Nos últimos dias, a mídia hegemônica tem feito grande alarde com a candidatura de Heloísa Helena, que encabeça uma chapa composta por três partidos de frágil densidade eleitoral e de pequeno enraizamento social (PSOL, PSTU e PCB). Não que alguém acredite que a senadora tenha condições reais de vencer as eleições presidenciais ou mesmo de ir para o segundo turno. Há consenso nos meios de comunicação e no front político em relação ao “fenômeno HH” apenas apimentar a disputa, viabilizando o segundo turno entre Lula e Alckmin – que não consegue decolar na campanha. Em recente entrevista, o próprio FHC, conspirador-mor da direita, reconheceu que o candidato do PSDB-PFL “não tem carisma”, chegando a confessar ter sido um erro sua escolha. Heloísa Helena seria a última chance para dar fôlego ao seguidor do Opus Dei!

Sem escamotear sua tática diversionista, a direita brasileira nem esconde mais sua intenção de inflar esta candidatura! Logo que soube da “ascensão” da senadora, Alckmin soltou rojões: “Eu e a Heloisa Helena somos menos conhecidos e a tendência é que as duas candidaturas cresçam, garantindo o segundo turno. Tenho respeito pela candidatura da senadora”. Já um dos novos ícones da direita, Reinaldo Azevedo, editor da falida revista Primeira Leitura, explicitou a manobra tática. Em resposta a um leitor do seu blog, escancarou: “Um leitor aí disse que a minha ‘simpatia por Heloisa Helena acabaria se ela ultrapassasse o Alckmin’. Mas quem disse que eu tenho simpatia por Heloisa Helena? Não votaria nela nem para síndica. O fato de eu achar que ela pode ajudar a levar a disputa para o segundo turno não quer dizer simpatia”.

No ápice da sua arrogância, ele ainda deu conselhos à senadora. “Se sou do PSOL, torço, evidentemente, para que o Alckmin vença a disputa pela Presidência por razões muito objetivas. O PT estando fora do poder, Heloísa Helena tem alguma chance de ter relevância no cenário de esquerda. Aí a luta se estenderá às franjas do poder petista, nos sindicatos e outras organizações da sociedade civil. Mais: a chance de o PSOL continuar existindo, com a cláusula de barreira, é a sua candidata ter bom desempenho nas urnas”. Noutro texto, insiste: “Ah, a mulher vai dar trabalho. Sobretudo ao PT. Como ela não é tonta, já sabe que, se Alckmin ganhar, fica mais fácil para seu partido crescer no terreno em que pode crescer: à esquerda”.

Outro direitista convicto e metido à estrategista eleitoral, César Maia, prefeito do Rio de Janeiro e chefão do PFL, chegou a publicar em seu blog uma estranha “carta aberta” com conselhos publicitários a Heloisa Helena: “Trabalhando com pesquisas qualitativas, verificamos com preocupação que sua contundência na TV está passando da posição firme para a percepção da arrogância. Cuidado, reveja seus pronunciamentos no Jornal Nacional [da poderosa Rede Globo]”. Dias depois, ao saber que a candidata “foi convencida a abrandar o discurso para não assustar a classe média”, o pefelista comemorou e deu novas dicas: “Muito bem, senadora! Mas, além de suavizar o conteúdo, o tom da voz e os olhos devem ser suavizados”.

O generoso impulso da mídia

Na avaliação unânime dos especialistas em campanhas eleitorais, o repentino crescimento da candidatura de HH – o novo rótulo da senadora – decorreu de sua forte exposição na mídia nas últimas três semanas. Enquanto o presidente Lula se mantém preso ao cargo, e seu partido encerrou seus anúncios na televisão, PSDB e PFL aproveitaram seus programas para fustigar o governo. Já a senadora surgiu em raia própria com inusitado destaque na mídia. Sua ascensão, sobretudo nos estratos mais ricos da classe média, seria um fenômeno passageiro. A tendência – garantem –, é de que com o começo do horário eleitoral gratuito, em 15 de agosto, e com a inevitável polarização da disputa, ela retorne a patamares inferiores nas pesquisas.

Se o crescimento de Heloísa Helena é apenas um fenômeno volátil, “fogo de palha”, somente a campanha poderá comprovar. Quanto à generosa exposição na mídia, os fatos são irretocáveis. Conforme constatou o jornalista Nelson de Sá, que faz um meticuloso monitoramento da mídia para o insuspeito diário Folha de S.Paulo, desde o final da Copa do Mundo a senadora “jamais faltou, dia após dia”, da cobertura do Jornal Nacional, o programa recordista em audiência da poderosa TV Globo. Ainda segundo ele, a candidata, que gosta de posar de ultra-radical, “abrandou seu discurso para não assustar a classe média” e inclusive já “agradeceu pelo tratamento que tem recebido das emissoras de televisão”.

Outro estudioso da mídia, o jornalista Renato Rovai, da Revista Fórum, confirma esta análise. Num artigo intitulado “Jornal Nacional explica o fator HH”, ele garante que foram “os preciosos minutos” da Globo que fizeram a candidatura da senadora decolar. “Esse tipo de fenômeno não é novo. Em outras disputas, candidatos com discurso forte e claro se deram bem na TV. O crescimento da candidatura do PSOL pode ser só isso e, como em outras épocas, se tornar um mero estampido quando a campanha começar de vez, já que as estruturas partidárias precisam ser sólidas nas localidades para garantir o crescimento real”.

A generosidade da mídia chega a ser piegas! Colunistas bem pagos e de ligações sombrias não param de descobrir virtudes na senadora. Dora Kramer, articulista dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo, vê nela uma “mulher, valente, amena no trato, uma fera na tribuna, vitima do autoritarismo do PT, a petista que se recusou a vender sua consciência aos ditames do poder”. Já para Merval Pereira, tido nos bastidores da mídia como “homem do PSDB”, a candidata cresceu nas pesquisas “devido a um segmento do eleitorado que continua querendo as mudanças que Lula prometeu e não entregou”. Animado, reconhece que a candidatura “ajuda a levar a disputa para o segundo turno”, viabilizando o projeto de Alckmin.

Outra entusiasta da senadora é a jornalista Eliana Catanhêde, colunista da Folha de S.Paulo e tucana enrustida. Na sua coluna de 23 de julho, ela elegeu a candidata como o principal estorvo do presidente Lula. “Contundente, mulher, nordestina e ‘do povo’, Heloísa Helena é o Lula de saias (apesar de só usar calças jeans) e o Lula de antigamente – a mesma empatia, o mesmo calor, a mesma indignação”. Outro articulista do mesmo jornal, que se transformou em palanque da direita, mostra-se menos seduzido e mais isento. “Heloísa Helena caiu nas graças de uma parcela do que o governador Cláudio Lembo gosta de chamar de ‘elite branca’”, registra Fernando de Barros e Silva com base nas pesquisas eleitorais.

Ausência de unidade e de consistência

Há outro fato inquestionável: a candidata abrandou seu discurso nas últimas semanas, talvez visando a atrair os segmentos da classe média como originalmente sugeriu César Maia. Nas suas várias aparições no JN da TV Globo, sempre editadas tão carinhosamente – com a senadora carregando ramalhetes de flores, cercada de populares e beijando criancinhas –, ela já defendeu a “redução da carga tributária para a classe média e o setor produtivo”; diante da onda de violência urbana, ela pregou “uma repressão implacável ao crime organizado”; e reforçando o coro da mídia de satanização do presidente da Venezuela, afirmou: “se eu tiver a honra de chegar à Presidência, não manda no meu governo nem o Bush nem o Chávez”.

Segundo fontes confiáveis, este discurso tem preocupado várias correntes internas do PSOL – um partido que mais se assemelha a uma frente partidária, com cerca de dez agrupamentos no seu interior. HH já era vista com reservas no movimento feminista, devido a sua posição contrária à descriminalização do aborto. “Não há nada mais primitivo do que o aborto”, desdenha a senadora.

Também causava desconfiança a sua formação teórica. Ela gosta de dizer que “aprendeu a ser socialista lendo a Bíblia”. Sua postura de cantora solo, que menospreza as instâncias coletivas de decisão, já causou alguns curtos-circuitos no comando da campanha. Agora, ela ainda resolveu adocicar seus discursos, o que deve atiçar as turbulências no PSOL – “um estranho casamento de esquerdismo e eleitoralismo”, segundo definição do sociólogo Emir Sader.

Para tensionar ainda mais a campanha da senadora, a sua coligação agrega forças diametralmente opostas. O PSTU nunca escondeu suas reservas diante do PSOL, taxando-o de “reformista e eleitoreiro”. A briga é antiga. O primeiro acreditou que seria o desaguadouro dos militantes desiludidos com o PT e a criação do segundo frustrou o projeto. O PSOL ainda fez questão de rejeitar os “sectários” do PSTU e atraiu vários de suas lideranças. Após propor a formação de uma “frente de esquerda classista” e de indicar José Maria de Almeida para vice de HH, o PSTU teve de se contentar com alguns candidatos majoritários e ainda foi obrigado a engolir a escolha do economista César Benjamin, “um nacional-desenvolvimentista”.

Ou seja: a aliança eleitoral é muito frágil, um casamento bem litigioso. Bastou o vice de HH antecipar as balizas do programa da coligação para o PSTU vir a público novamente escancarar suas divergências. No final de julho, a direção nacional do partido lançou uma dura “carta à coordenação da frente de esquerda”, na qual rechaça uma entrevista de César Benjamin à Folha de S.Paulo. “Causou-nos enorme estranheza a entrevista… Não reconhecemos nenhum programa que esteja sendo elaborado unilateralmente por César Benjamin, ou por um dos partidos da frente. E achamos um grave erro que isso tenha sido anunciado na mídia sem nenhuma consulta aos partidos”, afirma o documento que, ao final, ainda faz um ultimato: “Não reconhecemos esse ‘programa’ anunciado por César Benjamin, nem a metodologia unilateral com o qual ele está sendo construído. Diante disso, solicitamos uma reunião da coordenação para discutir o tema”.

Para o PSTU, entretanto, o problema mais grave não estaria na forma. “Ele se agrava qualitativamente porque César Benjamin anunciou, como proposta de governo de Heloísa, posições opostas às definidas em comum por PSOL, PSTU e PCB, e expressas no manifesto da frente. Em relação à dívida externa, na entrevista somente a auditoria é proposta. No manifesto, defendemos, além da auditória, a suspensão do pagamento da dívida. César também propõe a duplicação do salário mínimo em oito a dez anos, enquanto no manifesto defendemos a sua duplicação imediata. Na entrevista, César afirma ainda não saber o que fazer com a Vale do Rio Doce, porque não pode prometer reestatizá-la. No manifesto, propomos a reestatização de todas as empresas privatizadas, a começar pela Vale”, condena o citado documento.

Como se observa, a campanha presidencial da senadora padece da ausência de unidade e de consistência programática. Enquanto a crise não transborda, Heloísa Helena continua percorrendo o país, sempre com a generosa exposição na mídia. Conforme registro da imprensa, “Heloísa concentra os ataques em Lula para atrair votos do PT”. Num encontro com pequenos empresários, no final de julho, ela simplesmente “poupou o candidato tucano, Geraldo Alckmin” e partiu para a baixaria udenista contra o atual presidente. Esta postura explica por que 39% dos seus simpatizantes afirmam que podem migrar para a candidatura de Alckmin. Na prática, independentemente das intenções dos valiosos lutadores sociais entusiastas da sua campanha, HH faz o jogo da direita ao possibilitar a realização do segundo turno da eleição presidencial.

Caso vire um risco real ao candidato tucano, a mesma mídia que hoje a beatifica fará de tudo para destruí-la – como já fez com um pobre “garotinho” que apareceu com chifres e rabo de demônio na capa da abjeta revista Veja. A disputa presidencial no Brasil será dura e decisiva, inclusive por seus reflexos no restante da América Latina. E a direita brasileira e alienígena utilizará todas as armas disponíveis para retornar ao poder. Se, de fato, houver segundo turno, PSOL, PSTU e PCB precisarão explicar seu papel nesta disputa e ainda estarão diante de um dilema nevrálgico para o seu futuro: “Lula ou Alckmin, that’s the question”. Até hoje os zapatistas não conseguiram explicar sua postura na recente eleição presidencial do México, que resultou numa apertada, suspeita e questionada vitória de outro seguidor da seita Opus Dei.

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro As encruzilhadas do sindicalismo (Anita Garibaldi, segunda edição).

EDIÇÃO 86, AGO/SET, 2006, PÁGINAS 24, 25, 26, 27