delas ameaçadoras, perigosas. Ele tem sua própria vanguarda, não a de Vicente Huidobro, típico vanguardista do Chile, da América Latina, que vai a Paris e fecha com Apollinaire, disputando com outros poetas a paternidade do criacionismo. Não. Neruda fecha consigo mesmo, só com sua alma.
Ele precisa sobreviver. Em algum momento diz: "quero guardar para mim um lugar, eternamente". Ou seja, está no dilema de ser ou não ser. De sobreviver ou morrer. E o fará através da poesia, que será muito diferente daquela dos Vinte poemas de amor. Evidentemente, ele fazia sua própria vanguarda.
Aonde ia essa vanguarda? À absoluta proclamação da liberdade e da independência da poesia em relação aos moldes estabelecidos. Porque no geral a poesia deveria tratar de temas sublimes, temas poéticos por excelência: o entardecer, os olhos da amada. No entanto, ali ele se insurge contra o que chama de "a negra monarquia" da antiga literatura. Ali se produz a insurreição – de uma maneira mais profunda. Na verdade, a poesia de Residência, iniciado no Chile, é escrita em três continentes: América, Ásia e Europa – finalmente, na Espanha. Ele sempre quis ir à Espanha – era seu sonho a casa-matriz de seu idioma.
Chega um momento – acredito eu – em que pode, e quer, ir em direção às capitais de sua língua materna. Mas também faz parte de sua obra o reconhecimento; é dessa forma que retorna ao Chile. Passa pela cidade mais populosa de língua espanhola, Buenos Aires, e se encontra com Garcia Lorca, aumentando seu desejo de ir à Espanha.
Chega à Espanha, finalmente – a história é conhecida: os poetas jovens da geração do 27 o saúdam, recebem-no como o grande renovador da poesia. Escreve na revista que edita – periódico de poetas espanhóis dirigido por um chileno, "Cavalo verde da poesia", despertando a ira de Juan Ramon Jimenez, procurador, profeta e apóstolo da poesia pura. Neruda escreve o ensaio Por uma poesia impura, que tem muita relação com o que fez e descobre no Oriente também: dar a qualquer tema considerado até então prosaico o direito de se converter em poesia se o tocam essas mãos de Midas capazes de fazer o milagre de transformar areia em ouro. E isso sustenta firmemente.
Nessa época filia-se ao Partido Comunista, uma decisão política, porque aquele rapaz anarquista vê como os comunistas trabalham na guerra da Espanha. Na verdade, lá se sente comunista, um comunista sem militância – esta será consumada em seu retorno do México, onde redescobre a América pré-colombiana. Isso se confirma e o leva a escrever o grande manifesto poético Alturas de Macchu Picchu.
Na Espanha Neruda se transforma. Entre os temas prosaicos que introduz encontra-se qualquer coisa que o impressiona: a alcachofra, a enguia frita… Mas também os sentimentos, as dificuldades do mundo. Mergulha na vida. O detalhe do que é considerado cotidiano, à margem da poesia, ele poetiza. Produz muito. Ele morre aos 69 anos de idade, dos quais pelo menos 50 dedicados à poesia.
A Espanha abre-lhe as portas. Ele se projeta como um grande poeta. Inclusive, quando a Academia fundamenta o veredito que lhe dá o prêmio Nobel, ela diz: "Premiamos a um poeta controverso, discutido e discutível".
De fato, durante muitos anos – de 20 a 40 – sempre esteve presente como postulante. E isso significa ser um valor permanente. Desse modo, esse menino órfão, de Temuco (natural de Parral), zona chuvosa, obscura, um fim de mundo, esse poeta da América violenta, é aceito no centro do mundo e em todas as partes.
Agora, o povo o transforma de pessoa em personagem; mas, em função do que ele fez. É um poeta que, corretamente traduzido, pode conscientizar corações em todas as partes, pode ser um poeta corrente em todos os continentes, todas as línguas. Ele está agora às voltas com uma nova batalha: também ser poeta do século XXI. O tempo o dirá. O Chile, um pequeno país, o está celebrando. Mesmo em países que se consideravam dominados pelo inimigo (Estados Unidos, Alemanha) organizaram grandes festejos: Espanha, França, Itália.
São vários triunfos não exclusivamente pessoais, mas o êxito desse conceito de poesia. Curiosa ou naturalmente, Neruda é o que mais influenciou para protestar a poesia e para aceitar também a do século XX – diferente da do século XIX e possivelmente da do século XXI. É uma mudança e sua continuidade. Essa poesia diz que não pode ser alheia à sociedade, à história, ao interesse dos homens, de suas dores, suas guerras. Neruda lutou durante muitos anos. Em Estocolmo, diante do rei e da Academia, fala de sua fidelidade ao povo e diz: "por isso cheguei até aqui com minha poesia e minha bandeira".
Muitos dizem que isso é pura retórica, isso pode ser encontrado em sua poesia; mas, concretamente, ele se dedicava a viver bem, colecionar, viajar etc. Sua real inserção foi estreita. Em sua adolescência e juventude foi entusiasta, mas pobre. Inclusive passou fome. Só mais tarde – quando ficou conhecido e aceito no mundo – ocorreu a fabulosa venda de um milhão de exemplares de "Vinte poemas de amor" num momento relativamente prematuro, cifra insólita para a época… Foi um gozador da vida, mas um responsável da vida. Absolutamente. Foi condenado, perseguido, teve que escapar como um fugitivo. Conheceu todas as armadilhas da vida, mas reconhecia que uma vida como a sua, oxalá todos a tiveram em algum momento. Defendeu em sua poesia a "democracia do almoço" para todos. Inclusive, quis ser seu porta-voz.
Também conheceu a fúria do inimigo e a contestou com muita acidez. Muitos dizem que há muitas coisas contingentes em sua poesia, porque ele queria que toda a vida tivesse direito à poesia. Isso significou uma poesia grandiosa. Inclusive, alguém tão longe dele, como Jorge Luis Borges, definia poemas de Neruda, por exemplo Cantos de amor a Stalingrado, como cantos de amor ao povo mais do que a Stalin…
Portanto, ele sensivelmente fez da poesia sua vida e de sua vida poesia. Mas, não apenas em função de sua individualidade, que era muito forte, como também de sua responsabilidade cidadã e de sua consciência de que a sociedade injusta deveria ser transformada. Por isso, defendeu-se com sacrifício, porque era muito assediado, estava cheio de tentações do sistema que pretendia ganhá-lo, oferecendo-lhe tudo – muitos intelectuais caíram nessa. A CIA, inclusive, tinha um departamento especial para evitar que ele ganhasse o prêmio Nobel, como se sabe agora. Ele jamais cedeu, mesmo reconhecendo seus erros – que são os de todos nós. Erros esses, contudo, de boa-fé porque depositava sua confiança no humanismo do projeto socialista que, no meu entender, foi perturbado por Stalin. Isso se encontra em vários de seus livros. De maneira que todos os que continuam dizendo que ele não criticou Stalin significa que não conhecem suas obras.
Neruda foi um humanista e morreu como tal. Morreu, sintomática e simbolicamente, com a democracia chilena, com a liberdade no Chile, com o respeito pelo ser humano. Morreu dias depois da morte de Allende. Estava bastante doente. E o golpe de Estado o fez piorar. Na verdade, Neruda morreu "de morte nacional". Sua morte e seu enterro têm algo de tragédia grega. Não havia tanta gente como no de Victor Hugo, mas uns tantos que se atreveram a acompanhá-lo nos dias mais trágicos em que a morte reinava no Chile. Ele teve três sepulcros – agora, finalmente, encontra-se em Ilha Negra, como ele queria.
Acredito que Vinte poemas de amor, sua poesia lírica, Alturas de Macchu Picchu permanecerão vigentes daqui a 50, 100 anos. Isso, em relação ao que o povo em geral pensa. Residências eu incluiria, mas não inteiras. Considero maior a Primeira Residência porque é a expressão literária mais profunda de uma situação de vida crítica, de desespero, de solidão. Cada um tem direito a dizer "gosto de tal livro, ou de tal poesia", mas ele permanece com toda sua obra e muitos poemas continuarão a ser repetidos. Nela, se encontra o homem que quis modificar o mundo e que pronunciou aquele memorável discurso de Estocolmo, no qual disse ser necessário buscar a beleza, mas também ser preciso ocupar-se do destino dos homens, da humanidade. Para mim, é por isso que Neruda está em todas as partes.
Ele era um patriota em absoluto. Queria o melhor para o Chile, um país democrático, libertário. E também uma América Latina… Ou melhor, que não se pode separar o homem de seus sentimentos íntimos e pessoais, do que teve também grandes sonhos coletivos que foram parte da cultura progressista da humanidade.
Nesse sentido, acredito que Neruda pode ser não apenas poeta do século XXI, mas também do terceiro milênio. Além disso, a vida dele é uma grande parábola: um garoto órfão, relativamente pobre, no último rincão do mundo, que se transforma em pregoeiro da humanidade.
Para mim, essa é a tarefa atual: quando os Estados Unidos invadem o Iraque e fazem da guerra, ou seja da morte massiva, uma divisa e uma forma de governo e de uma chamada civilização, é fundamental a voz dos poetas que, no fundo, é a voz do amor. No caso, Neruda cantou o amor por uma mulher e o amor pela humanidade. E por isso sofreu e encarou perigos.
Quando alguns perguntam a favor de quem seria Neruda hoje em dia, a única resposta seria "das mesmas pessoas em que foi em vida". Não pensem que se transformaria em admirador de Pinochet ou de George Bush. Está claro com quem estaria.
Texto traduzido e adaptado de entrevista ao jornal El Siglo (Chile) por Maria Lucília Ruy, mestranda em letras clássicas pela USP.
EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 77, 78, 79, 80, 81