Que desgraça é, amado meu, tu distante.
Pior tua distância nas noites de lua cheia.
Me torno irmã dos lobos, dos loucos.
Se ela, imensa assim,
tem poderes até sobre os oceanos
por que não teria poderes sobre mim?
Que tristeza!
Eu rodopiando em torno
dos meus próprios prazeres
eu e os lençóis,
e a lua ardendo nos bicos dos meus seios.

É inverno
quão difícil manter no lamaçal,
sob a torrente
acesas as labaredas da paixão.
Adentro as selvas de meu coração,
há cheiro de pântanos, sangue e orvalho.
Volto,
a blusa de algodão
a proteger achas de madeira seca,
achadas lá, lá se sabe onde.

Que má sorte,
em vez de tua lança pontiaguda
os meus dedos
receosos dos castigos do céu.

II

Ontem numa esquina,
te vi num bar,
açoitavam um homem.
Fui ao caixa e perguntei
quanto era o preço, a conta.
E o homem saiu solto, cambaleante,
noite a dentro.
Na minha loucura
vi nele tua embriaguez
que te visita vez em quando.

Dia a dia,
nenhum sinal teu.
A tua última carta,
já amarela,
jaz numa gaveta perdida
deste meu sepulcro infeliz.

Fêmea sou,
venho de minha avó
em lágrimas,
esperando meu avô que nunca vinha.

Eu fêmea
nas partes nem pelos tinha
a brasa viva na palma da mão
a vara, o chicote,
o pai ensinando a primeira lição:
primeiro, o varão.

III

Que infortúnio,
aqueles que me chamavam de louca,
gracejam de razão.
Nem mesmo a mais bravia serpente
resiste nas faces, nos olhos
a mil golpes de facão.
Ah! amado meu,
minha paixão
é mancha de sangue no asfalto
já descorando,
é uma fogueira de São João
já de manhã.

Tomo banho
vou ao espelho
sinto que minha sede
vai deixando-me bonita,
uma planta que utiliza
quase toda a seiva para o perfume,
as flores e as cores.
Meus cabelos molhados
e a brisa quente
se esbarra e se resvala em mim
fazendo o linho do meu vestido
ficar me roçando, me roçando.
Assim toda fêmea passeio
na passagem da tarde para a noite
e passa por mim um rapaz
e eu já meio louca,
sedenta de tanta tua ausência,
eu em brasa, em explosões solares,
chamo por ele e suplico:
por deus, com teus poderes de homem,
acalma-me!

IV

Ah! amado meu,
lágrima escorre no meu rosto,
mãe que sabe que o filho
na guerra morreu.
Inútil tentar qualquer coisa.
Já diante de mim
se encontra um caça-dotes,
já diante de mim
pergunta-me um sacerdote
se eu aceito alguém como meu legítimo dono:
como assim fez minha bisavó, eu digo que sim;
como assim fez minha avó, eu digo que sim;
como assim fez minha mãe, eu digo que sim.

A mesa está farta.
Há guizados e porcos assados.
O meu pai gargalha pelo dever cumprido.
Mas este senhor meu marido,
ele e a mãezinha dele,
jamais irão saber, porque sutilmente sugeri
que se chamasse Carlos,
o meu primeiro filho.

 

Os sonhos e os séculos
Adalberto Monteiro
Editora Círculo Azul Livros – edição 1991

Adalberto Monteiro, Jornalista e poeta. É da direção nacional do PCdoB. Presidente da Fundação Maurício Grabois. Editor da Revista Princípios. Publicou três livros de poemas: Os Sonhos e os Séculos(1991); Os Verbos do Amor &outros versos(1997) e As delícias do amargo & uma homenagem(2007).