Um carreirista oportunista pretende subir na vida a todo custo. É um ator talentoso de uma cidade provinciana da Alemanha no final da década de vinte, que está disposto a tudo para realizar o seu intento e fazer parte dos escolhidos pelo poder. Quer chegar à capital, brilhar e ofuscar todos os seus concorrentes. É inescrupuloso e cheio de ambição: ingredientes fundamentais para quem nutre pretensões tão elevadas. O personagem que o consagra no palco e na vida é Mefisto, a encarnação bufa e diabólica do Mal, criação do escritor símbolo da Alemanha: Johann Wolfgang Goethe. Depois disso, o pacto com o diabo é inevitável, e ele alcança enfim a glória e a fama desejadas.

      A história do romance mais famoso de Klaus Mann é simples e provavelmente muito comum naqueles tempos difíceis em que a desfaçatez, a perversidade e a barbárie imperavam, em meio ao desemprego em massa e à inflação galopante. Uma época em que o Mal erigiu seus líderes máximos e mais eficientes, com o intuito de destruir a humanidade e todos os valores morais mais elementares para uma convivência sadia e democrática entre os homens. Uma ditadura atroz, apoiada pela maioria da população em delírio, minou todos os alicerces da cultura humanista e eliminou todos os seus representantes. Criou-se a idéia mais cara ao regime patético e assassino que mudou a história da civilização: o extermínio, a eliminação física barata e rápida de todos os possíveis opositores e desafetos do poder. O triunvirato detentor do poder na Alemanha nazista, tão bem descrito por Klaus Mann nesse romance, suscita o sorriso sarcástico do leitor, e nos divertiríamos muito mais se não soubéssemos o que estava sendo maquinado e executado por aquelas grotescas figuras esbravejantes. Mas o ator Höfgen não está interessado nessas questões políticas e sociais degradantes; ele ama a arte e a boa vida e se deleita com as benesses e as riquezas proporcionadas por sua proximidade com os todo-poderosos. Depois de tanto esforço, ele entra para o rol dos semideuses, goza de inúmeros privilégios e obtém permissão para aparecer de vez em quando ao lado deles, naquele Olimpo feito de milhares de cadáveres putrefatos. A república de Weimar dá lugar à república dos assassinos com seus uniformes impecáveis e seu pedantismo cruel. Torturar, mortificar e matar passam a compor os prazeres cotidianos daquela raça dita superior em sua ânsia desmedida de domínio. É preciso então ser astuto, seduzir o gorducho – o senhor da vida e da morte naquele país em desvario -, esquecer os amigos e aceitar a destruição inevitável dos fracos. E ele até que “se adapta bem a essa sociedade, tem a sua falsa dignidade, seu arrebatamento histérico, seu cinismo vaidoso e o demonismo barato”. Mas mesmo assim, ele é um grande artista, é um ser sensível e se vê muitas vezes assolado por dúvidas, e se coloca – a ele e a nós – uma questão decisiva: “Será que não sou um canalha?”

      Na adaptação feita para o cinema tendo no papel título o excelente ator Klaus Maria Brandauer, o diretor István Szabó deu relevo a uma imagem presente no romance, a fim de evidenciar o oportunismo do ator Höfgen: o buquê de flores acompanhado de um cartão de agradecimento que ele envia a princípio para uma colega judia que muito o ajudou, e depois para a namorada do gorducho poderoso, a atriz medíocre que lhe abre as portas dos gigantescos palácios habitados pelos semideuses. Esse pequeno gesto acaba simbolizando o comportamento daqueles indivíduos que em qualquer época e em qualquer regime político “querem se dar bem”, fazendo da adulação e da esperteza uma prática corriqueira e legítima. Acresce-se a isso a fascinação dos nazistas pela arte da representação no que ela tem de mais superficial: as poses, os gestos grandiloqüentes, o fingimento convincente. Coisas que o ator Höfgen aliás, sabia fazer muito bem. Seu colaboracionismo infame remete diretamente à atuação de Gustaf Gründgens, ator oficial da camarilha nazista e amigo de Klaus Mann até a partida deste para o exílio em 1933. Independentemente dessa referência real, que causou até mesmo a proibição da obra após a guerra na Alemanha Ocidental, o romance transcende a mera polêmica a respeito de um indivíduo e de um momento histórico específicos, e faz ecoar na história da sociedade moderna o grito tão bem articulado por Goethe no século anterior: como equacionar a ambição exagerada, o egoísmo destrutivo com sentimentos éticos profundos? O dilema do negar a Deus, vender a alma ao diabo e abrir mão do amor ainda atormenta a consciência do homem moderno, que assiste seguro e no aconchego do lar a genocídios televisivos ocorridos em outras partes do mundo ou a crimes hediondos cometidos nas imediações, com uma impassibilidade neutra e descomprometida. Tal como Höfgen, ele saboreia seu vinho predileto e respira aliviado por não ter sido ele a vítima. Compadece-se com o sofrimento e a dor alheia, mas ao mesmo tempo eximi-se de toda e qualquer responsabilidade pelas chacinas que proliferam a sua volta, pois só tem olhos para si, para a sua carreira, para a sua fama e fortuna.

      Alguns anos depois da primeira publicação dessa obra de Klaus Mann, o mesmo tema ocupou seu pai, que também transpôs para o momento presente a conhecida história de Fausto e Mefistófoles, dando a ela um tratamento mais filosófico e menos moral. Para muitos “Doutor Fausto” é a maior obra de Thomas Mann. Nela, o diabo, na figura de um vadio, um estróina, assegura ao protagonista “com a voz educada e anasalada de um ator” a realização de seus sonhos, mas obriga-o a renunciar ao amor: “O amor está proibido para você porque ele aquece. A sua vida deve ser fria – por isso não pode amar ninguém”. O pacto com o Mal implica sempre na renúncia aos mais nobres sentimentos humanos, no exercício efêmero do poder terreno e na danação eterna. Afora as desavenças pessoais funestas entre pai e filho, ambos refletiram simultaneamente sobre o destino do próprio país e sobre a degeneração generalizada reinante na primeira metade do século na Europa, a partir do conflito-chave da cultura alemã eternizado nos dois personagens antagônicos e, para o autor talvez, complementares: “Duas almas, ah, habitam meu peito”.

      Além de enfatizar a responsabilidade social do artista, do intelectual, o Mefisto foi também um prenúncio do que estava por vir na Alemanha nos anos seguintes. Em maio de 1945, Klaus Mann foi a Munique, sua cidade natal, acompanhando as tropas americanas. Encontrou tudo destruído, e se horrorizou ao visitar o campo de concentração de Dachau nos arredores da cidade, vendo pessoalmente o inferno planejado pelo triunvirato e concretizado pela imensa súcia de assassinos depravados, que se lançou insana naquela orgia demoníaca efetuada com disciplina e rigor. Dilacerado interiormente diante da destruição de tudo e de todos, Klaus Mann foi sendo cada vez mais tomado pelo desespero e pela descrença num mundo melhor, o que, sem dúvida, muito contribuiu para o seu suicídio no final da década de quarenta, aos 42 anos. Apesar de ter deixado uma obra relativamente extensa, entre contos, romances, ensaios e artigos, Mefisto é o seu grande legado literário à posteridade. A profundidade do tema, a prosa fluente, o sarcasmo dosado, ao descrever as figuras mais odiosas, e o registro artístico do cotidiano de pessoas comuns naqueles anos de incubação da serpente, fizeram deste livro uma das obras mais importantes da literatura alemã durante o período nazista. Através dela, Klaus Mann pôde livrar-se da sombra inexorável do pai e firmar-se como um escritor maduro, com um estilo próprio e envolvente.

      Sem dúvida, a riqueza maior desta obra está em suas leituras múltiplas: da referência à vida real de um grande ator alemão, passando pela sátira das excentricidades nazistas, pela sedução capciosa do poder e pela ambição cega e destrutiva, ao perigoso pacto com o demônio, que no mundo moderno aparece travestido em uniformes de gala ou em requintados ternos da moda.

      Hoje sentimos nojo ao ver o resultado daquela sanha nazista desenfreada, mas muitas vezes não refletimos devidamente sobre os comportamentos que permitem e possibilitam o surgimento de atrocidades semelhantes em todas as sociedades e todas as épocas. Que além do prazer de nos defrontarmos com a boa literatura, o romance nos estimule também a perceber melhor os desejos e as ambições humanas, que em sua ânsia de se verem realizadas desembocam quase sempre em tenebrosos abismos da alma.

 

Uma obra fundamental para quem se interessa pela evolução da cultura humana em toda a sua complexidade, e a qual tive o prazer de traduzir para o nosso idioma.