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    Comunicação

    Uma cidade, um antropólogo, dois escritores e um pássaro

          Os desafios enfrentados para a construção da nova cidade foram muitos. Os principais foram: a forte resistência que se formou entre os antigos moradores da Cidade de Goiás (Vila Boa de Goiás), até então a capital e a situação financeira do Estado que não passava por um momento nada confortável. Pedro Ludovico Teixeira, o […]

    POR: Redação

    9 min de leitura

          Os desafios enfrentados para a construção da nova cidade foram muitos. Os principais foram: a forte resistência que se formou entre os antigos moradores da Cidade de Goiás (Vila Boa de Goiás), até então a capital e a situação financeira do Estado que não passava por um momento nada confortável. Pedro Ludovico Teixeira, o homem de Vargas em Goiás, não se rendeu às adversidades colocadas, manobrou no campo político e conseguiu dinheiro através de empréstimos e da venda de terrenos do que iria tornar-se a nova Capital, ou seja, a especulação imobiliária começa antes da própria cidade existir. Devemos considerar que a etapa final das obras coincide com a deflagração da 2ª Guerra Mundial, o que agravou ainda mais as dificuldades financeiras da empreitada.
     
          A cidade nos seus primeiros anos ainda não tinha uma forte tradição cultural. Tudo começou do zero, e isso era proposital: romper com os antigos laços da tradição era o objetivo final do empreendimento de construção de uma nova cidade. O movimento cultural nos primeiros anos era de chegada, obedecia ao fluxo dos operários que vinham trabalhar em troca de baixos e, quase sempre, atrasados salários. Muitos intelectuais visitaram Goiânia nos seus primeiros anos, alguns deixaram impressões registradas. O antropólogo Claude Lévi-Strauss passou pelo canteiro de obras de Goiânia em uma de suas andanças pelo interior do Brasil e assim registrou suas impressões do novo lugar: “Pois nada podia ser tão bárbaro, tão desumano, quanto essa implantação no deserto. Essa construção sem graça era o contrário de Goiás; nenhuma história, nenhuma duração, nenhum hábito lhe saturara o vazio ou lhe suavizara a rigidez; ali nos sentíamos como numa estação de trem ou num hospital. Sempre passageiros, e nunca residentes” (Tristes Trópicos, p. 118).
     
          O cenário das obras da nova capital assusta Lévi-Strauss. Com isso, ele percebe uma das intenções dos vencedores da Revolução de 30 em Goiás, começar do nada e construir uma cidade livre de tradições e vestígios das antigas oligarquias. E, ele não seria o único marcado negativamente pelas impressões da nova cidade. Monteiro Lobato esteve também por essa época em Goiânia e ficou hospedado no Grande Hotel, o mesmo lugar onde se alojara Lévi-Strauss. Conta-nos Bernardo Élis que o escritor paulista chegou em um vôo inaugural da linha São Paulo – Goiânia e não ficou mais que uma noite. Não encontrou nem água e nem luz elétrica no hotel. Logo na manhã seguinte partiu, voltando no mesmo avião e deixando registrado no livro de hóspedes do Grande Hotel a seguinte quadrinha: “Goiânia, cidade linda,/Que nos encanta e seduz/De dia não tem água,/De noite não tem luz” (Memória cultural: ensaios da história de um povo, p. 58). A partir de meados dos anos 40 a cidade começa a se desenvolver, em passos lentos, as questões elementares são resolvidas na base de muito esforço e criatividade; o gerador de energia elétrica da cidade por algum tempo foi o motor de um submarino comprado pelo Estado logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e que resolveu precariamente a situação. 
     
          Os festejos do Batismo Cultural e a realização do Congresso Nacional de Intelectuais são os acontecimentos culturais mais significativos da cidade nos seus primeiros 20 anos. Em fevereiro de 1954, Goiânia sedia o I Congresso Nacional de Intelectuais, evento que apesar do nome nacional alcança repercussão bem maior, pois recebe, além de escritores e produtores culturais brasileiros, intelectuais de toda América Latina e do Caribe. Destaca-se a presença do escritor chileno Pablo Neruda quem, presenteado com um pássaro que terminaria morrendo de frio no Chile, colocou a cidade entre os cenários de suas composições com o poema Oda al pájaro sofré:

    Te enterré en el jardín:
    una fosa
    minúscula
    como una mano abierta,
    tierra
    austral,
    tierra fría
    fue cubriendo
    tu plumaje,
    los rayos amarillos,
    los relámpagos negros
    de tu cuerpo apagado.
    Del Matto Grosso,
    de la fértil Goiania,
    te enviaron
    encerrado.
    No podías.
    Te fuiste.
    En la jaula
    con las pequeñas
    patas tiesas,
    como agarradas
    a una rama invisible,
    muerto,
    un pobre arado
    de plumas
    extinguidas,
    lejos
    de los fuegos natales,
    de la madre
    espesura,
    en tierra fría,
    lejos.
    Ave
    purísima,
    te conocí viviente,
    eléctrico,
    agitado,
    rumoroso,
    una flecha
    fragante
    era tu cuerpo,
    por mi brazo y mis hombros
    anduviste
    independiente, indómito,
    negro de piedra negra
    y polen amarillo.
    Oh salvaje
    hermosura,
    la dirección erguida
    de tus pasos,
    en tus ojos
    la chispa
    del desafío, pero
    así
    como una flor es desafiante,
    con la entereza
    de una terrestre integridad, colmado
    como un racimo, inquieto
    como un descubridor,
    seguro
    de su débil arrogancia.

    Hice mal, al otoño
    que comienza
    en mi patria,
    a las hojas
    que ahora desfallecen
    y se caen,
    al viento Sur, galvánico,
    a los árboles duros, a las hojas
    que tú no conocías,
    te traje,
    hice viajar tu orgullo
    a otro sol ceniciento
    lejos del tuyo
    quemante
    como cítara escarlata,
    y cuando
    al aeródromo metálico
    tu jaula
    descendió,
    ya no tenías
    la majestad del viento,
    ya estabas despojado
    de la luz cenital que te cubría,
    ya eras
    una pluma de la muerte,
    Y luego, en mi casa,
    fue tu mirada última
    a mi rostro, el reproche
    de mi mirada indomable.
    Entonces,
    con las alas cerradas,
    regresaste
    a tu cielo,
    al corazón extenso,
    al fuego verde,
    a la tierra encendida,
    a las vertientes,
    a las enredaderas,
    a las frutas,
    al aire, a las estrellas,
    al sonido secreto
    de los desconocidos manantiales,
    a la humedad
    de las fecundaciones
    en la selva, regresaste
    a tu origen,
    al fulgor amarillo,
    al pecho oscuro,
    a la tierra y al cielo
    de tu patria.

    (NERUDA, Pablo. Odas Elementales. Buenos Aires, Losada, 1954.)

          O poeta deixa transparecer em sua composição um pouco da culpa que sentiu por ter transformado o pássaro sofré em um exilado, justo ele que sofreu tanto com esta condição e teve que passar muito tempo longe de sua terra natal. Neruda situa equivocadamente Goiânia no Mato Grosso, mas quem somos nós para corrigir o poeta, talvez ele conhecesse profundamente a divisão regional do Estado de Goiás e falasse da micro-região em que Goiânia está localizada, a micro-região do Mato Grosso Goiano.

          No fim dos anos 50, com o começo da construção de Brasília – uma outra cidade surgida a partir do nada -, é que Goiânia tem seu crescimento impulsionado. A capital de Goiás tornou-se importante ponto de apoio para as obras da construção de Brasília e se aproveitou do grande movimento gerado nas obras do novo distrito federal para desenvolver seu setor de comércio e serviços. Com a nova Capital Federal, Goiânia entra em um círculo de rápido crescimento, efeitos que repercutiriam regionalmente. O cenário rural das tropas e boiadas seria substituído rapidamente pelos traçados de grandes avenidas e eixos monumentais desenhados na prancheta; o cerrado, a superfície capaz de proporcionar as condições ideais de relevo para se esparramar cidades. O arquiteto e o urbanista teriam, enfim, um terreno quase perfeito.  O impacto da construção das duas cidades determinaria uma sensível alteração no eixo do desenvolvimento regional do país, as alterações seriam muito rápidas. A Marcha para o Oeste, vislumbrada por Vargas, encontraria nestas duas significativas alterações do espaço regional bastiões capazes de proporcionar a sua efetivação. Uma geração bastou para transformar o sertão e sua geografia. A economia rural, de subsistência e comercialização das sobras, abriria caminho para o processo capitalista de exploração do campo, com forte mecanização da produção e objetivos quase que exclusivamente para a exportação para mercados internacionais, o cerrado se transforma em comodities.

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