Pesquisas de opinião pública há muito atestam que a insegurança é a segunda maior preocupação do brasileiro — só superada pelo desemprego. Apesar dessa realidade, o debate em torno de políticas eficientes de combate à violência, muitas vezes, ficava na superfície e restrito a um universo reduzido de interlocutores. No período anterior ao Referendo de 23 de outubro de 2005, porém, a segurança pública esteve no centro das preocupações dos partidos e dos cidadãos.

Durante a campanha do referendo, o Partido Comunista do Brasil participou e defendeu o Sim ao desarmamento. Para o Partido, não se podia subestimar o referendo, sobretudo porque a violência, ainda que atinja a todos os cidadãos, é especialmente danosa às massas populares. Em 29 de agosto, A Comissão Política Nacional do PCdoB oficializou essa posição em Nota, nela indicando o voto Sim ao desarmamento.

A Frente Parlamentar por um Brasil Sem Armas teve cuidado especial para evitar mistificações quanto ao tema. Tínhamos clareza de que, ao proibir o comércio de armas e munição, conseguiríamos atuar contra os crimes por motivos fúteis, mas, de jeito algum, eliminaríamos o problema da violência e da criminalidade em geral, ainda que houvesse a expectativa de reduzi-lo.

Quem desarma o bandido é a polícia. Por um lado, pretendíamos tão-somente prevenir acidentes e homicídios que acontecem, em geral, num universo de pessoas que se conhecem, que não possuem antecedentes criminais e que, em um gesto impensado, reagem à bala diante de conflitos corriqueiros do dia-a-dia.

Mas, por outro lado, tínhamos a percepção de que, no curso da campanha, teríamos oportunidade de provocar a reflexão em torno das questões de segurança pública. Sendo assim, teríamos oportunidade de envolver e comprometer a sociedade na busca de soluções duradouras no enfrentamento do problema do crescimento da violência. Isso, de fato, aconteceu.

A redução do número de homicídios, já com a campanha de entrega voluntária de armas, junto com a consolidação da cultura de paz no Brasil, são importantes conseqüências de todo esse processo.
No esteio dessa mobilização, é preciso levar adiante o debate sobre políticas públicas sérias que visem a enfrentar as causas que geram a violência. O que devemos sempre considerar — e esse é um grande aprendizado da campanha do referendo — é que nenhum governo, por mais engajado que esteja nessa luta, poderá reduzir a criminalidade sem que a população seja efetivamente incluída na solução do problema.

Neste artigo, farei um breve retrospecto da nossa contribuição desde o início do processo de discussão sobre a necessidade de restringir a venda de armas de fogo até a campanha do referendo. Tentarei ainda esboçar algumas idéias sobre o diagnóstico da violência e propor outras tantas, que contribuam para a construção de políticas públicas que combatam a violência nas suas raízes ao invés de apenas atuar nas conseqüências desta mazela.

Estatuto do Desarmamento

Para criar uma lei de restrição à venda de armas de fogo, em julho de 2003, foi instalada a Comissão Mista Especial do Porte de Armas. A matéria também estava sendo apreciada pela Subcomissão Permanente de Segurança Pública da CCJC do Senado. O parecer do deputado Luiz Eduardo Greenhlagh (PT-SP), na comissão mista, foi aprovado em apenas 15 dias e acompanhou o substitutivo do relator da CCJC, senador César Borges (PFL-BA), que incluía propostas apresentadas anteriormente sobre o assunto. Na época vice-líder do governo, atuei junto ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, na construção de soluções de consenso.

Em julho de 2003, o Estatuto foi aprovado pelos senadores e enviado à Câmara, onde sofreu algumas mudanças. Por fim, os senadores revisaram as alterações e aprovaram a redação final em 9 de dezembro do mesmo ano. Em 22 de dezembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.826, conhecida como Estatuto do Desarmamento, que começou a vigorar no dia seguinte.
Uma vez que 28 dos 37 artigos do Estatuto não eram auto-explicáveis, o governo constituiu uma comissão que, após receber contribuições da sociedade, elaborou o texto de regulamentação. O Decreto Presidencial (nº 5.123) foi publicado no Diário Oficial da União no dia 2 de julho de 2004, começando a vigorar nessa data.

Dentre os principais pontos do Estatuto, destacam-se: restrição do porte de arma de fogo para o cidadão comum; aumento das exigências para a obtenção de autorização para a compra de arma de fogo; aumento da idade das pessoas que podem comprar arma de fogo (mínimo 25 anos) e fim da comercialização das armas de fogo e das munições (se aprovado no Referendo).

O Estatuto previu uma Campanha de entrega voluntária de armas, que foi iniciada em julho de 2004. A expectativa era de que, até o final de outubro de 2005, cerca de 500 mil armas de fogo tivessem sido retiradas das ruas — no dia 1º de setembro, haviam sido entregues, no total, 443 mil. A meta inicial era chegar a 80 mil. O resultado — muito acima dessa meta inicial — demonstra o engajamento da população com a idéia de que paz não combina com armas nas mãos de civis.

As informações estatísticas tiveram papel decisivo para o convencimento de amplos setores da sociedade sobre a efetiva eficácia da política de recolhimento voluntário de armamento de pequeno porte.

No Brasil, segundo pesquisa do Ministério da Saúde, a campanha do desarmamento provocou uma redução das internações hospitalares causadas por arma de fogo nos estados de São Paulo, de 7%, e do Rio de Janeiro, de 10,5%, entre janeiro de 2004 e fevereiro de 2005. Em São Paulo, foi notificada uma redução na taxa de homicídios de 18,5% no ano passado e 22% na capital. E em Pernambuco, segundo a Secretaria Estadual de Defesa Social, houve uma redução de 10,8% do número de assassinatos, comparando-se os primeiros 9 meses de 2003 e 2004.

No início de setembro, o Ministério da Saúde divulgou levantamento apontando que o índice nacional de mortes por armas de fogo caiu 8,2% no ano passado, na comparação com 2003. Isso representou 3.234 vidas poupadas. Pela primeira vez, em 13 anos, houve redução do número de mortos por armas de fogo no país. De acordo com a pesquisa, foram 39.325 mortes em 2003, contra 36.091 no ano passado, quando o governo federal iniciou a campanha. A redução foi verificada em 18 estados. Os que mais recolheram armas em números absolutos — como São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco — observaram as maiores diminuições no número de mortos por armas de fogo.

Considerando, no entanto, a curva de crescimento do número de mortes por armas de fogo, um estudo da UNESCO — “Vidas poupadas – o impacto do Desarmamento no Brasil” — demonstrou que a notícia ainda foi mais alvissareira: 5.563 vidas foram salvas em 2004, se levarmos em conta não apenas os valores absolutos do ano anterior, mas sim, esses valores corrigidos pela expectativa da elevação de homicídios. O número absoluto de mortes caiu 8,2% — como se esperava que o número crescesse 7,2% em 2004 em relação a 2003, concluiu-se ter havido uma queda de 15,4% no geral.

Segundo esse estudo da UNESCO, tal resultado foi conseqüência tanto da campanha quanto do Estatuto do Desarmamento.

Referendo

O foco do debate da Frente Parlamentar Brasil Sem Armas foi mostrar que, embora a proibição do comércio de armas de fogo e munição não fosse suficiente para resolver a questão da criminalidade era uma forma de reduzir os homicídios por uso irrefletido de armas ou por acidente com elas. Conflitos banais, muitas vezes, transfiguravam-se em tragédias pela simples presença de um revólver, uma pistola.

Nos casos de brigas de trânsito, nos bares, nos campos de futebol, discussões de familiares ou conhecidos, a tendência no calor da situação é usar a arma, se essa estiver à mão. Caso contrário, o conflito — vencido o impulso da reação imediata — tende a arrefecer, sem que redunde no homicídio ao produza ferimentos graves. Além dos crimes por motivos banais, as armas de fogo também são responsáveis por um grande número de acidentes, muitos dos quais envolvendo crianças. Por dia, de cada três crianças atendidas em hospitais brasileiros com ferimentos por armas de fogo, duas delas foram atingidas acidentalmente por esses artefatos.

Apresentamos, ainda, pesquisa da UNESCO, no Brasil, em 2002, na qual revela-se que os jovens também são as principais vítimas das armas de fogo — 38,8% das mortes de jovens entre 18 e 24 anos de idade foram ocasionados por arma de fogo e 16% por acidentes de trânsito. Tais estatísticas colocam o Brasil no primeiro lugar em números de mortes de jovens nessas circunstâncias. Somos o país em que mais se mata e mais se morre por arma de fogo no planeta, diz a ONG Viva Rio.

E mais: ao compararmos armas de fogo com armas brancas percebemos que 63,9% dos homicídios são cometidos pelas primeiras, enquanto 19,8% são causados por facas e outras da mesma natureza. Outra estatística estarrecedora: a chance de morte por agressão com arma de fogo é de 75%, contra 36% com armas brancas.

Em quatro anos, de 1979 a 2003, meio milhão de pessoas morreram no Brasil em conseqüência de tiro. Todas essas afirmações, e muitas outras, foram fartamente divulgadas durante a campanha da Frente Parlamentar Brasil Sem Armas, que antagonizou o debate com a Frente Parlamentar a Favor do Direito de Defesa, que defendia o Não à proibição.

Ações Sociais

O referendo foi uma oportunidade única para que fossem discutidas ampla e profundamente as causas da violência e as formas de combatê-la. A desigualdade estrutural do capitalismo é pilar que sustenta a “indústria da violência” que se abastece do enorme exército de jovens brasileiros postos à margem da sociedade.

Não podemos, portanto, pensar em políticas sérias de segurança sem que seja colocado em xeque o modelo político e econômico do Estado Mínimo. E sem que afirmemos a urgência da reconstrução do Estado Nacional, que deve estar comprometido com a busca do desenvolvimento com justiça social e com o bem-estar do povo.

O crescimento da insegurança pública no país acompanhou a orientação neoliberal das políticas econômicas postas em prática pelas gestões que antecederam ao governo atual. E mesmo nas críticas ao governo Lula — ao qual apoiamos —, sempre reafirmamos a necessidade de ousar e romper com os resquícios de política monetarista da administração tucana.

Produzir superávits primários cada vez maiores, atendendo ao reclamo do mercado financeiro, e reduzir investimentos em infra-estrutura são medidas que conduzem, invariavelmente, ao aumento da exclusão social, do desemprego, das desigualdades regionais e, por conseqüência, da violência e da criminalidade.

Sem emprego, sem moradia, sem escola, sem segurança alimentar, sem acesso à saúde a juventude desfavorecida dos grandes centros urbanos torna-se alvo fácil do crime organizado. Onde não há Estado atuante sobra espaço para o Estado-Paralelo das corporações criminosas.

Portanto, esperamos reduzir as mortes e ferimentos por armas de fogo com a proibição do comércio de armamentos de pequeno porte, mas só iremos reduzir drasticamente as estatísticas da morte quando formos capazes de implementar políticas públicas de inclusão social. É preciso que a juventude tenha razões para acreditar no futuro. A esperança só vencerá o medo quando houver emprego, educação, habitação, saúde e, sobretudo, quando houver a percepção de que o Estado é presente e efetivo na defesa do cidadão. Para isso, as forças de repressão (as polícias) deverão ser bem treinadas e equipadas para defender seu povo.

Em paralelo, é necessário rompermos com a cultura da conivência com a corrupção, que degenera gerações inteiras e faz os jovens acreditarem que a virtude da retidão é para aqueles incapazes de se darem bem na vida. Precisaremos, ainda, lutar pelo fim da impunidade, na qual as leis só servem para proteger aqueles que dispõem de recursos para contratar caros advogados. A impunidade que distingue o bandido de origem rica e o bandido de origem pobre, oferecendo ao último, quase sempre, as grades e, ao primeiro, muitas vezes, a liberdade.

Conclusão

Feito o balanço das conquistas — a aprovação do Estatuto do Desarmamento, a campanha voluntária de entrega de armas de fogo e a realização do primeiro referendo, no mundo, sobre o comércio de armas —, só podemos constatar a vitória do povo brasileiro que reafirma sua vocação pacífica, mas jamais passiva. Ganha a sociedade, que teve oportunidade de ouvir diferentes argumentos e idéias sobre a questão da segurança pública e, certamente, saberá cobrar dos partidos, dos políticos, das organizações não-governamentais posições e ações efetivas nessa área.

O Estatuto do Desarmamento ofereceu os meios legais e institucionais para o governo combater a violência. Mas não há ilusões nem mistificações: isso não é suficiente. Só a redução das desigualdades sociais criará o ambiente ideal em que a violência e a criminalidade não conseguirão fincar raízes profundas na sociedade brasileira.

Renildo Calheiros é líder da bancada do PCdoB na Câmara dos Deputados.

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 46, 47, 48, 49