Nestes pouco mais de dois anos após a posse do governo Lula, ampliaram-se significativamente os debates em torno de um novo projeto nacional de desenvolvimento – por meio do qual o Brasil poderia avançar no sentido da superação do neoliberalismo. Essas discussões vão ocorrendo numa situação em que tendências contraditórias – seja de continuidade ou de mudança em relação ao que se passou no tempo de Fernando Henrique Cardoso –, convivem e se chocam no interior do governo e da sociedade. Isso explica a existência tanto de críticas a posturas ortodoxo-liberais no terreno da macroeconomia, ou à ausência de uma clareza maior de tal projeto por parte do governo Lula, quanto torna evidente haver claros pontos positivos a expressar um caminho alternativo – na nova política externa, na postura política democrática, nas tentativas de políticas públicas com vista a melhorias sociais, entre outras práticas do governo.

De uma maneira geral as polêmicas concentram-se no modelo econômico ou, como se tem convencionado chamar, na macroeconomia, que é apenas um dos – com toda sua importância – pontos integrantes de um projeto de desenvolvimento. Mas partindo daí encerram uma visão diferente do rumo que se pretende para o país como um todo. Está no centro dos debates concretos e marca o conteúdo da presente transição a luta pela superação do neoliberalismo ou a volta ao passado recente, retomando o neoliberalismo em toda sua plenitude.

Mas a busca de tal alternativa por parte das forças progressistas encerra muitas dificuldades que se somam a uma correlação de forças que lhes é por enquanto desfavorável, não obstante o país passar por uma nova situação política com a vitória de Lula em 2002. Porque não se trata simplesmente de reeditar o projeto de desenvolvimento da era Vargas, mas de trilhar um caminho inédito que leve em conta a nova situação do mundo e do Brasil e que pode ser sintetizado na fórmula de desenvolvimento com soberania e democracia, com geração de empregos e valorização do trabalho – geração de empregos e distribuição de renda –, com altas taxas de crescimento econômico duradouro. Um projeto assim concebido ultrapassa em muito os limites do governo atual, adquire dimensão histórica e caráter estratégico, requer, antes de qualquer coisa, a hegemonia política das forças verdadeiramente interessadas na sua consecução.

Há – grosso modo –, dois grandes campos de pensamento em luta. De um lado, o bloco das idéias progressistas, antineoliberal, genericamente chamado de desenvolvimentista; de outro, o das idéias neoliberais, conservador, de viés ortodoxo e monetarista no que toca à orientação econômica. Em torno deles se situa todo o espectro de forças políticas e sociais. Obviamente, esses campos não são homogêneos; ao contrário, comportam nuances bem marcadas, facilmente identificadas, nas idéias ou na diferença de força de representação política.

O primeiro bloco é bastante amplo e aí podem ser incluídos intelectuais da UFRJ e da Unicamp; o núcleo situado em torno de Bresser-Pereira; das opiniões de Paulo Nogueira Batista Jr.; assim como de diversas outras academias brasileiras, ou, ainda, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI); setores da tendência majoritária e as chamadas tendências de esquerda (notadamente Democracia Socialista, Articulação de Esquerda e Ação Popular Socialista) dentro do PT; parcelas do PMDB, onde se pode destacar o governador do Paraná, Roberto Requião; PDT, PSB, PCdoB, parte do PL, do PPS e do PTB, no âmbito partidário; setores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, em nível da representação empresarial; CUT, MST, UNE e muitas outras organizações sindicais e populares de representação dos trabalhadores; integrantes de vários ministérios do governo Lula, com destaque para o Itamaraty. Como se vê, todo um leque de forças de esquerda, centro-esquerda e centro – desde os trabalhadores, passando pelos setores médios, até empresários interessados no desenvolvimento.

Um dos pontos mais salientes do pensamento desenvolvimentista é a crítica à política macroeconômica posta em prática pelo governo. Crítica que tem como objetivo central buscar meios e formas de recuperar a autonomia para traçar a política econômica brasileira, assim como elevar a capacidade de investimento, sobretudo em infra-estrutura e na indústria de bens de capital como alavanca para um novo ciclo de desenvolvimento – com altas taxas, duradouro, voltado para o bem-estar da população trabalhadora.

Argumenta-se que este debate estaria sendo superado pelo crescimento de 5,2% do PIB em 2004, que esta taxa comprovaria o acerto da política até aqui adotada. Entretanto os desenvolvimentistas insistem em questionar – baseados na própria experiência brasileira dos anos 30 aos 80 do século findo – a sustentabilidade desse processo, mesmo levando em consideração o saldo positivo na conta corrente do balanço de pagamentos, alicerçado no superávit comercial, fator de atenuação da vulnerabilidade externa. Outros fatores de instabilidade continuam a atuar pesadamente. Assim é que aparece com destaque a contestação:

– à política de juros altos – atualmente com as mais altas taxas do mundo – e de metas de inflação muito restritas;
– à falta de controle sobre o câmbio, cuja valorização prejudica a performance das exportações;
– à abertura crescente da conta de capitais (vide resolução 3.265 do CMN, de 4/3/05) que fomenta
as ameaças constantes de fuga de capitais em caso de qualquer mudança de orientação;
– à política de superávits primários extremamente elevados, que tem implicado em cortes sucessivos dos dispêndios sociais do governo previstos no Orçamento público;
– aos volume e perfil da dívida pública, vis-à-vis com a falta de capacidade de investimento do Estado;
– à possibilidade de renovação do acordo com o FMI;
– às tentativas para institucionalizar a autonomia do Banco Central.

Ao fazer estas ponderações críticas surgem logo argumentos contrastantes, originados tanto de representantes do mercado financeiro quanto da Fazenda (Ministério) e BC (Banco Central), de que não haveria alternativas viáveis. Acontece que, além da experiência brasileira recente, aparecem, no cenário internacional, casos de países que vão conseguindo retomar o crescimento. Alguns após graves crises, adotando políticas econômicas alternativas ao modelo ortodoxo-liberal. Têm chamado a atenção dos estudiosos os casos da Malásia, Coréia do Sul, Índia, Rússia e mesmo da vizinha Argentina, que vem de um processo vitorioso de renegociação de sua dívida. Isso para não falar na China, país socialista, que tem apresentado as taxas mais altas e duradouras de crescimento econômico desde quando se começou a mensurá-lo. Outros olhos examinam a interessante experiência do Vietnã.
Por isso a recorrente insistência na busca de alternativas à política macroeconômica atual em torno de idéias tais como:

– redução substancial das taxas de juros reais;
– certo controle da conta de capitais visando coibir a especulação dos capitais de curtíssimo prazo, ponto sobre o qual recaem crescentes simpatias até mesmo de setores conservadores;
– metas mais flexíveis de inflação com maior controle sobre mecanismo de reajuste dos preços de bens e serviços administrados ou regidos por contratos prévios;
– câmbio controlado de forma a implementar crescentemente as exportações;
– renegociação das dívidas e alongamento dos seus prazos;
– diminuição da carga tributária;
– reforço ao papel do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal como importantes instrumentos de financiamento do desenvolvimento;
– democratização da composição do Conselho Monetário Nacional atualmente integrado por apenas três pessoas;
– não-renovação do acordo com o FMI e aumento do controle público sobre o BC.

A conclusão é de que o problema não está na falta de alternativas, mas na decisão política que se tem de tomar para aplicá-las – o que contrariaria poderosos interesses do capital financeiro nacional e internacional. E, para se tomar uma opção de tal magnitude, mesmo que gradualmente, a maioria da nação precisa estar unida e as forças interessadas em mudar fortalecidas politicamente.

De outra parte, se sobressai a política externa do governo Lula, baseada nos postulados do Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty. Seu pilar central está na busca continuada da integração da América do Sul, no fortalecimento e ampliação do Mercosul, assim como na adoção de iniciativas estratégicas de aproximação com países de perfil parecido ao do Brasil. É uma política de caráter anti-hegemonista, uma forma concreta de se antepor aos interesses imperialistas dos EUA, particularmente à Alca, por eles concebida como forma de consolidação de sua hegemonia sobre as Américas. Os resultados práticos já se fazem sentir, os impasses sobre a Alca permanecem, o Mercosul começa a reestruturar-se com a adesão dos demais países sul-americanos, entre os quais o Brasil vai se firmando como referência. Tudo isso tem seu reflexo positivo na geopolítica mundial, é a conseqüência da novidade dos projetos nacionais dos países periféricos: eles não podem se concretizar autarquicamente, necessitam de complementação, somando-se com países vizinhos e assemelhados.

Cabe registro, igualmente positivo, do novo desenho que se procura dar às agências reguladoras, o modelo energético, o projeto das PPPs e as diretrizes de uma nova política industrial – algo absolutamente imprescindível para um projeto nacional de desenvolvimento e que o Brasil havia abandonado desde meados da década de 70 –, cujas prioridades recaem sobre os fármacos e medicamentos, semicondutores, softwares e bens de capital. Em todas e em cada uma dessas frentes, a todo instante, trava-se um renhido embate entre o passado neoliberal e a mudança desenvolvimentista.

O Partido Comunista do Brasil integra o bloco desenvolvimentista e não reivindica para si o monopólio das idéias avançadas. Ao contrário, procura formular seus próprios pontos de vista em unidade e crítica dentro do campo progressista, apoiando e participando do governo Lula, e em luta oposta ao campo conservador. Os comunistas, diferentemente de outros setores críticos à política econômica do governo, consideram a disputa de rumos como uma questão de natureza política, submetida às condições políticas, à correlação de forças de classe. Criticam a política macroeconômica predominante, mas não a entendem como sinônimo de um projeto de conjunto. Destacam com grande importância, neste novo projeto, questões políticas e sociais como a ampliação da liberdade política, partidária e sindical, recomposição do valor dos salários, entre outras. Ademais têm buscado permanentemente a unificação do campo mudancista, chegando a propor há mais de um ano um Pacto Nacional pelo Desenvolvimento e pelo Emprego.

Pretendem, neste momento, o estancamento do que seria a continuidade da aplicação do projeto neoliberal e, por outro lado, a adoção de medidas que visem à acumulação – sobretudo com a reconstrução do papel do Estado brasileiro – para uma nova ruptura.

O PCdoB estrategicamente postula um “novo projeto nacional, expressando o interesse da maioria da nação, orientado para a construção de uma nova sociedade, de liberdade, progresso e justiça social”, ou seja, luta por um projeto socialista. Isto é o que diz o Programa Socialista do Partido, concebido como um programa de transição do capitalismo ao socialismo. Entretanto, tal transição é impossível sem a superação do neoliberalismo, num processo constituído por uma série de transições e fases transitórias.

Em lado oposto se encontra o projeto conservador defendido pela velha, e nova, direita do espectro político, ou seja, pelo esquema de forças derrotado em 2002, sobretudo o PSDB que continua agindo sob a batuta de Fernando Henrique Cardoso.

No governo Lula esse projeto tem representação no Banco Central e no Ministério da Fazenda, instituições que atuam como um “superpoder” sobre as demais. Merece registro, pela influência de seus integrantes e pelo que tem produzido de propostas, o surgimento no Rio de Janeiro do Instituto de Estudos de Pesquisas Econômicas (IEPE/Casa das Garças), reunindo banqueiros, economistas de bancos e intelectuais, muitos dos quais ex-técnicos de governos passados, com vínculos com a PUC/Rio. Esta corrente de opinião tem uma vasta articulação internacional com instituições que representam a matriz de seu pensamento – o FMI, o Banco Mundial, o Institute for International Economics (IIE), The Institute of International Finance (IIF) e uma série de universidades norte-americanas.

Segundo a tese geral dessa gente, o crescimento seria gerado automaticamente pelo equilíbrio fiscal e pela estabilidade monetária. Para tanto, seria preciso, de um lado, um superávit primário vultoso, garantindo a sustentabilidade do pagamento das dívidas, e, de outro, metas de inflação garantidas pelas taxas de juros, prontas a inibir quaisquer arroubos de demanda, mesmo que fictícios. Isso ganharia a confiança do mercado que conseqüentemente passaria a investir. Para garantir o superávit primário é preciso aumentar sucessivamente a arrecadação ao tempo em que se cortam as despesas do governo, algumas absolutamente indispensáveis para o país e seu povo. Como conseqüência o país hoje vive sob o terror do Conselho de Política Monetária (Copom/BC) e praticando uma das maiores cargas tributárias do mundo comparando-as à de países assemelhados.

A dinâmica de tal modelo acumula problemas ao invés de resolvê-los. Os juros altos atraem capital estrangeiro de curto prazo que vêm em busca de uma rápida valorização, baseada no diferencial das taxas externas e interna de juros. Diante disso, para evitar uma valorização excessiva do câmbio, que prejudicaria mais ainda a performance das exportações, o governo compra dólares injetando bilhões de reais no mercado. Para evitar o efeito nocivo disso, o governo troca os reais por títulos da dívida pública, que só acham colocação se forem bem remunerados… E assim segue a ciranda, resultando em mais dívida, elevado passivo externo, crescimento contido, concentração de renda e instabilidades.

Recentemente, para além da política macroeconômica conservadora, apareceu o discurso da “boa governança”, pelo qual seria possível diminuir o chamado custo-Brasil, aumentar a disponibilidade do crédito de longo prazo, reduzir os “spreads” e criar um clima favorável aos investimentos através das faladas garantias jurisdicionais. Para tanto, seriam necessárias: a imediata autonomia do BC, a mudança do papel do BNDES e de sua Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), privatizando-se a administração dos fundos de poupança compulsória, moldando aos interesses do capital financeiro as reformas sindical e trabalhista. Neste diapasão surgem também as propostas de plena conversibilidade da moeda brasileira em dólares para dar mais garantias ao capital internacional, assim como as pressões pela renovação do acordo com o FMI e pela implementação do projeto da Alca. Em síntese, o regresso ao projeto neoliberal em novas bases, com prejuízos incalculáveis à soberania econômica do país.

Dilermando Toni é jornalista e membro do Comitê Central do PCdoB.

Referências
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