A chegada de mais um Fórum Social Mundial traz à tona o debate sobre a atualidade da luta antiimperialista e o seu papel frente à globalização neoliberal, que se expande e se torna cada vez mais complexa. Muitos aspectos relacionados ao processo de globalização poderiam ser analisados ao refletirmos sobre a quinta edição do Fórum. Chama a atenção, no entanto, a polêmica sobre o papel do Estado nacional e as novas formas de participação política. Estes temas ganham ainda mais relevância nas circunstâncias em que se realizará o V Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005.

O mundo assistirá à posse do segundo mandato do governo Bush, principal alvo dos movimentos antiglobalização nos últimos anos. A emblemática cidade de Porto Alegre, que tanto atraiu durante as primeiras edições do encontro mundial dos movimentos sociais, já não estará mais sob a direção do PT. O governo Lula estará caminhando para a segunda metade de seu mandato e a expectativa de sua participação no evento provoca, no lugar da quase unanimidade dos aplausos, de dois anos trás, a esperança renovada dos que continuam a apoiá-lo, a crítica dos que foram assaltados por dúvidas e, também, a frustração dos que, precocemente, desistiram.

As primeiras quatro edições do Fórum Social Mundial, com sede em Porto Alegre (Brasil, 2001 a 2003) e em Mumbai (Índia, 2004), se caracterizaram por catalisar as lutas populares e sociais em curso no mundo e difundir os consensos atingidos pelo movimento social global. Deste modo, segundo teóricos como Boaventura Santos (1), a participação política, antes restrita ao território nacional, passa a ser exercida de forma bastante ativa em um território global. Correspondendo a uma dinâmica própria da globalização neoliberal que, ao transferir poder decisório para organismos internacionais, gera um “déficit democrático” e cria uma crise do Estado Nacional.

Tal déficit democrático seria gerado por um distanciamento cada vez maior entre cidadão e fórum decisório. Segundo o cientista político David Held (2), vivemos em um mundo em que deliberações de organismos como a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ou a União Européia vêm afetando não somente aos cidadãos envolvidos, mas também a outros. Por exemplo, a decisão de construção de uma Usina Nuclear em uma determinada fronteira, a instalação de uma base militar, a suspensão de ajuda alimentar a um certo país ou um embargo econômico. Qual é a base decisória? Quem participa? São questionamentos apresentados pelo autor e que vêm ganhando a atenção de vários pensadores da Ciência Política contemporânea.

Hardt e Negri (3), autores do polêmico livro Império, responderiam a Held que as ONGs (Organizações Não-Governamentais) passariam a representar aqueles que não podem representar-se a si mesmos na pirâmide global. Para esses teóricos, a primeira demanda política de uma “multidão” de indivíduos sem referência territorial seria a conquista da “cidadania global”, o que, para os autores, significa o direito geral de controle de seu próprio movimento. Ainda segundo esses pensadores, a luta de classes já ultrapassou o limite nacional; assim, no nível global o desenvolvimento do capitalismo estaria face a face com a multidão, sem Estados como mediadores, a própria luta de classes teria levado ao fim o Estado-nação e proposto a constituição do Império como local de análise e conflito.

De fato, a globalização neoliberal trouxe mudanças significativas. Esta etapa de expansão do imperialismo não pode ser analisada simploriamente como mais uma fase do desenvolvimento do capitalismo mundial. Como disse o geógrafo Milton Santos (4), “não se pode dizer que a globalização seja semelhante às ondas anteriores, nem mesmo uma continuação do que havia antes, exatamente porque as condições de sua realização mudaram radicalmente”. No entanto, estamos longe de concordar com a idéia de uma indiscriminada massa de pessoas, identificada como povo global ou multidão, sendo sujeito de um movimento uníssono. Esse tipo de pensamento, que diz levianamente tomar emprestada a idéia de internacionalismo proletário, acaba por atribuir à movimentação de uma “turba” de migrantes o papel de inverter as relações sociais e de produção, sem encontrar, obviamente, as respostas para a forma em que se dará a consecução desse projeto político, elegendo a “cidadania global”, de modo extremamente abstrato, como a primeira demanda política desta massa.

Ao contrário do que pensam os adeptos da idéia de um “Império”, esse debate está estreitamente relacionado com a perspectiva do Estado-nacional frente aos fenômenos da globalização. Primeiramente, não podemos nos referir a todos os Estados como se estivéssemos falando de histórias, conjunturas e condições idênticas. Podemos eleger alguma das categorias de diferenciação usadas como, “norte X sul”, “desenvolvidos x em desenvolvimento”, “centro X periferia”. O fundamental é que há diferenças brutais entre os Estados que estão no controle do capitalismo mundial e os que estão submetidos ou tentando se subverter. Sob esse aspecto, a globalização neoliberal configura um cenário em que os primeiros estão cada vez mais poderosos e os demais com cada vez menos soberanos. Nesse contexto a idéia de superação do “déficit democrático”, proporcionado pela internacionalização dos fóruns decisórios, não parece próxima; muito menos a idéia de que isto se dará em um plano pós-nacional.

O Fórum Social Mundial está no centro dessa polêmica, que versa sobre a globalização neoliberal como geradora de uma crise do Estado Nacional e de significativas mudanças nas formas de participação política na atualidade. Vejamos se podemos extrair da análise sobre a realização e dinâmica dos Fóruns algo que nos ajude a compreender um pouco mais a polêmica apontada.

Cada uma das edições do Fórum representou a síntese do movimento social mundial naquele momento histórico. Assim, a primeira delas refletiu a conjunção dos êxitos de Seattle (protestos contra a reunião da OMC) (5), o fortalecimento da esquerda na América Latina e a emblemática administração democrática e popular de Porto Alegre. Já a segunda, foi marcada por uma resposta dos movimentos sociais à ofensiva bélica da administração Bush pós-ataques do 11 de setembro. Os desdobramentos da crise argentina, que projetou os “piqueteiros” para o mundo, também exerceram significativa influência sobre o segundo Fórum. O encontro de 2003 foi marcado pela chegada de Lula à presidência do Brasil, simbolizando a possibilidade de concretização de vários temas debatidos nos fóruns e a nacionalização de conquistas democráticas e populares locais.

Mas, foi principalmente o esforço conjunto na luta pela paz e contra a guerra que deu o tom à terceira edição. A decisão pela realização de um protesto simultâneo contra a instalação da guerra no Iraque, no dia 15 de fevereiro (2003), foi a grande vitória do encontro.

A quarta foi realizada em Mumbai, na Índia. Foi o primeiro grande teste da real “globalização” do Fórum Social Mundial. O êxito da transferência de local geográfico foi fundamental para sua mundialização e para evitar que o “diálogo global” ficasse restrito ao eixo América-Europa. O FSM da Índia foi um verdadeiro choque de realidade e de mudanças paradigmáticas na condução do Fórum. Pois, ao contrário dos encontros de Porto Alegre, em Mumbai houve participação popular ativa, diversidade estampada e diferenças culturais concretas na constituição de consensos. Mudanças paradigmáticas porque a dinâmica do movimento popular e social indiano foi preponderante na construção do Fórum.

Os comunistas, muito organizados e expressivos na Índia, tiveram um papel fundamental na construção da sua pauta, mais condizente com a dura e real luta de classes mundial. Deste modo, o Fórum indiano sintetizou a dura realidade local, de pobreza e separação por castas, a diversidade e combatividade do movimento progressista da região e o fortalecimento da luta antiimperialista e pela paz mundial.

Os sucessivos encontros mundiais dos movimentos sociais sintetizados nos FSM apontam para uma qualificação da participação política no nível global. O pensador português e ativo participante do Fórum, Boaventura Santos, interpreta essa emergência de encontros, manifestações e constituição de consensos globais, como a materialização de uma “globalização contra-hegemônica”. Para ele, esse diálogo global é o sinal de que uma globalização alternativa está em curso e se expressa através de um consenso difundido pela opinião pública mundial e de milhares de organizações sociais na luta contra as disparidades impostas pelo sistema em curso. Isto estaria demonstrado através de atividades realizadas durante as edições do Fórum, entre organizações locais que passam a formar redes transnacionais. O diálogo entre essas duas “globalizações” seria, portanto, inadiável, pulsando na tensão entre a “globalização hegemônica” e a “globalização vinda de baixo”. Restando, por resolver, a necessidade de mais organização, atuação e objetivos claros para a “globalização contra-hegemônica”.

É verdade que mudanças significativas vêm ocorrendo nas formas de participação política em vários países do mundo. Tais mudanças expressam uma sintonia maior com problemas globais que dizem respeito a todas as nações do planeta. Os encontros mundiais têm influenciado nas ações locais, nacionais e regionais de diversas organizações e entidades, formando redes de atuação em todo o planeta. As práticas de solidariedade internacional encontram um ambiente propício para se desenvolver. Os organismos multilaterais e internacionais apresentam mais dificuldades para aprovação e implantação de medidas polêmicas. No entanto, parece extremamente otimista e idealista conceber tais desdobramentos como propulsores de uma dada globalização contra-hegemônica. Aqui, volta à tona o tema do Estado Nacional.

Vejamos, como exemplo, o caso da guerra do Iraque. Ele é emblemático para demonstrar a falsidade da chegada da “era pós-nacional”. Tanto o segundo quanto o terceiro Fórum expressaram iniciativas de luta contra a guerra e pela paz. O principal feito do FSM-2003 foi a mobilização e a organização do maior protesto simultâneo da história da humanidade. Gigantescas manifestações tomaram as ruas da Inglaterra, Espanha, Itália – países que apoiavam a deflagração da guerra. As mobilizações pacifistas foram fundamentais para constranger a administração Bush e seus aliados. No entanto, nem os protestos e nem a ONU(6) foram capazes de impedir o mais forte Estado-nacional da nossa era de deflagrar a guerra.

Outro exemplo é o caso Argentina e a reação surgida após o colapso econômico-político de dezembro de 2001, em que as movimentações populares derrotaram todas as previsões. As concentrações gigantescas, os “cacerolazos” (panelaços), os bloqueios de estradas, as grandes marchas, assembléias de bairro foram expressão de uma fase de acumulação política e social de grande riqueza. Porém não se deu uma ruptura, o povo dizia querer uma democracia real e não a existente.

Como se fosse possível constituir um novo Estado; uma nova democracia; e um novo poder sem que os atuais sejam alterados. Por mais combativas que fossem as assembléias populares, não apresentavam uma alternativa de poder. As atividades aconteciam para marcar novos protestos e assembléias, enquanto isso a política neoliberal se renovava, com pequenas alterações nos diversos governantes que entraram e saíram antes do processo eleitoral de 2003.

Freqüentemente o discurso de expoentes do movimento antiglobalização, como Naomi Klein ou comandante Marcos, apresenta a defesa de uma democratização radical do Estado e uma simultânea abdicação da luta política nacional. Como se aceitassem algo que eles próprios combatem, ou seja, a submissão do Estado Nacional à dinâmica política global imposta pelo imperialismo nas últimas décadas. Talvez isso faça parte de um processo de auto-afirmação – o que pode ser percebido no tratamento que tais movimentos dão à sua própria identidade, não perdendo uma oportunidade de se definirem como novos e diferentes em relação à política tradicional e se colocarem como fundadores e guardiões de suas próprias tradições e experiências sociais. Isso explica, em parte, a tensão entre esses movimentos e os partidos políticos revolucionários, rotulados pelos primeiros como centralizadores, vanguardistas e manipuladores.

Uma globalização contra-hegemônica não se faz apenas de diálogos, protestos e redes transnacionais de experiências locais. É preciso aliar esses esforços às dinâmicas nacionais de disputa real pelo poder político e econômico – para que se possa projetar nações soberanas a um patamar de real disputa internacional pela hegemonia.

Essas questões parecem começar a preocupar os organizadores do V Fórum Social Mundial. Recentemente foi demonstrada elevada preocupação quanto à participação dos governos anfitriões durante o próximo encontro. É interessante notar intelectuais e organizadores históricos do Fórum, que sempre buscaram colocá-lo como algo acima da política – a partidária principalmente –, ou que tentavam buscar uma nova qualificação para um tipo “novo de partido”, agora tão preocupados com os efeitos da disputa partidária no município, no estado e no país em que se dará o encontro.

A repentina ansiedade dos organizadores quanto à participação dos governos anfitriões remete a pelo menos duas conclusões. A primeira, de que “Porto Alegre” e Lula eram atrativos em um passado recente, portanto, ajudavam na mobilização e realização do Fórum e, agora, já não são mais – o que parece extremamente conveniente e equivocado por parte dos que aventam tais idéias. A eleição de Lula e as conquistas do povo de Porto Alegre deveriam ser motivo de orgulho para participantes e organizadores do Fórum que contribuíram com a construção desse projeto.

A segunda, de que os movimentos antiglobalização e os organizadores do FSM não estão alheios às disputas pelos governos, o que é bastante positivo. Afinal, somente uma reunião de esforços entre movimentos, partidos e governos progressistas, articulados em um amplo espectro global, respeitando as realidades e necessidades de cada povo, poderá fazer frente à globalização neoliberal em curso.

A despeito de tais preocupações, o Fórum vai sendo consolidado como um espaço importante de catalisação e divulgação das lutas em curso. Dentro da diversidade característica de cada evento, tem sido possível atingir alguns consensos importantes, como a luta contra a Alca e as mobilizações pela PAZ. Portanto, mesmo sob condições aparentemente adversas, a marca do 5º FSM será a esperança renovada nas lutas populares e sociais que se multiplicam; nas vitórias consolidadas, como a de Chávez na Venezuela; nas vitórias recém-conquistadas, como a de Tabaré Vasques no Uruguai; e, principalmente, na solidariedade aos povos ameaçados do Iraque e da Palestina.

Ana Maria Prestes é mestranda em ciências sociais pela UFMG e diretora da União da Juventude Socialista (UJS).

Notas

(1) SANTOS. B. S. “Os processos da globalização”. IN: SANTOS, B. S. (ORG.) Globalização – fatalidade ou utopia?. Porto: Afrontamento, 2001 pp. 31-105
(2) HELD, D Democracy and the global order. Cambridge: Polity Press, 1995
(3) HARDT, M & Negri, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001
(4) SANTOS, M. A transição em marcha, In: Biblioteca de alternativas, Site Oficial do Fórum Social Mundial (www.forumsocialmundial .org.br), São Paulo, 2002.
(5) Organização Mundial do Comercio.
(6) Organização das Nações Unidas.

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 64, 65, 66, 67, 68