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    Comunicação

    Fêmea sou

    Que desgraça é, amado meu, tu distante. Pior tua distância nas noites de lua cheia. Me torno irmã dos lobos, dos loucos. Se ela, imensa assim, tem poderes até sobre os oceanos por que não teria poderes sobre mim? Que tristeza! Eu rodopiando em torno dos meus próprios prazeres eu e os lençóis, e a […]

    POR: Adalberto Monteiro

    Que desgraça é, amado meu, tu distante.
    Pior tua distância nas noites de lua cheia.
    Me torno irmã dos lobos, dos loucos.
    Se ela, imensa assim,
    tem poderes até sobre os oceanos
    por que não teria poderes sobre mim?
    Que tristeza!
    Eu rodopiando em torno
    dos meus próprios prazeres
    eu e os lençóis,
    e a lua ardendo nos bicos dos meus seios.

    É inverno
    quão difícil manter no lamaçal,
    sob a torrente
    acesas as labaredas da paixão.
    Adentro as selvas de meu coração,
    há cheiro de pântanos, sangue e orvalho.
    Volto,
    a blusa de algodão
    a proteger achas de madeira seca,
    achadas lá, lá se sabe onde.

    Que má sorte,
    em vez de tua lança pontiaguda
    os meus dedos
    receosos dos castigos do céu.

    II

    Ontem numa esquina,
    te vi num bar,
    açoitavam um homem.
    Fui ao caixa e perguntei
    quanto era o preço, a conta.
    E o homem saiu solto, cambaleante,
    noite a dentro.
    Na minha loucura
    vi nele tua embriaguez
    que te visita vez em quando.

    Dia a dia,
    nenhum sinal teu.
    A tua última carta,
    já amarela,
    jaz numa gaveta perdida
    deste meu sepulcro infeliz.

    Fêmea sou,
    venho de minha avó
    em lágrimas,
    esperando meu avô que nunca vinha.

    Eu fêmea
    nas partes nem pelos tinha
    a brasa viva na palma da mão
    a vara, o chicote,
    o pai ensinando a primeira lição:
    primeiro, o varão.

    III

    Que infortúnio,
    aqueles que me chamavam de louca,
    gracejam de razão.
    Nem mesmo a mais bravia serpente
    resiste nas faces, nos olhos
    a mil golpes de facão.
    Ah! amado meu,
    minha paixão
    é mancha de sangue no asfalto
    já descorando,
    é uma fogueira de São João
    já de manhã.

    Tomo banho
    vou ao espelho
    sinto que minha sede
    vai deixando-me bonita,
    uma planta que utiliza
    quase toda a seiva para o perfume,
    as flores e as cores.
    Meus cabelos molhados
    e a brisa quente
    se esbarra e se resvala em mim
    fazendo o linho do meu vestido
    ficar me roçando, me roçando.
    Assim toda fêmea passeio
    na passagem da tarde para a noite
    e passa por mim um rapaz
    e eu já meio louca,
    sedenta de tanta tua ausência,
    eu em brasa, em explosões solares,
    chamo por ele e suplico:
    por deus, com teus poderes de homem,
    acalma-me!

    IV

    Ah! amado meu,
    lágrima escorre no meu rosto,
    mãe que sabe que o filho
    na guerra morreu.
    Inútil tentar qualquer coisa.
    Já diante de mim
    se encontra um caça-dotes,
    já diante de mim
    pergunta-me um sacerdote
    se eu aceito alguém como meu legítimo dono:
    como assim fez minha bisavó, eu digo que sim;
    como assim fez minha avó, eu digo que sim;
    como assim fez minha mãe, eu digo que sim.

    A mesa está farta.
    Há guizados e porcos assados.
    O meu pai gargalha pelo dever cumprido.
    Mas este senhor meu marido,
    ele e a mãezinha dele,
    jamais irão saber, porque sutilmente sugeri
    que se chamasse Carlos,
    o meu primeiro filho.

     

    Os sonhos e os séculos
    Adalberto Monteiro
    Editora Círculo Azul Livros – edição 1991

    Adalberto Monteiro, Jornalista e poeta. É da direção nacional do PCdoB. Presidente da Fundação Maurício Grabois. Editor da Revista Princípios. Publicou três livros de poemas: Os Sonhos e os Séculos(1991); Os Verbos do Amor &outros versos(1997) e As delícias do amargo & uma homenagem(2007).

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