Com as festividades de comemoração do quarto centenário de publicação do primeiro volume de Dom Quixote de la Mancha, a corrida de ávidos colecionadores e leitores às livrarias para comprar lançamentos de novas traduções e reedições dessa obra mestra da literatura universal, apontada por muitos estudiosos como a que inaugura o romance moderno ocidental, leva-nos a muitas indagações não somente sobre o futuro e o papel dos livros e da literatura contemporânea, mas, também, sobre as possíveis (re)leituras dessa obra emblemática e suas (re)interpretações.

É inegável a ajuda que vários de nossos grandes escritores nos prestam quando decidimos seguir os passos desse engenhoso fidalgo que enlouquece e decide aventurar-se tal qual um cavaleiro andante. Monteiro Lobato introduz, já em nossa infância, Dom Quixote em uma visita ao Sítio do Pica-pau Amarelo. A fina ironia do narrador machadiano nos ensina a sermos leitores cúmplices. Drummond, por sua vez, leva-nos através de seu palmilhar errante da paisagem mineira ao seu sentimento “gouche”. Não nos custa muito, como leitores brasileiros modernos, superar a metáfora do “lutar contra os moinhos de ventos” descontextualizada, que se cristalizou como representativa dessa emblemática obra. Ou, ainda, perceber que a imagem de um homem já idoso – quarenta anos, idade já avançada para uma época cuja expectativa de vida era de trinta, que enlouquece de tanto ler romances de cavalaria –, torna-se, cada vez mais, uma metáfora cabível na nossa sociedade.

Entretanto, o fato de um tal Alonso Quijada ou Quesada fazer-se cavaleiro andante – figura de seu tempo, extinta há séculos – e sair numa cruzada idealista e aventureira, cujos sucessos lhe servem de pretexto para render homenagem à figura de uma dama por quem cultiva um amor platônico, é a metáfora mais bem aproveitada da literatura ocidental. O personagem Raskolnikov, de Dostoievski, e a Madame Bovary, de Flaubert, que quixotescamente perdem o equilíbrio entre a realidade social e a sua realidade psicológica por lerem os livros de moda em suas respectivas sociedades, são outros dois grandes ícones dessa tradição.

Mas o engenho dessa obra se pauta também e, sobretudo, na forma como ela se estrutura. Como assinala Irene Machado, ao referir-se ao emprego da linguagem como tema estrutural da narrativa (O romance e a voz, 1995, 60), “a impotência do rigor da norma culta sobre a linguagem do romance, marcado muito intensamente pela dialogia interna da linguagem. Esse é o aspecto principal do discurso de Cervantes, precursor inegável da polifonia articuladora do romance. A ele coube o mérito de inserir, no interior do discurso enobrecido, expressões vivas da língua interativa, dando à linguagem culta, um revestimento grotesco, sobretudo quando o discurso enobrecido, pronunciado pelo personagem, é oferecido como memória de um discurso lido, não vivenciado”.

O que vemos, então, é o idealizado mundo da ficção, no qual vive Dom Quixote, em confronto com uma realidade, que tanto o narrador como os demais personagens fazem questão de nos apresentar e, ao mesmo tempo, dissimular ante os olhos do ilustre cavalheiro manchego.

Esse jogo de simulacros, trabalhado também no nível da linguagem, é estabelecido dessa forma para que Dom Quixote, o representante do herói e, por que não, do crítico moderno, possa representar sua “farsa”, ou melhor, (des)mascarar através de uma paródia bem humorada dos romances de cavalaria – cujas aventuras, costumes e provações põem em xeque com uma fina ironia que se aproxima ora da tragédia ora da comédia burlesca – o teatro de relações humanas e das produções literárias da época.
Guardadas as devidas reservas sobre tempo, espaço e leituras, sobre as quais remetemos o leitor ao brilhante conto borgeano Pierre Menard, el autor del Quijote, vamos nos deter, especificamente na possibilidade de leitura que nos dá Bakhtin ao analisar O asno de outro, de Apuleio.

Segundo o estudioso, trata-se de um “romance de aventuras e costumes”, cujas aventuras se originam a partir da metamorfose de Lúcio em asno e são apresentadas tanto no enredo principal como na novela intercalada sobre Amor e Psique. Assim sendo, a história intercalada – ou novela – que não passa de uma variante semântica paralela, serve para reforçar a trama principal.

Em concomitância com o clima de farsa, que se estabelece para que nosso herói moderno possa atuar, estão incluídas também à narrativa algumas histórias interpoladas que servem, como sugere Bakhtin com relação ao romance de Apuleio, para reforçar tanto a estrutura narrativa como também o clima paródico, enquanto tema de releitura da sociedade. A partir desse pressuposto – a farsa ou a teatralidade –, vamos nos concentrar na novela interpolada El curioso impertinente (caps. XXXIII – XXXV).

O triângulo amoroso, enquanto tema, parece ser recorrente na literatura universal. Apesar de já terem se passado quatro séculos da publicação do primeiro volume de D. Quixote, é espantoso constatarmos que o tema continua sendo motivo de polêmica tão lida como temida por seus ávidos leitores.
Ao enquadrá-lo no que Bakhtin classificou como narrativa de aventura e costumes, teremos, ao menos, uma provável explicação do interesse por temas que envolvem as relações humanas e como ele se desenrola ao longo do tempo e espaço literário. Jorge Luis Borges (La intrusa), Machado de Assis (A Cartomante, A Causa Secreta, Dom Casmurro), Juan Rulfo (Talpa) são alguns dos autores que contribuíram para enriquecer esse universo geométrico dessas relações humanas.

Com relação à estrutura, o leitor, ainda que inexperiente na análise literária, pode notar que, embora as relações presentes em várias narrativas desse tradicional tema apresentem suas peculiaridades, o ponto em comum é que o “problema” ou a “questão” da traição sempre se “desenvolve” a partir de um vértice feminino. Não que a mulher tenha voz na narrativa, ou que o ponto de vista narrativo se proponha a partir da voz feminina, ao contrário, parece ser ela o ângulo que coloca a perder a relação de amizade que no início da narrativa parecia ser ideal. Por essa razão, nosso enfoque se voltará ao ângulo feminino das relações.

Nessa novela intercalada do romance cervantino é Anselmo, marido de Camila, que, perturbado pela idéia fixa de colocar à prova o amor e a fidelidade de sua mulher, pede a seu melhor amigo, Lotario, que o ajude em sua empreitada. Relutante e duvidando um pouco da sanidade mental do amigo, Lotario tenta, em vão, dissuadi-lo. Anselmo, por sua vez, aposta na chantagem emocional para convencer o amigo que, diante da ameaça de que a negação de sua ajuda implicaria na inclusão de um desconhecido, cede ao seu pedido. O que não se oculta, entretanto, nesse desejo incontido e perverso de Anselmo é o anseio de ver sua mulher sendo cortejada pelo amigo, tal qual os preceitos do amor cortês livremente propagados pelas novelas de cavalaria, tão em voga na época e ironicamente criticados por Cervantes.

A trama começa a ganhar corpo quando o narrador se detém na descrição de Camila, “una doncella principal y hermosa de la misma ciudad, hija de tan buenos padres y tan buena ella por sí” e na ansiedade de Anselmo para fazer valer essas qualidades sem, entretanto, perceber que também estaria submetendo à mesma prova a amizade que tinha não só laços indissolúveis, como a narrativa nos deixa transparecer, como também um caráter simbiótico; a narrativa se refere a eles como “los dos amigos”.

Seria, num primeiro momento, conveniente pensar que Anselmo teria mais apreço e confiança em Lotario que em sua mulher. No entanto, temos de notar que sob essa elucubração inicial, o que se oculta é o desejo pueril e egoísta que aquele possui em continuar praticando os jogos de cumplicidade que antes do casamento praticava com seu amigo. Portanto, ao propor a Lotario que se submeta a fazer parte desse jogo, ele se condena à roda da Fortuna, colocando Camila como uma intrusa na relação dos dois amigos – tal como Borges séculos depois o propõe.

Essa perversão alcança requintes de crueldade, como a narrativa mesma trata de nos demonstrar. Anselmo se compraz ao ver a dor de Camila: “Escondido, pues, Anselmo, con aquel sobresalto que se puede imaginar que tendría el que esperaba ver por sus ojos hacer notomía de las entrañas de su honra, íbase a pique de perder el sumo bien que él pensaba que tenía en su querida Camila.” (p.421– grifos nossos) y “pero detúvole el deseo de ver en qué paraba tanta gallardía y honesta resolución ” (p.422 – grifos nossos) .

Ao que tudo indica, Anselmo não quer Camila senão para satisfazer sua perversidade, notemo-lo em suas próprias palavras: “(…) le dijo [a Lotario] que no tuviese pena del suceso de Camila, porque, sin duda, la herida era ligera, pues quedaban de concierto de encubrírsela a él” (p. 428). Não se importa com os sentimentos de sua mulher, antes, nunca os leva em consideração .
A descrição de Camila, por sua vez, vai ganhando os contornos do juízo de valores da época:

“no hay joya en el mundo que tanto valga como la mujer casta y honrada, y que todo el honor de las mujeres consiste en la opinión buena que de ellas se tiene”
“la mujer es animal imperfecto, y que no se le dé poner embarazos donde tropiece y caiga, sino quitárselo y despejalle el camino de cualquier inconveniente, para que sin pesadumbre corra ligera a alcanzar la perfección que le falta, que consiste en el ser virtuosa.”
“la buena mujer [es] como espejo de cristal luciente y claro, pero está sujeto a empañarse y escurecerse con cualquiera aliento que le toque” (p. 403 – grifos nossos)

Ao comparar a mulher a um espelho – metáfora que nos pode levar a várias considerações – o narrador lhe acrescenta um refrão popular e, como na tragédia grega, produz um efeito de predição oracular à narrativa, que se cumpre tragicamente. No entanto, sua realização se concretiza através da encenação de uma farsa, que se vale de um elemento irônico edêmico: a sedução se deixa seduzir.
Não é o personagem feminino o primeiro a se deixar corromper pela luxúria. É o masculino. É Lotario, o melhor amigo, quem se deixa seduzir por todas as qualidades de Camila e se transforma em um homem apaixonado que procura saciar seus desejos.

A partir dessa mudança de Lotario, tanto a amizade entre “los dos amigos” quanto o casamento de Anselmo se transformam em um simulacro, ou seja, em uma convenção social feita de aparências e cenas que se aproximam à farsa. Tanto assim, que os dois amantes têm oportunidade de encená-la para Anselmo, com o intuito de perversamente enganá-lo ou, antes, satisfazê-lo em seu desejo: ver a mulher sendo seduzida pelo melhor amigo e resistindo bravamente às suas investidas.

Camila – como Lotario – tenta, ao princípio, fugir dessa fatalidade, mas como o marido não lhe dá chance ou, antes, empurra-a para que cumpra seu desejo, também se deixa levar pela situação. O amor cortês prevalece sobre as convenções sociais e os laços de amizade. A farsa dissimula a realidade que não se quer enxergar.

As mudanças na forma de se comportar de Camila, entretanto, são mais profundas que as de Lotario. A personalidade que Camila nos revela se aproxima à das femininas já bastante conhecidas do leitor da narrativa espanhola: Camila não apenas passa a ser adúltera, mas, sobretudo – extremamente astuta no uso de suas qualidades inicialmente descritas como um simulacro, contando ainda com uma criada celestina para ajudá-la e perdê-la – toma tanto gosto de encenar a farsa e burlar-se de seu marido que, seu agora amante, inclusive, espanta-se com a naturalidade como se comporta e por um momento começa a tratá-la como uma adúltera qualquer – quase colocando a perder o teatro de ambos.

É interessante notar que o juízo de valor posto no final da narrativa nos leva a crer que Camila, enquanto personagem feminino, não sofre transformações. Suas atitudes, antes de tudo, são provas cabais do amor devotado a Lotario. Portanto, ela não perde suas qualidades, apenas as transforma em favoráveis ao seu ardil.

“Pero, como naturalmente tiene la mujer ingenio presto para el bien y para el mal, más que el varón, puesto que le va faltando cuando de propósito se pone a hacer discursos, luego al instante halló Camila el modo de remediar tan al parecer irremediable negocio(…)”. (p.421)

Apesar de a narrativa nos levar a crer, em seu desenrolar, que os dois amantes se amam, ou que pelo menos Camila ama Lotario – a demonstração de ciúmes de Lotario, a situação a que se submete Camila –, não há nenhum indício de que os dois desejassem se relacionar de outra forma que não a de amantes. Não lhes é conveniente romper com a relação mantida com Anselmo, por razões que o texto mesmo denuncia. Entretanto, nem a força da lei e dos valores sociais, nem a consciência de cada um lhes servem como freio para a concretização do adultério; ao contrário, aparentemente servem de mola propulsora para que, inclusive, aflorem suas perversões.

É interessante notar a visão final que a narrativa nos oferece de Camila: a única culpada: “La confusión en que Camila puso a Lotario fue tal, que no le sabía responder palabra” (p. 435 – grifos nossos). E, como os valores continuam sendo os do amor cortês, o que leva “los dos amigos” à morte é a mácula em sua honra de nobres – uma vez que ambos morrem arrependidos de verem concretizadas suas perversidades – o que mata Camila; entretanto, não o arrependimento, mas o abandono do amante.

Ao terminarmos a leitura dessa novela interpolada, salta-nos aos olhos como e em que momentos essenciais de ruptura e crise o homem – no caso, os personagens – transforma-se radicalmente em outro. A idéia fixa, posta em prática, pode causar grandes transtornos com requintes irônicos de uma comédia irresistível.

De um lado, um visionário que, com sua loucura, monta uma farsa com total aval dos demais personagens e narrador, fazendo valer as palavras de São Paulo: “deixai que aquele que dentre vós parece sábio se faça louco, a fim de que por fim se faça sábio (…). Pois a loucura de Deus é mais sábia que toda a sabedoria dos homens”. De outro, a perversão individual que desperta a dos demais, colocando em xeque as relações e convenções sociais.

Nós, enquanto leitores desocupados, podemos forjar o teatro e rir com a farsa da representação da vida ou, ainda, desiludir-nos com a certeza de o que salva a verdade é uma grande mentira, com requintes de teatro do século de ouro. A realidade erige simulacros.

Romilda Mochiutti é professora de literatura espanhola e hispano-americana da PUC-SP e de língua espanhola da UNICAMP e doutoranda em literatura espanhola pela USP.

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 50, 51, 52, 53, 54