Que balanço o PCdoB faz dos dois primeiros anos do governo Lula?

Renato Rabelo – Na verdade, há dois balanços, pois temos de considerar o primeiro e o segundo ano. No primeiro, é justificável quando o governo diz ter encontrado uma situação gravíssima. Segundo o próprio presidente da República – um país com dívidas gigantescas. E o problema é que essas dívidas não geraram nenhum desenvolvimento; e o governo passado ainda vendeu boa parte das estatais. Ou seja, com dívida e venda das estatais sem desenvolvimento o país ficou quase estagnado.

Ora, esta herança é bastante pesada. Um problema estrutural sério, porque acabamos nos tornando um país com dívidas enormes, além do aprofundamento das desigualdades – historicamente uma realidade estrutural – e acrescida de uma série de problemas emergenciais: a segurança nas grandes cidades, a fome que, para um governo como o de Lula, é sempre uma questão sensível. O governo também teve de enfrentar a questão imposta em 2002 pelo FMI aos candidatos a presidente da República em relação a manter ou não o acordo. Esses problemas emergenciais e estruturais conformam uma série de questões de difícil resolução. O governo tentou enfrentá-las, procurando “arrumar a casa”.

Mas o problema é que o novo governo eleito nos marcos da institucionalidade vigente se constituiu num contexto de uma correlação de forças muito desfavorável, adversa. Apesar de ter sido eleito com 60% dos votos, a base que o apoiou não fez maioria no Senado nem na Câmara. A grande maioria dos governadores é da área conservadora, sobretudo nos grandes Estados.
Juntando-se a herança citada com a correlação de forças desfavorável, qual o governo real, concreto, que se forma em função disso?

Partindo dessa realidade, o governo eleito significou uma ruptura política, porque novas forças políticas assumem o governo da República, mas não quer dizer que houve uma ruptura institucional nem uma viragem radical. Formou-se um governo concreto – que teve de compor com forças heterogêneas para formar uma base de apoio e de sustentação – em função de toda essa situação. O que marca é o fato de ser um governo democrático, constituído de forças plurais. Sua própria base de sustentação e de apoio é heterogênea.

Mas, o que vai caracterizando esse governo nesses dois anos? É um governo com uma face externa em que há um esforço de construir uma nova política externa mais afirmativa, em função dos interesses nacionais. Foi um grande êxito a paralisia da Alca e o objetivo central do Itamaraty de integração da América do Sul, sobretudo o relançamento do Mercosul. Isso tem um papel estratégico da maior importância – não é por acaso que os Estados Unidos tentam esvaziar esse papel protagonista que o Brasil procura jogar na América do Sul.

No nosso entender, com essa política ativa, afirmativa, o Brasil conseguiu relançar o Mercosul – e já vem conseguindo alguns êxitos –, apesar das pressões e das resistências, demonstrando que há grandes interesses envoltos nessa questão. Mas, ampliou-se o Mercosul. Hoje ele é constituído por quatro países originais e mais seis parceiros, que aderiram agora – praticamente todos os países da região andina. Num primeiro momento: Peru, Bolívia e Chile; agora, na última reunião de Ouro Preto, Venezuela, Colômbia e Equador. Ou seja, está sendo posto em prática, portanto, esse objetivo de ampliação. Além do mais, isso tem sido a base para a formação da comunidade dos países da América do Sul – mais precisamente a Comunidade Sul-Americana de Nações.

Portanto, o Mercosul está servindo de base também para fortalecer essa perspectiva. Para nós esse é um passo importante e o governo brasileiro joga um papel protagonista. No âmbito da OMC – onde há luta e disputa entre os países em via de desenvolvimento e as grandes potências capitalistas – o Brasil também teve um papel protagonista e uniu 20 países: o G-20. Não é uma questão qualquer. E as parcerias estratégicas que este país procura fazer com Índia, China, Rússia e África do Sul. Some-se a isso a diversificação de nosso mercado externo com a África e países árabes. Chama a atenção também que o peso relativo do comércio externo com os Estados Unidos está caindo – há dois anos atrás era de 26%, hoje é de 20% – e se amplia mais com a Europa, a China e o próprio Mercosul, onde a Argentina passou a ser um parceiro também importante.

Tudo isso resume uma política de fato afirmativa do Brasil. É o esforço de uma nova política externa.
Mas, em contraste com a política interna, o governo não reuniu convicções e condições para mudar a orientação econômica. Na realidade, uma orientação econômica que mantém o padrão da estrutura do sistema anterior, muito calcado nos interesses dos círculos financeiros e montado na década de 1990.

O governo não conseguiu superar isso. A política que vem sendo adotada tem como núcleo “teórico” – entre aspas porque é uma justificativa – que o desenvolvimento sustentado no Brasil não poderia ser durante muito tempo acelerado. Seria, no máximo, um crescimento na ordem de 3 a 3,5% ao ano. Segundo os setores que defendem essa visão, é necessário também garantir a “estabilidade” com uma inflação que, para os padrões do Brasil, está fora da realidade – poderia ser um padrão europeu ou norte-americano. Em função disso, os juros de equilíbrio – fazendo parte também desse núcleo “teórico” – não podem ser menores do que os 9% reais. De onde eles tiraram isso? Aliás, há uma tese defendida pelo presidente do Banco Central sobre isso. Também é importante considerar que a forma de se resolver o problema da dívida, ou diminuir essa relação dívida líquida/PIB, tem sido exatamente com superávits fiscais primários altíssimos. Então, esse é o núcleo que vem sendo mantido na política econômica.

O PCdoB procura, embora integrante do governo, fazer suas críticas àquilo que para nós é um obstáculo para as necessidades de um desenvolvimento, hoje, voltado para as necessidades da nação e do povo. Essa é a crítica que temos feito. Porque o Brasil vai mostrando possuir um grande potencial de desenvolvimento, que pode abrir, talvez, um novo grande ciclo de crescimento. A realidade vai demonstrando isso. Só que, com essa política, esse ciclo pode ser contido e não se resolverão os grandes problemas, os grandes impasses históricos que o Brasil vive.

Portanto, esse também talvez seja o núcleo de nossa crítica, de forma mais imediata, a essa questão. Pode haver – já dissemos isso – um desenvolvimento nos dois anos que faltam para o governo (2005 e 2006). E vai haver desenvolvimento, objetivamente. Mas com essa política, será um desenvolvimento contido. E precisamos ver o que significa isso em médio e longo prazo, levando-se em conta um cenário internacional, hoje, ainda favorável, mas que condensa muitas incertezas.

Nesse sentido, o governo tem essas duas faces. Apesar de existirem – já entrando na face interna – círculos governamentais e, evidentemente, fora do governo, que procuram uma saída para um desenvolvimento mais alargado e criticam essa política contracionista, de cunho neoliberal. Existe esse movimento e, para nós, ele é importante porque vai pelo menos construindo – ou procurando construir –, na luta de idéias, uma alternativa. Essa tendência também é importante e nosso partido participa desse processo.

Nesse processo, há muitos dos problemas para a alternativa: é possível construir um desenvolvimento mais alargado, com essa situação em que há conta de capitais praticamente sem freio nenhum, sem regulamentação nenhuma? A dívida só pode ser resolvida com superávits, sem termos de enfrentar pelo menos uma renegociação? Porque isso pode levar, até mesmo na previsão deles, de 15 a 20 anos. Ou seja, não seria mais justo – nós acreditamos nisso – renegociar? Porque isso nos facilitaria abrir caminho para o desenvolvimento. Nós ganharíamos e, também, os próprios credores teriam uma situação mais sustentável no longo prazo. Temos de enfrentar a questão do investimento, com o financiamento que as condições internas permitem. Há uma série de potencialidades para isso. Evidentemente, não vamos prescindir também do capital de fora – com base num plano de investimento etc.

Esse é o debate travado em círculos diferenciados. Dentro do próprio governo há setores defendendo medidas que, de uma certa forma, chocam-se com essa política mais contracionista – ou ortodoxa, digamos assim. Por exemplo, é importante o governo ter travado o processo de privatização, uma vez que no final do governo Fernando Henrique falava-se em privatizar a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e esse sistema Eletrobrás.

Há uma concepção diferente também das agências reguladoras. Quer dizer, a omissão do Estado foi barrada. Acabou prevalecendo um modelo energético em que o Estado joga um papel importante, central. E foi traçada uma política industrial e tecnológica, importante para um planejamento e desenvolvimento. O BNDES, com uma política mais voltada para o desenvolvimento – não como um banco de fomento como qualquer outro –, pelo menos prevalece aquilo que foi definido pelo Carlos Lessa, até agora. Isso se choca com o modelo anterior.

Portanto, nessas duas faces do governo – por isso é ainda contraditório – mesmo na interna, existe uma luta, uma disputa por um novo caminho, apesar de prevalecer essa política ortodoxa. No plano político, hoje, a grande questão é a base de apoio ao governo, por ser ainda muito precária – mostrando o quadro da correlação de forças que existe.

O grande desafio é como recompor essa base. As eleições recentes, fato político importante, confirmaram o que chamamos de um certo equilíbrio de forças. O governo não demonstrou nesse pleito, como tendência, uma viragem dessa correlação de forças. Quando dizemos “equilíbrio” significa que aquela correlação anterior – que dizemos adversa – se manteve.

Com relação ao aumento da taxa básica de juros – que chegou ao patamar de 18,75% –, em fevereiro, a maior praticada no mundo atualmente, o PCdoB tem sido crítico categórico dessa política macroeconômica, segundo o senhor acabou de expor. Existe a possibilidade de um desenvolvimento sustentado no nível das potencialidades e necessidades do país dentro dos marcos dessa política?

Renato Rabelo – Essa é a questão. É como se nós, digamos assim, aprofundássemos nossa crítica ao governo com relação a sua orientação econômica. É exatamente esse o aspecto importante do núcleo de que falamos há pouco – o “teórico” – dos setores conservadores. Essa elevadíssima taxa de juros demonstra isso, porque é um fator de contenção do desenvolvimento. E age como um fator contrário à grande questão colocada para nós para resolver o problema das duas décadas de estagnação por que passamos: Como retomaremos o desenvolvimento numa escala mais acentuada e ampla? Portanto, essa é questão-chave. Por isso, a alta dos juros é um terrível sintoma de uma política com a qual, historicamente, podemos cometer um grande erro.

Hoje, essa alta passou a ser, de uma maneira geral, um assunto de muita gente. O povo se volta para isso. A elevação da taxa de juros todo mês é sempre comentada, debatida em todo o país – porque aqui está o problema central. Enfrenta-se a inflação com taxa de juros altíssima como se se quisesse matar um animal com uma bazuca. O estrago é muito grande. Ou seja, procura-se conter a inflação elevando a dívida. Com isso, gera-se uma situação muito precária, porque com juros muito altos fica mais difícil de se investir. É um círculo perverso. Trata-se de um sinal, um sintoma – – já percebido por todo o país –, como núcleo dessa política. Afeta os investimentos, eleva a dívida e, na realidade, não vai enfrentar de fato o problema da própria inflação. Porque essa inflação é de preço – administrado em grande parte pela elevação de preços do petróleo e dos serviços públicos com bases nos contratos firmados no processo de privatização etc. Ou seja, é o remédio errado.

Quem ganha com isso? Quem canta o nível da taxa de juros: a esfera financeira. E o Banco Central leva em conta isso e se choca, na prática, com aquilo que chamamos de esfera produtiva – que sempre critica tais aumentos. Esta última, exatamente, tem uma outra compreensão, segundo a qual, sem uma taxa de juros acessível o próprio desenvolvimento ficará bastante limitado. Isso é uma forma de educar e mostrar que essa política macroeconômica não tem fôlego. Por isso, também consideramos importante o debate e a luta contra esta taxa de juros, porque, de certa forma é um sintoma, é um sinal, de uma política contracionista.

No âmbito da esquerda brasileira, a par das justificadas esperanças, o governo Lula também suscitou ilusões. Os dois anos decorridos do mandato talvez já ofereçam os limites e as potencialidades desse governo. O neoliberalismo institucionalizado no país nos anos 90 pode realmente ser superado em quatro anos de governo Lula?

Renato Rabelo – A superação do neoliberalismo tem um sentido de superação do próprio capitalismo. O que é neoliberalismo? É o padrão moderno de acumulação do capitalismo. Historicamente, o liberalismo é o que prevaleceu do capitalismo. Para superarmos o neoliberalismo precisamos reunir forças e convicção, porque de uma certa forma isso tem um sentido anticapitalista. Hoje essa luta se choca com a força dominante que impõe a lógica do capitalismo – o capital financeiro, a oligarquia financeira. Então, essa não é uma questão simples.

Pelo nosso entender, em quatro anos é muito difícil se superar no sentido pleno o neoliberalismo. Podemos começar a criar condições para redirecionar essa política de base neoliberal. Redirecionamento esse que leva em conta flexibilizar, pelo menos, uma série dessas questões mais agudas. Portanto, é um processo que, talvez, nos quatro anos, não chegue a se completar; porque, no fundo, precisamos reunir condições políticas e de convicção no governo e no seio da nação, da sociedade, para essa superação de fato se realizar.

O PCdoB, do ponto de vista da base de sustentação política, desde há muito defende o governo de coalizão. Nesse sentido, como o PCdoB analisa uma possível reforma ministerial a ser anunciada em breve?

Renato Rabelo – Segundo nossa compreensão, esse governo – em função da realidade política existente e do quadro de forças apresentado –, para que obtenha possibilidades de êxito, não pode ser um governo de um partido só, ou voltado simplesmente para determinados grupos políticos. Tem de ser de coalizão, uma frente ampla de fato.

Nesse sentido, há uma compreensão, talvez crescente, do próprio presidente da República, de que o governo deve caminhar para obter uma marca de governo de coalizão. Essas reformulações ministeriais são necessárias, como uma forma de sinalizar esse rumo – a que boa parte da grande imprensa tenta passar como puramente fisiológicas. Com relação a isso, cada partido tem seus interesses.

Por que no Brasil seria fisiológico? Porque é uma forma de desmoralizar os partidos. Pode haver pessoas com interesses muito imediatos, mas, na realidade, um partido oferece apoio ao governo desde que tenha participação nele – e isso é universal.
Portanto, as reformulações ministeriais se voltam para isso. Segundo o próprio presidente Lula, o objetivo do governo é de pouco a pouco se tornar um governo de coalizão.

Adalberto Monteiro é jornalista e editor de Princípios e Elias Jabbour é geógrafo e membro da Comissão Editorial de Princípios.

EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10