Darc Costa, professor e estrategista ligado à Escola Superior de Guerra (ESG), concedeu esta entrevista à Princípios ainda como vice-presidente do BNDES.
Nela, expõe que o momento histórico em que vivemos pressupõe o fortalecimento dos laços nacionais de toda a comunidade sul-americana em torno de um “Mega-Estado” com o Brasil como catalisador

Poucos dias após a notícia da reeleição de George W. Bush, o presidente Lula foi protagonista, na reunião do Grupo do Rio, do anúncio da criação da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSAN). Ali parece ter ficado explícito que a Alca não é prioridade regional. Foi essa a sua percepção? E o acontecimento em si, não lhe ocorre ser emblemático da nova situação do Hemisfério?

Darc Costa – A minha percepção é a mesma, mas é importante colocar que a Alca não é também mais objetivo central da política externa norte-americana como era há 10 anos. Quer dizer, as duas coisas de certa forma se estruturam paralelamente. Nem é interesse dos países da América do Sul um acordo de livre comércio com os norte-americanos hoje, nem os norte-americanos têm interesse num livre comércio explícito com o bloco da América do Sul.
Os americanos sempre vão, evidentemente, procurar vantagens comerciais em quaisquer espaços frente a outros concorrentes, mas o objetivo central de estruturação de um bloco na América do Sul que possibilitasse aos norte-americanos acesso irrestrito aos recursos naturais da região deixou de ser prioridade dos Estados Unidos desde 1997. Porque até 1997 o continente americano tinha recursos suficientes para garantir sua hegemonia. E as descobertas de que o petróleo desse continente representa só 14% das reservas mundiais e que os norte-americanos consomem de 25% a 30% do petróleo mundial levaram os Estados Unidos a mudarem sua estratégia. E a Alca deixou de ser prioridade como era, em face da incapacidade provedora de petróleo no continente americano aos norte-americanos. Por isso, os Estados Unidos priorizam a Ásia Central.

Para o desenvolvimento brasileiro e sul-americano, em seu estudo (“Estratégia Nacional”, 2003) há a defesa da construção de um Mega-Estado. O que significa isso? E como compreender a liderança do Brasil, no sentido da direção desse movimento?

Darc Costa – Sim, a direção do Brasil é imprescindível e esse é um movimento que já se observou na história dos Estados nacionais. Não é uma coisa que acontece agora no século XXI. Isso aconteceu também no final do século XIX. Dois Estados nacionais se construíram pela conjunção de pequenos Estados, como é o caso da Alemanha e da Itália. E esse é um processo que tem como objetivo construir capacidade competitiva em nível mundial.
Quer dizer, se se estrutura um mercado de tal forma a ter escala suficiente para colocá-lo no mercado mundial, o seu mercado passa a ter significado. E hoje, dado o avanço da tecnologia, ou se estruturam mercados com grande capacidade de recursos e população ou não se terá condições de concorrer nas tecnologias de ponta, porque elas são tecnologias em escala intensiva.
Então, os países pequenos ou se unem ou ficam na periferia. Isso é o que levou à criação da União Européia. A União Européia é uma realidade em função da necessidade do mercado.
Por isso, a integração da América do Sul decorre necessariamente do espírito da época. E o espírito da época de hoje, muito diferentemente do que dizem, não é de globalização, mas de regionalização.
E para se levar isso adiante é preciso de alguém que evidentemente tenha poder para construir esse processo. Na América do Sul só tem o Brasil com força suficiente para fazer isso.

Com a tradicional fragilidade dos governos da América do Sul em termos de dependência econômica, dependência cultural e ideológica, em relação aos Estados Unidos, parece-nos bastante complexa a tarefa de conciliar a integração com os interesses nacionais de cada país.

Darc Costa – Na verdade, procuramos construir um Mega-Estado, como foi colocado antes, para os interesses nacionais se conjugarem num interesse único de um Mega-Estado. E para isso nós temos que valorizar o que é nosso: a nossa cultura, a cultura da América Latina, em especial da América do Sul – que é uma cultura fortíssima, mas não encontra espaços de projeção nos meios de comunicação.
Muito mais do que “a” questão ideológica, os meios de comunicação são estruturados ideologicamente. Então, para fazer com que as coisas avancem é necessário nós nos reconhecermos como nós próprios. Ou abandonarmos a visão do outro e ficarmos com nossa própria. Coisa que podemos fazer estruturando processos no imaginário político. No meu entender, isso o governo Lula tem feito. A idéia de que o melhor do Brasil é o brasileiro é um exemplo. Quer dizer, na verdade, a valorização da auto-estima é capaz de construir uma cultura que se projeta externamente. Precisamos recuperar a auto-estima do povo brasileiro e do povo da América do Sul, que é um povo glorioso se prestarmos atenção. Nós somos o gênero humano posto aqui. Diferentemente deles que são partes do gênero humano, nós somos o próprio gênero. Precisamos recuperar isso: entender que nós somos o gênero. E é ao gênero que é dado estímulo, não às partes.

Aliás, nossa experiência mostra que na grande imprensa brasileira há editores, na área internacional ou regional, no Brasil, mais voltados para os Estados Unidos e para a Europa do que para a América Latina. Ou seja, para difundir a visão de mundo e os costumes deles…

Darc Costa – Uma grande coisa se observa: as notícias não são feitas aqui, elas são feitas fora. Como se fosse um editor, um sistema de informar, instalar de cima para baixo. Do centro para a periferia, dos ricos para os pobres. Tudo é estruturado de tal forma que estabeleça as relações de dominação.
Na verdade, temos que recuperar um pouco a visão hegeliana [de G.W. Hegel] do mundo: os homens nasceram para ser livres, não para ser escravos. Mas o que faz o homem ser livre é ele estar disposto a levar o processo até o fim, já o escravo sempre pára no meio. A América Latina precisa entender que deve levar o processo até o fim, porque, na verdade, a América Latina é o ramo culto da civilização ocidental. A barbárie era os povos do norte.
Temos de entender que nós somos o resultado de um movimento fantástico. Inclusive um movimento de navegações, talvez a maior epopéia do homem tenha resultado em nós: nós da América Latina. Os ibéricos que transformaram o mundo. E transformaram o mundo descobrindo o caminho para as Índias, mas ao mesmo tempo fazendo reconhecimento da África e descobrindo as Américas.

Outra tese exposta no seu livro – aliás, de Filosofia da História – é de que os sucessivos impérios ao longo do tempo sofrem um processo de passagem e de alternância do centro para a periferia mundial. Hoje quando há sinais de decadência histórica da superpotência norte-americana, como você vê essa questão?

Darc Costa – Todos têm consciência disso, qualquer estudioso de filosofia e história. Mas qualquer pessoa que olhe a história observa que o que faz a civilização avançar é o fato de as periferias buscarem ser centro. Isso é uma lei universal. Toda periferia quer ser centro. Toda barbárie quer ser culta. Mas o que faz a periferia ser centro e a barbárie ser culta é uma qualidade que uma periferia única tem, porque nem todas as periferias conseguem ser centro.
Se olharmos para a história, verificamos que só as periferias que contestaram conseguiram ser centro. Periferias dependentes não foram a lugar nenhum. Não há coisa pior nessa teoria da dependência do que o aceite da dependência. Porque aceitando ser dependente não se chega a ser centro. Só se chega a ser centro quem contesta.
Então, é relevante entender que é um processo similar. Todo centro é um castelo sitiado. Por quê? Porque a capacidade de ele sonhar é limitada. Ele sonha em continuar a ser centro. Enquanto a periferia sonha em conquistar o centro.
É um posicionamento mais forte. Mas nem toda periferia consegue ser assim. É um processo similar ao da fecundação. Todos buscam o óvulo, mas só o mais competente consegue fecundá-lo. Então, a civilização é feita basicamente pelo fato de a periferia buscar ser centro. E quem faz o movimento não é nem a periferia, mas a barbárie. E Progressivamente a periferia vai apropriando a cultura e acumulando interiormente. Porque as idéias são os degraus por onde os homens vão subindo, e o que importa é o gênero que forma a civilização. Os indivíduos são partes do gênero.
Portanto, basicamente, acontece que os estrategistas norte-americanos têm conhecimento de tudo isso que estou colocando. Qual é o objetivo deles? Maximizar o período de tempo da hegemonia norte-americana porque sabem que não é eterno.
Então, todo estrategista que opera na periferia tem por objetivo criar condições para a periferia ser centro.
No Brasil temos de superar essa discussão da dependência porque não leva a lugar nenhum. Há três correntes: do Teotônio [dos Santos], do Rui [Mauro Maurini] e do Fernando Henrique. A do Rui era mais balizada, mesmo assim, é uma teoria dependente.

Constatamos que há uma verdadeira corrida dos Estados Unidos contra os países sul-americanos visando a instituir acordos comerciais bilaterais, como por exemplo, o Chile, e assim anular iniciativas integradoras. O que o governo do presidente Lula, o Itamaraty e o BNDES têm feito para contrarrestar essa ação deliberada da política norte-americana?

Darc Costa – Essas questões passam acima do jogo da diplomacia. Evidentemente, há interesses por trás desse jogo. Os norte-americanos visam a fazer acordos bilaterais com o objetivo central de construir processos que lhe dêem parte da América do Sul. Assim como o Chile. Um acordo bilateral com os EUA pouco leva porque como o Chile pode competir com os municípios mexicanos da fronteira dos Estados Unidos na escalação de fato? O Chile está a seis mil quilômetros de distância e, além disso, também teria outras questões a resolver, porque tem um padrão médio de vida melhor do que os municípios da fronteira do México. Portanto, há um custo, porque há produtos produzidos no Chile que não têm nenhuma capacidade de competir com os municípios da fronteira do México. E mais grave ainda: esses municípios da fronteira do México hoje têm condições de competir com a China. Então, nenhum acordo de livre comércio dá vantagens aos chilenos em termos comerciais. Pode lhes dar algumas vantagens políticas, mas não econômicas. Qualquer acordo que o Chile tiver com o Mercosul lhe dará todas as vantagens porque depende energeticamente, industrialmente etc.
Portanto, essa é uma questão de tempo, porque a economia acaba prevalecendo sobre a política. E é isso que o governo brasileiro tem de peitar: que as coisas se resolvam como têm de ser resolvidas. Porque ninguém consegue mudar uma vida. A geografia é destino. Assim como a história é razão, a geografia é destino. O Chile está destinado a compor a América do Sul, porque geograficamente está na América do Sul, nunca vai se compor com a América do Norte. Não se discute.

O governo Lula caminha agora para o seu segundo turno de mandato, com um crescimento médio do PIB (Produto Interno Bruto) em torno de 3,5%-4%. É possível um crescimento econômico compatível com as dimensões e as necessidades do país, tendo em conta a atual política econômica?

Darc Costa – Nós temos que olhar o Brasil pelo próximo meio século. E olhando o Brasil pelo próximo meio século não existe país com potencial para crescer tanto no mundo como ele. As pessoas falam na China, mas ela tem alguns problemas que nós não temos. Nós precisamos entender o seguinte: crescer pressupõe acrescentar e envolver para dar à população usufruto da capacidade. Então, nós temos que desenvolver o país. Crescer 3,5% não quer dizer muita coisa porque nós muitas vezes esquecemos o denominador da fração: considerar as pessoas. O relevante no processo é que as pessoas cresçam. Para mim, esse deve ser o objetivo do governo: fazer com que as pessoas evoluam, cresçam, tenham capacidade de se sentirem melhor. E isso depende da renda, evidentemente. É preciso distribuir renda e é preciso crescer.
A propósito, o Brasil cresceu 7% durante 50 anos e o Banco Central apareceu nos últimos 16 anos. E ele tinha uma função clássica, porque o que eles chamam hoje de BC nada mais é do que o computador da moeda. Mas a idéia de um Banco Central surge num informe que Hamilton faz ao Congresso norte-americano em 1791. Onde não é exclusivamente função de controle da moeda, mas, principalmente, do controle da expansão do crédito Porque capitalismo não é feito de sonho, mas de crédito. Se o Banco Central não dá crédito não há capitalismo que avance. Quer dizer, se quisermos que o país cresça devemos dar crédito. E crédito pressupõe instruir o Banco Central a cumprir as suas funções, muito além da moeda.
E se continuar com essa política o Brasil fica subordinado ao Banco Central; coisa inacreditável, porque, na verdade, o BC existe para servir o Estado-nacional e não para se servir do Estado-nacional.

Há poucos dias o presidente do Banco Central se manifestou defendendo uma tese de que o recurso do BNDES teria de ser administrado pelos dois.

Darc Costa – Devia se estar preocupado em aumentar os recursos de crédito em nosso país. Para isso basta levantar o multiplicador bancário. Precisa explicar para ele que existe uma coisa chamada multiplicador bancário. Porque se ele aumentasse o crédito nos outros bancos, necessariamente o crédito do BNDES cairia.

Agora, então, uma questão de conjunto: que lugar a integração latino-americana tem na construção desse novo projeto nacional de desenvolvimento? E qual o papel do BNDES nesse processo de integração na América do Sul?

Darc Costa – O Brasil teve um projeto que cresceu em 50 anos, porque teve um projeto nacional: o chamado projeto da era Vargas.
Que projeto era esse? A industrialização é o motor do desenvolvimento. O país tem que ser um país industrial. A urbanização é a forma como nós podemos fazer política social a um preço mais baixo. Integração nacional é fundamental para eu me apropriar das riquezas que o país tem. Então, esse tripé foi feito com Vargas entre 1930-54; sem Vargas entre 1954-64; e contra Vargas entre 1964-80.
O projeto era o mesmo. E tinha um outro pressuposto: intervenção estatal na economia, acaso algum dos pés desse tripé não pudesse avançar. Então, houve intervenção estatal na economia para se criar o BNH, a Telebrás, o BNDES, a Petrobras.
Quer dizer, o projeto do Brasil era esse e o Brasil cresceu a 7% ao ano. O Brasil tinha um projeto nacional. E continua necessitando de ter um projeto porque o país não é um país industrial. Isto no sentido de que o Brasil tem indústria, mas 80% da população não participam, estão fora dos usufrutos da indústria; diferente do Japão, da França, dos Estados Unidos, porque a população participa do usufruto dos bens produzidos pela indústria.
No Brasil tem muita gente nas cidades, mas não é um país urbano; ser urbano é dar educação, trabalho, saúde, transporte às pessoas que moram na cidade.
O Brasil faz grande parte de integração nacional, mas metade do território está fora da urbanidade e da cidadania. No meu entender, a única forma de integrarmos o conjunto é integrar para frente, é integrar a América do Sul. Só colocamos a Amazônia dentro do Brasil se for feita uma ligação Caracas-Brasil, ou Bogotá-Brasil, ou Lima-Brasil. O projeto continua o mesmo, só que agora com uma visão mais ampla.
Para isso, temos de recuperar a idéia de projeto nacional; hoje o projeto nacional passa pela integração da América do Sul. E o BNDES é o grande instrumento financeiro que o governo tem para construir a integração e para vender a idéia de que somos capazes de fazê-lo.

A. Sérgio Barroso é mestre em economia social e do traballho pela Unicamp, Pedro de Oliveira é jornalista e editor de Princípios.

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 16, 17, 18, 19, 20, 21