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    Comunicação

    Romanceiro da Inconfidência

    Fala aos pusilânimes Se vós não fôsseis os pusilânimes, recordaríeis os grandes sonhos que fizestes por esses campos, longos e claros como reinos; contaríeis vossas conversas nos lentos caminhos floreados, por onde os cavalos, felizes com o ar límpido e a lúcida água, sacudiam as crinas livres e dilatavam a narina, sorvendo a úmida madrugada! […]

    POR: Redação

    4 min de leitura

    Fala aos pusilânimes

    Se vós não fôsseis os pusilânimes,
    recordaríeis os grandes sonhos
    que fizestes por esses campos,
    longos e claros como reinos;
    contaríeis vossas conversas
    nos lentos caminhos floreados,
    por onde os cavalos, felizes
    com o ar límpido e a lúcida água,
    sacudiam as crinas livres
    e dilatavam a narina,
    sorvendo a úmida madrugada!

    Se vós não fôsseis os pusilânimes,
    revelaríeis a ânsia acordada
    à vista dos córregos de ouro,
    entre furnas e galerias,
    sob o grito de aves esplêndidas,
    com a terra palpitante de índios,
    e a vasta algazarra dos negros
    a chilrear entre o sol e as pedras,
    na fina aresta do cascalho.
    Também pela vossa narina
    houve alento de liberdade!

    Se vós não fôsseis os pusilânimes,
    confessaríeis essas palavras
    murmuradas pelas varandas,
    quando a bruma embaciava os montes
    e o gado, de bruços, fitava
    a tarde envolta em surdos ecos.
    Essas palavras de esperança
    que a mesa e as cadeiras ouviram,
    repetidas na ceia rústica,
    misturadas à móvel chama
    das candeias que suspendíeis,
    desejando uma luz mais vasta.

    Se vós não fôsseis os pusilânimes,
    hoje em voz alta repetiríeis
    rezas que fizestes de joelhos,
    – súplicas diante de oratórios,
    e promessas diante de altares,
    suspiros com asas de incenso
    que subiam por entre os anjos
    entrelaçados nas colunas.
    Aos olhos dos santos pasmados,
    para sempre jazem abertos
    vossos corações, – negros livros.

    Mas ai! fechastes vossas janelas,
    e os escaninhos de móveis e almas…

    Escrevestes cartas anônimas,
    apontastes vossos amigos,
    irmãos, compadres, pais e filhos…
    Queimastes papéis, enterrastes
    o ouro sonegado, fugistes
    para longe, com falsos nomes,
    e a vossa glória, nesta vida,
    foi só morrerdes escondidos,
    podres de pavor e remorsos!

    Vistes caídos os que matastes,
    em vis masmorras, forcas, degredos,
    indicados por vosso punho,
    por vossa língua peçonhenta,
    por vossa letra delatora…
    – só por serdes os pusilânimes,
    os da pusilânime estirpe,
    que atravessa a história do mundo
    em todas as datas e raças,
    como veia de sangue impuro
    queimando as puras primaveras,
    enfraquecendo o sonho humano
    quando as auroras desabrocham!

    Mas homens novos, multiplicados
    de hereditárias, mudas revoltas,
    bradam a todas as potências
    contra os vossos míseros ossos,
    para que fiqueis sempre estéreis,
    afundados no mar de chumbo
    da pavorosa inexistência.
    E vós mesmos o quereríeis,
    ó inevitáveis criminosos,
    para que, odiados os malditos,
    pudésseis ter esquecimento…

    Chega, porém, do profundo tempo,
    uma infinita voz de desgosto,
    e com o asco da decadência,
    entre o que seríeis e fostes,
    murmura imensa: “Os pusilânimes!”
    “Os pusilânimes!” repete
    o breve passante do mundo,
    quando conhece a vossa história!

    Em céus eternos palpita o luto
    por tudo quanto desperdiçastes…
    “Os pusilânimes!” – suspira

    Deus. E vós, no fundo da morte,
    sabeis que sois – os pusilânimes.
    E fogo nenhum vos extingue,
    para sempre vos recordardes!

    Ó vós, que não sabeis do Inferno,
    olhai, vinde vê-lo, o seu nome
    é só – pusilanimidade.

     

    Cecília Meireles
    Melhores Poemas
    Global Editora – edição 1997

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