A questão agrária e o desenvolvimento brasileiro
I A questão agrária sempre foi tema de intenso debate entre aqueles que se preocuparam com o desenvolvimento das forças produtivas no Brasil. De tempos em tempos esse debate volta a ser centro de grande atenção, com novas roupagens, mas com a temática central que sempre esteve presente, ou seja, com a importância da resolução dos problemas agrários como forma de resolver problemas da distribuição de renda e justiça social.
O abandono das matrizes teóricas clássicas (Marx, Lênin, Kautsky) ou uma leitura equivocada de suas preocupações principais têm levado parte da esquerda brasileira a levantar como bandeira de lutas as propostas vinculadas à pequena propriedade, ao “modo de vida camponês” e à necessidade de políticas que proporcionem meios de segurar o homem no campo. Procuraremos neste breve artigo tentar demonstrar que algumas dessas propostas políticas estão equivocadas e não correspondem a uma bandeira de luta progressista, mas apenas realizam uma análise equivocada sobre os reais problemas brasileiros da atualidade. Para isto, além dos autores acima citados, tomaremos como base a análise da questão agrária brasileira de um de nossos principais pensadores: Ignácio Rangel.
II O ponto central do pensamento de Ignácio Rangel é a sua tese sobre a dualidade da economia brasileira e os pactos de poder firmados com a mudança das dualidades. A primeira corresponde a uma tese de história e economia política do Brasil, busca as especificidades das leis de formação social brasileira e tem no materialismo histórico seu principal eixo para o entendimento dessa formação social. A partir do entendimento da dualidade Rangel faz seu estudo da questão agrária brasileira.
A análise inicial de Rangel acerca dessa questão data do início da década de 1960 (1). Para o autor, o centro da questão agrária estaria na formação simultânea de superpopulação rural e superoferta agrícola. A superpopulação rural relativa (oriunda do rompimento do complexo rural) convertia-se em superpopulação urbana relativa pela crise econômica. Nos períodos anteriores (1940-50) o crescimento industrial absorvia imenso contingente de mão-de-obra, amenizando os efeitos da crise agrária. Isso dá à questão agrária brasileira um caráter cíclico. A esse problema soma-se um segundo: a superprodução de determinados produtos voltados ao mercado externo (como o café).
Contudo, aponta Rangel, havia escassez de mão-de-obra agrícola nos períodos de maior necessidade e, também, de determinados alimentos, gerando crises de abastecimento.
Para Rangel estava claro que a superação dos problemas da crise agrária brasileira deveria vir pelo recurso a novas formas de produção com o aprofundamento da divisão social do trabalho: “Dia virá em que esse modo de produção estruturado na fazenda capitalista terá que ceder o passo a algo de mais progressista ainda, mas esse novo esquema será ou a fazenda coletiva, ou a fazenda do Estado, nunca o retorno à pequena produção familiar de mercadorias, como teria resultado se nós, os revolucionários dos anos 30, nos quadros da Aliança Nacional Libertadora, tivéssemos podido impor nosso ponto de vista de então” (Milagre e Antimilagre, p.91).
Assim, a fazenda capitalista é algo progressista em relação ao antigo latifúndio semifeudal, que mantinha no seu interior a família camponesa com sua produção de subsistência e baixíssima produtividade (tanto da mão-de-obra quanto da terra). O capitalismo na agricultura traz novas possibilidades técnicas que distanciam as condições de produção da fazenda e da pequena produção de mercadorias, com a introdução de inovações mecânicas e aplicação de conhecimentos da biologia e da química para o tratamento dos solos e desenvolvimento de novas plantas.
O aspecto progressista das novas técnicas na agricultura já havia sido percebido por marxistas clássicos, como Lênin e Kautsky, como uma possibilidade de se quebrar o isolamento do homem rural pondo-o em contato com novas e melhores condições de produção. Um dos grandes esforços de Lênin, após a Revolução, foi o desenvolvimento da mecanização na agricultura soviética.
Atualmente parece haver entre as esquerdas uma aversão, e condenação, à tecnologia para a melhoria das condições de vida no campo.
Para Rangel, o desenvolvimento capitalista sob a hegemonia da terceira dualidade gerou transformações na agricultura que provocaram grande crise agrária. A modernização gerou um excedente de mão-de-obra no campo desestruturando o complexo rural, onde a unidade familiar tendia à auto-suficiência. À medida que o processo de industrialização promove a modernização da indústria pesada – ao mesmo tempo em que ocorre a modernização do campo –, a questão agrária, antes só manifestada nos períodos de crise, torna-se permanente.
Diferentemente do pensamento corrente na esquerda de então, para Rangel a solução não viria da recomposição da economia camponesa, mas sim do incentivo ao uso capitalista da terra para enfraquecer o latifúndio atrasado e combater o alto preço da mesma. Além disso, propunha a sustentação do complexo rural através de lotes onde a família pudesse obter uma produção de autoconsumo complementar, aplicando o seu excedente de mão-de-obra.
A realização ou não de uma reforma agrária e o seu modelo estaria ligada a uma melhor estratégia levando em conta a dualidade em que o país estaria vivendo. Dessa forma, a reforma agrária (ou o modelo de reforma) não seria uma bandeira de todos os tempos, mas era motivada pelas características econômicas da época em que é proposta.
III Na última década, há a idéia – que de tão repetida parece ter se tornado uma verdade incontestável,
especialmente nos meios da esquerda ligada à igreja –, de que a produção de alimentos no Brasil é realizada pela “agricultura familiar” e de que esta se constitui numa forma alternativa e “mais justa” de desenvolvimento. Tornou-se sinônimo de “ser de esquerda” a defesa da pequena propriedade e da família. Isso, por um lado, reflete a força que a igreja adquiriu, em setores dos movimentos sociais, após a ditadura militar, impondo aos mesmos seu próprio projeto e, por outro, o abandono do estudo dos autores clássicos da questão agrária, levando militantes de movimentos sociais e partidos de esquerda a embarcarem, sem referencial, no velho projeto cristão da recriação de um mundo de “vida simples”, de economia de subsistência, ou seja, a uma volta ao “campesinato”. Outros setores, ligados a organizações de produtores e sindicatos de trabalhadores rurais (compostos em maioria por pequenos proprietários rurais), repetem a não menos velha chancela de que a agricultura nos países desenvolvidos (em especial nos Estados Unidos) é predominantemente familiar. Alegam ainda que esta é a responsável pelos setores mais modernos e dinâmicos da agricultura desses países. Tais teses não correspondem à realidade.
O agronegócio não pode ser analisado a partir da estrutura fundiária dos produtores agrícolas responsáveis por determinados produtos, como carne de frango, leite e arroz. Estes são predominantemente produzidos em pequenas propriedades, mas dependem de sua ligação com o setor industrial e de equipamentos, como ordenhadeiras mecânicas e comedores automáticos, para poderem ser produzidos. Isso sem falar que as matrizes de frango, por exemplo, são reproduzidas por empresas (responsáveis pelo melhoramento genético), sendo entregue ao produtor o “pintinho de um dia” (2). O que demonstra o caráter capitalista da agricultura é seu grau de inserção (e dependência) na divisão social do trabalho (que é capitalista). Em que medida a agricultura vai ao mercado para levar adiante a produção, adquirindo equipamentos, insumos e crédito e para escoar a produção em boa medida reduzida à matéria-prima industrial? A agricultura tornou-se mais um elo da imensa cadeia da divisão social e técnica do trabalho. Por isso, é, no mínimo, um despropósito avaliar a agricultura dos EUA (altamente mecanizada e inserida na esfera financeira) como “familiar”. Essa tese foi profundamente demonstrada por Lênin já em fins do século XIX (em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia) e no início do século XX (em Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos) e a atualidade a confirma irrefutavelmente.
Lênin apontou a fraqueza do conceito de “agricultura baseada em trabalho familiar”, pois o trabalho realizado pela família pode ser realizado em um sistema feudal, camponês, ou em uma exploração com alto grau de composição orgânica do capital. Ou seja, o plantador de mandioca e feijão que trabalha com a família no sertão do nordeste ou na Amazônia seria colocado lado a lado com o moderno produtor de frango integrado às grandes agroindústrias no sul do Brasil, que também trabalham apenas com sua família. A diferença entre os dois é gritante frente ao desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção e sua integração ao mercado, mas são colocados lado a lado para reforçar a idéia da “agricultura familiar”.
Outro equívoco, também muito comum, é se iniciar a análise a partir do tamanho da propriedade e não a partir do valor da produção. Isso permite, em última instância, falar que a produção de alimentos é feita pela pequena propriedade. Ora, os hortifrutis, frango, fumo, arroz, entre outros produtos onde a composição orgânica do capital é intensa, necessitam de áreas pequenas para produzirem em grande quantidade, ou seja, o fundamental é analisarmos a aplicação de capital (na forma de equipamentos e insumos) e o valor da produção, tendo em vista se estamos tratando de uma pequena produção ou de uma grande produção. Vale lembrar que um aviário de 100 metros produz mais de 20 mil frangos por lote. De forma alguma se trata de uma grande propriedade e muito menos de uma pequena produção.
Os argumentos acima demonstram, ainda, o equívoco de uma das teses centrais dos defensores da agricultura familiar: de que esta é a responsável pelo abastecimento do mercado interno e de que o agronegócio produz apenas para exportação. Devemos lembrar que o desenvolvimento dos complexos agroindustriais no Brasil foi fundamental para a regularização do abastecimento alimentar dos centros urbanos e para pôr fim às crises de abastecimento tão comuns até a década de 1970. A questão da produção para exportação versus produção de mercado interno é falsa ainda por dois motivos: a) os setores exportadores são concomitantemente os que mais desenvolveram o consumo no mercado interno nas últimas décadas (laranja, frango, açúcar, frutas, entre outros); b) não há falta de produção de alimentos para o mercado interno. O que há é uma escassez tópica de alguns alimentos pela falta de política agrícola e pela extrema pulverização dos produtores voltados exclusivamente ao mercado interno (arroz, feijão, hortaliças, hortifruti, entre outros), como apontou há décadas Ignácio Rangel.
IV Tornou-se comum nos meios acadêmicos e jornalísticos uma falsa dicotomia entre a defesa do chamado agronegócio e a agricultura familiar. Equivocadamente, “ser de esquerda” é entendido como defender a agricultura familiar; e qualquer defesa ao agronegócio seria algo automaticamente vinculado ao pólo reacionário “de direita” dentro do país. Tomando como base as matrizes teóricas leninistas e rangelianas, cujo compromisso com o desenvolvimento das forças produtivas em direção ao socialismo é inquestionável, procuramos estabelecer algumas considerações em defesa da grande produção.
Para Lênin, o desenvolvimento do capitalismo no campo gera contradições no seio do campesinato. Este, como classe, desaparece na luta, dentro do próprio processo de produção e comercialização, entre os que progressivamente se caracterizarão como burguesia rural, proprietários e proletariado rural. O capitalismo revoluciona as formas de propriedade e posse da terra. Impulsiona a aplicação e o desenvolvimento da técnica. Induz à especialização e à socialização do trabalho. Traz para o âmbito da agricultura, para a “paz social” do mundo rural, as suas crises inevitáveis.
O processo chamado de Modernização da Agricultura Brasileira, ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970, nada mais é que o processo de aceleração do desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, com sua própria dinâmica e especificidades, comandado e apoiado pelas políticas de incentivo do Estado. No entanto, o principal aspecto da modernização é altamente progressista, ou seja, a transformação do latifúndio semifeudal em latifúndio capitalista (ou, como chamamos hoje, o agronegócio) e o aprofundamento da divisão social do trabalho (agroindústria, indústria de equipamentos, mecanismos de comercialização entre outros).
A modernização da agricultura agudiza e deixa mais transparentes as contradições de classe presentes no capitalismo. Esse fato levou alguns autores a entenderem que a modernização teve um caráter conservador por ter sido excludente e concentradora de renda. O caráter “conservador” da modernização foi criar melhores condições para o desenvolvimento do capitalismo no campo, proporcionando o triunfo da grande produção, aumentando a produtividade e a qualidade dos produtos. A exclusão social e a concentração de renda são apenas características do capitalismo brasileiro tornadas mais visíveis com a modernização.
Vale lembrar que, numa perspectiva baseada no marxismo-leninismo a transformação desejável no campo é o triunfo da grande produção, que proporciona a penetração de relações capitalistas no campo e o aprofundamento das contradições capital-trabalho, pois é isso que cria as condições do desenvolvimento das forças produtivas e a possibilidade da superação dialética do modo de produção. A partir desse novo latifúndio – o capitalista –, fruto da “modernização”, altamente integrado com a indústria, teremos o novo sócio do pacto de poder firmado a partir dos anos 1970.
O novo pacto de poder firmado entre a burguesia industrial e o latifúndio capitalista (ou agronegócio), conforme apresentado por Rangel, passa a ser a característica do início da quarta dualidade. É importante ressaltarmos que, com o fim da ditadura e a ofensiva neoliberal dos anos 1990, a burguesia industrial é praticamente retirada do pacto de poder dando lugar a uma burguesia financeira internacionalizada que administra o Estado de acordo com os seus interesses especulativos.
V Da mesma forma, como nos ensina Marx(3), que é a partir da anatomia do homem que temos a chave para entender a anatomia do macaco, a chave para entender os problemas agrários está na cidade. É a cidade que possui condições para alavancar o desenvolvimento agrícola e não o contrário. Apresentar a reforma agrária como solução para todos os problemas brasileiros é apenas desviar o foco da necessidade de políticas industriais, de crescimento econômico e de geração de empregos (na cidade ou no campo). Essa é a política mais progressista que podemos apresentar na atual conjuntura.
A Reforma Agrária, embora seja importante, não é a solução para os problemas do Brasil. Apresentar a “vocação natural” ou as vantagens comparativas na agricultura, como justificativa para abandonar as políticas de crescimento industrial em nome do desenvolvimento de uma agricultura de exportação, já significava algo reacionário nos anos 1930. No entanto, como nos ensina muito bem Ignácio Rangel, devemos analisar o pacto fundamental de poder para vislumbrarmos quais políticas são possíveis em determinados momentos. Qualquer tipo de reforma agrária hoje deve ter em vista uma agricultura moderna e altamente tecnificada, que vise à geração de melhores empregos no campo e nos setores produtivos a este ligado. Não podemos mais propor a distribuição parcelária e familiar de propriedades, com o ilusório objetivo de volta aos “velhos e bons tempos” de uma integração maior do homem com a natureza. Isso é apenas romancear a realidade, acreditando-se estar produzindo o socialismo. Para isso basta lembrarmos o que Marx e Engels chamaram de Socialismo Clerical e Feudal:
“Do mesmo modo que o pároco e o senhor feudal marchavam sempre de mãos dadas, o socialismo clerical marcha lado a lado com o socialismo feudal. Nada é mais fácil que recobrir o ascetismo cristão com um verniz socialista. Não se ergueu também o cristianismo contra a propriedade privada, o matrimônio, o Estado? E em seu lugar não predicou a caridade e a pobreza, o celibato e a mortificação da carne, a vida monástica e a igreja? O socialismo cristão não passa de água benta com que o padre consagra o despeito da aristocracia” (Manifesto do Partido Comunista).
Fernando Sampaio é doutor em Geografia Humana pela USP e Marlon Clovis Medeiros é mestre em Geografia Humana também pela USP. Ambos professores do Curso de Geografia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de Francisco Beltrão.
Notas
(1) Os trabalhos de Rangel sobre a questão agrária foram reunidos no livro: RANGEL, Ignácio. "A questão Agrária Brasileira". In:___________ Questão Agrária, Industrialização e Crise Urbana no Brasil. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000.
(2) Para uma análise profunda do setor de produção de frango, ver ESPÍNDOLA, Carlos José. As Agroindústrias de Carne no Sul do Brasil. São Paulo: FFLCH/USR 2002. (Tese de Doutorado em Geografia).
(3) MARX, Karl. "O Método da Economia Política". In: Contribuição a Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
Bibliografia
LENIN, Vladimir Ilitch. "O Capitalismo na Agricultura (O Livro de Kautsky e o Artigo do Sr. Bulgákov)". In: GRAZIANO DA SILVA, José, STOLKE, Verena. A Questão Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981.
__________.Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
__________.Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo. São Paulo: Global, 1982.
MARX, Karl. "O Método da Economia Política". In: Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
__________, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Anita Garibaldi, 1989.
RANGEL, Ignácio. A Inflação Brasileira. São Paulo: Bienal, 1963.
__________. "A História da Dualidade Brasileira". In: Revista de Economia Política, vol. 1, n° 4, outubro-dezembro/1981.
__________. Economia: Milagre e Antimilagre. 2a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
__________. Introdução ao Desenvolvimento Econômico Brasileiro. 2a ed. São Paulo: Bienal, 1990.
__________. Dualidade Básica da Economia Brasileira. Rio de Janeiro: Bienal/IR, 1999.
RANGEL, Ignácio. "A questão Agrária Brasileira". In:___________. Questão Agrária, Industrialização e Crise Urbana no Brasil. Porto Alegre:
Editora da Universidade/UFRGS, 2000.
EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 74, 75, 76, 77, 78