Oito de novembro de 2007 ficará marcado como o dia em que a Nação brasileira tomou conhecimento de que a Petrobras fez descobertas petrolíferas na bacia de Santos, na camada de pré-sal, de dimensões tão grandes que poderiam mudar a história do petróleo no Brasil e a própria história de nosso país. Um problema logo se pôs: deliberar sobre a forma regulatória mais adequada para explorar e produzir óleo e gás nessa nova província, de modo a que essa grande riqueza pudesse servir à sociedade brasileira. Examinar alguns dos fatores mais importantes para a definição desse marco regulatório é o objeto principal deste artigo.

Uma história de descobertas e a meta da auto-suficiência

O que permitiu as grandes descobertas de petróleo na camada do pré-sal da bacia de Santos foi o acúmulo da experiência de 68 anos de prospecções e descobertas. Esse foi o período transcorrido desde o sucesso do primeiro poço perfurado no Brasil do qual jorrou petróleo – o de Lobato, na Bahia, em 1939. Daí para cá, a perseverança na busca do óleo, o crescente conhecimento geológico de nossas bacias sedimentares e o domínio cada vez maior de tecnologia avançada guiaram-nos por um caminho que passou por marcos importantes. Em 1963, foi o marco de Carmópolis, em Sergipe, quando localizamos a maior acumulação petrolífera brasileira em campo terrestre, após o que chegamos, em 1968, a Guaricema, nos mares sergipanos, com o primeiro poço marítimo brasileiro.

Em 1974 perfuramos Garoupa e descobrimos nossa maior província petrolífera, Campos, em águas frontais ao Rio de Janeiro. Em 1984 e em 1985, encontramos, na mesma bacia, em águas profundas, os campos gigantes de Albacora e de Marlim, este, o maior do país até agora. Durante esse período, de quase sete décadas, foi sendo fixada, no horizonte dos que faziam a indústria do petróleo no Brasil, em particular na cabeça dos nacionalistas, a meta da auto-suficiência na produção do petróleo. Uma meta então ousada. E, a 21 de abril de 2006, quando começou a produção na plataforma P50, no campo de Albacora Leste, na bacia de Campos, atingimos essa meta da auto-suficiência na produção de petróleo.

A descoberta do que, de modo simplificado, passou a ser conhecido como “Pré-sal” muda o patamar no qual projetávamos nossos objetivos. A meta da auto-suficiência poderá estar, em médio prazo, inteiramente superada, e o Brasil, hoje ocupando a 16a posição na relação dos detentores de reservas petrolíferas do mundo, com reservas da ordem de 14 bilhões de barris de óleo equivalente, poderá ir para a 9a posição, com reservas que podem variar de 26 a 84 bilhões de boe.

Descoberta de tamanho significado (a de Tupi está entre as três maiores do mundo nas últimas três décadas) justificou plenamente a decisão tomada por unanimidade do Conselho Nacional de Política Energética, CNPE, sob a direção do presidente Lula, em 08 de novembro de 2007, de retirar 41 blocos da região do “Pré-sal” da 9a Rodada de Licitações da Agência Nacional do Petróleo, ANP, que seria realizada daí a 19 dias (1). Na continuidade, o Decreto presidencial de 17 de julho de 2008 criou uma Comissão Interministerial com oito participantes para formular proposta ao presidente da República sobre regras para explorar e produzir o petróleo do “Pré-sal” (2).

A Comissão ainda não finalizou seus trabalhos nem chegou a conclusões, em que pese seu intenso funcionamento. Nenhum de seus membros está autorizado a fazer conjecturas sobre quais as conclusões a que a Comissão chegará, não só porque isto poderia alimentar especulações estéreis, como também porque todas as conclusões da Comissão terão de ser submetidas à prévia aprovação do presidente da República.

Contudo, em setores ligados à indústria do petróleo, no âmbito acadêmico, no Parlamento, nos meios nacionalistas e de articulistas e jornalistas afeitos ao tema, diferentes idéias, problemas e sugestões têm sido levantados sobre o assunto. É sobre alguns desses problemas, idéias e sugestões – já publicamente sendo examinados –, que se seguem os comentários adiante.

O baixo risco exploratório do “Pré-sal”

A exploração ou pesquisa do petróleo é o conjunto de atividades que objetiva localizar jazidas e, através da perfuração, descobrir o petróleo. Na indústria petrolífera, é uma atividade de risco – frequentemente de alto risco –, medido pelo índice de sucesso exploratório, que indica o número de poços exploratórios que encontraram petróleo ou gás relativamente ao número de poços exploratórios perfurados. Esse índice, em termos mundiais, é de 25%, ou seja, a cada 100 poços exploratórios perfurados 25 são bem sucedidos, 75 perdidos. Em 2002, esse índice de sucesso exploratório da Petrobras era 22%. Passou a 55% em 2002, bem acima da média mundial.

A extensão do “Pré-sal” foi estimada pelo CNPE (vide Resolução 6) como se estendendo do sul do Espírito Santo ao norte de Santa Catarina, em uma área sumariamente calculada como tendo 800 km de comprimento por 200 km de largura. Na parte central dessa área, chamada pela Petrobras de “pólo”, ou “cluster” do “Pré-sal”, foram feitas nove perfurações, oito poços pioneiros e um de extensão. O primeiro descobriu Parati, em 2005; o segundo, Tupi, em 2006; o terceiro, Carioca, em 2007; o quarto, Caramba, também em 2007; e mais quatro perfurações foram feitas em 2008, que descobriram Júpiter, Bem-te-vi, Guará e Iara. Ou seja, todos os poços foram bem sucedidos.

Com base nesse desempenho, há quem diga que no “Pré-sal” o risco exploratório é zero, ou por outra, que o índice de sucesso exploratório pode ser de 100%. Como estamos nos referindo apenas à região central do “Pré-sal”, essas conclusões são precipitadas, não só porque a área em questão é restrita, face ao conjunto do “Pré-sal”, como também porque é pequeno o número de perfurações até agora feitas. A própria Petrobras já perfurou, desde 1990, algumas dezenas de poços, na camada de pré-sal da bacia de Campos, sem sucesso. De qualquer maneira, uma conclusão se impõe: em áreas do “Pré-sal” é baixo o risco exploratório e são elevadas as capacidades das jazidas existentes.

A partilha da produção

Há três tipos de contratos mais usados no mundo para exploração e produção de petróleo: o de concessão o de partilha da produção e o de serviços. No de concessão, o óleo, produzido por conta e risco do concessionário, passa à sua propriedade na medida em que ele assuma os compromissos de pagar, pelo tempo do contrato, parcelas da produção ao governo. No de partilha, a propriedade do óleo produzido é do Estado, que remunera os concessionários com a “partilha” acertada, pagando em óleo ou em espécie. No de serviços, o Estado, proprietário de tudo produzido, paga ao prestador dos serviços o valor acertado.

Não existe um critério rígido para que um determinado tipo de contrato prevaleça obrigatoriamente em um país. Afora o contrato de serviço – hoje empregado muito limitadamente –, os outros dois tipos são usados, com muitas variações, pelos diferentes países, independente de terem alto risco ou não, de serem exportadores ou não.

No mundo de hoje, o tipo de contrato mais amplamente usado é o de concessão, aquele em que o Estado cobra do concessionário não só uma taxa fixa sobre a produção (o royaltie), como também uma taxa variável, com alíquotas que aumentam com o crescimento da produção (no caso do Brasil, as participações especiais). A definição adequada dessas alíquotas, nos contratos de concessão, e das partes que o Estado deve pagar ao concessionário nos contratos de partilha, pode fazer com que os mesmos resultados financeiros sejam assegurados ao Estado, seja em um tipo de contrato ou em outro.

Entretanto, apesar de tudo isso, os países que têm pouco petróleo usam mais os contratos de concessão e os que têm mais preferem os de partilha da produção. Ademais, é sob contratos de partilha da produção que os Estados nacionais controlam eficazmente o ritmo da produção de seus campos.

No caso do “Pré-sal” brasileiro há outro fator a ser considerado: o presidente da República tem proclamado e orientado a comissão que está trabalhando sobre o assunto no sentido de que deseja, com base nas rendas do “Pré-sal”, combater a pobreza no Brasil, investir fortemente na educação dos brasileiros etc. Para que tal seja assegurado, há a necessidade de uma definição mais estável de que o Estado terá acesso seguro à renda petrolífera elevada que o “Pré-sal” pode propiciar. E o caminho de reeditar decretos com alíquotas acrescidas para garantir participações governamentais elevadas traz rápidos resultados, mas é instável. Qualquer novo governo, não comprometido com esse objetivo social, pode editar novo decreto, reduzindo alíquotas. E as participações governamentais elevadas poderão ser rebaixadas.

Seja porque o contrato mais apropriado para regiões de baixo risco exploratório é o de partilha da produção, seja porque este é o contrato que permite controle no ritmo de produção do óleo, seja por ser o sistema que permite Cronologia do “Pré-sal”

8 de novembro de 2007
O Conselho Nacional de Política Energética, CNPE, toma conhecimento da descoberta de Tupi, feita pela Petrobras, com acumulações de 5 a 8 bilhões de boe. O CNPE delibera realizar a 9ª Rodada de Licitações da ANP, a ser feita dali a 19 dias, excluindo da relação dos blocos a serem licitados, 41 situados nas proximidades da grande descoberta.

9 de novembro de 2007
O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, chama o colega Luiz Inácio Lula da Silva de “magnata do petróleo” e propõe que trabalhem para vender petróleo barato aos países mais pobres.

10 de novembro de 2007
O presidente Lula admite que o Brasil pode vir a entrar na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a partir de onde vai trabalhar para reduzir o preço da commodity.

13 de novembro de 2007
O diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Haroldo Lima, declara que o governo tem intenção de mudar o marco regulatório por meio de alterações na lei do petróleo.

23 de novembro de 2007
O diretor de Exploração e Produção da Petrobras, Guilherme Estrella, anuncia o campo de Jubarte, em águas rasas, na bacia de Campos, como o primeiro a produzir no pré-sal.

20 de dezembro de 2007
A Petrobras anuncia nova descoberta de petróleo leve na camada pré-sal (Caramba), a 280 km da costa paulista, em parceria com a Galp Energia (portuguesa).

21 de janeiro de 2008
Outra descoberta de grande jazida é anunciada: Júpiter, com volumosa quantidade de gás natural.

28 de março de 2008
Nas páginas vermelhas da revista Isto É, Independente, o diretor-geral da ANP Haroldo Lima “(…) sugere a adoção da partilha de produção, em que todo o óleo produzido passa a ser propriedade do Estado e as empresas ganham um percentual em dinheiro”. Expressa, pela primeira vez, que: “(…) seria necessário criar uma nova estatal do petróleo, totalmente estatal”.

14 de abril de 2008
6 de junho de 2008
O ministro Edison Lobão fala na possibilidade de uma nova estatal para gerir futuras explorações no Pré-sal.

15 de junho de 2008
O presidente Lula fala em criar um fundo com o dinheiro do petróleo do Pré-sal para investir na educação do povo brasileiro.

27 de junho de 2008
A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, sinaliza com mudanças no recolhimento e destinação das rendas do petróleo do Pré-sal, a?rmando que, com o Pré-sal “mudou-se o patamar”.

17 de julho de 2008
O presidente Lula cria comissão interministerial para estudar as regras para exploração e produção das reservas de petróleo da camada pré-sal. No ato de instalação da Comissão, no Palácio do Planalto, ele diz que o dinheiro do petróleo do Pré-sal deve ser para “acabar com a pobreza no Brasil”.

7 de agosto de 2008
A Petrobras volta a anunciar óleo leve em Iara, próximo a Tupi, sem estimar reservas.

12 de agosto de 2008
O presidente Lula pede à União Nacional dos Estudantes (UNE) que se movimente no sentido de garantir para o povo os frutos do petróleo do Pré-sal
e dá indicações de apoio à criação de nova estatal, 100% estatal.

20 de agosto de 2008
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, a?rma que o governo quer deixar parte dos recursos vindos do Pré-sal no exterior para evitar in?ação e valorização excessiva do real. E, ainda, que outra parte dos recursos será direcionada a um fundo soberano.

2 de setembro de 2008
Foi extraído o primeiro óleo da camada pré-sal brasileira, em águas rasas, no campo de Jubarte, na bacia do Espírito Santo, na presença do presidente da República, do governador do Espírito Santo, de ministros, diretores da ANP e da Petrobras.

7 de setembro de 2008
O presidente Lula em pronunciamento à Nação associa a descoberta do Pré-sal a uma nova independência do Brasil. controle no ritmo de produção de óleo, seja por ser o sistema que permite sustentar, de forma mais estável, políticas públicas, não sujeitas a mudanças fáceis em decorrência de variações políticas; por tudo isso, uma das hipóteses que tem sido levantada nas discussões, públicas ou reservadas, sobre o “Pré-sal” é a da implantação do sistema de partilha da produção para regular a exploração e produção no “Pré-sal” brasileiro e em regiões semelhantes.

Sistema misto e empresa cem por cento estatal

A hipótese da implantação do contrato de partilha da produção em blocos do “Pré-sal” e eventualmente em semelhantes traz consequências institucionais. Primeira: estaríamos trabalhando, no conjunto do país, com um sistema misto, onde a partilha prevaleceria para blocos do “Pré-sal” e assemelhados e as atuais concessões vigorariam para o restante do território. Considerando a vasta extensão territorial de nosso país, esta seria uma alternativa compreensível. Mesmo antes da descoberta do “Pré-sal”, essa já era uma hipótese aventada pela ANP, para distinguir blocos de “alto potencial” dos blocos de “nova fronteira”. Mas, há mais.

Nos contratos de partilha de produção, o concessionário de um determinado bloco, ao produzir o petróleo ou gás, transfere ao Estado o produto retirado do solo que, pelos termos contratuais, pertence ao Estado. Este trata de passar ao concessionário a parte a este garantida pela “partilha” acordada. Só que, quem recebe o produto e gerencia os negócios em nome do Estado deve ser uma entidade, ou empresa, efetivamente estatal, já que não seria possível, por exemplo, uma empresa representar interesses privados, mesmo que, em parte, pudesse assumir, em nome do Estado, essas prerrogativas.

Vale aqui observar a experiência por que passou a Noruega, em questão semelhante. Esse país da península escandinava tinha toda sua indústria petrolífera em mãos privadas, aí pela década de 1960. Os resultados eram pífios. No início da década de 1970, o governo criou a Statoil, empresa 100% estatal. Em 1985, ante o grande crescimento da Statoil, a Noruega decidiu dividi-la ao meio: a primeira metade ficou com a própria Statoil e a segunda passou a integrar o patrimônio estatal, através dos SDFI (Interesses Financeiros Diretos do Estado). Ainda por decisão governamental, a Statoil assumiu a gerência dos SDFI.

Eis que em 2001, a Statoil foi parcialmente privatizada. Embora continuasse sob controle estatal, como está até hoje, esse controle ficou reduzido a 63% das ações da empresa. A partir de então, já que passava a representar também interesses privados, a Statoil deixou de ter condições de continuar gerindo os SDFI, pois já não era uma empresa genuinamente estatal. O governo criou, então, para gerir os SDFI, uma outra empresa 100% estatal: a Petoro.

A semelhança entre essa situação e o caso brasileiro situa-se em que a nossa Petrobras, por decisões do governo Fernando Henrique, passou a ter cerca de 62% de suas ações em mãos privadas, boa parte estrangeira, embora seu controle fosse estatal. Fica prejudicada a possibilidade de a Petrobras, por essa razão, gerenciar os interesses da União na região do “Pré-sal”. Sob o regime da partilha da produção, quem recebe o produto – que é propriedade do Estado, para gerenciá-lo em nome desse mesmo Estado – deve ser uma empresa 100% estatal. Daí estar em cogitação a criação de tal empresa, que não seria uma petroleira, nem operadora. Paralelamente, não há por que não se pensar, com os recursos potenciais do “Pré-sal”, em buscar mecanismos para o aumento da participação acionária do Estado na Petrobrás.

Existe grande expectativa quanto às conclusões a que chegará a comissão interministerial criada pelo presidente Lula, que serão encaminhadas às considerações e decisões finais do próprio presidente. Se idéias que já dominam discussões públicas, como as aqui comentadas, prosperarem, então será necessário alterar a legislação existente para dar base legal às hipóteses levantadas. Seguramente um esforço deverá ser feito para que, enquanto tramitam no Congresso eventuais modificações legais, sejam encontrados mecanismos de transição, de tal sorte que o processo de exploração e de produção nas camadas de pré-sal não sofra solução de continuidade.

Haroldo Lima é diretor-geral da ANP

Notas
(1) Excepcionalmente estiveram nessa reunião oito ministros de Estado e mais os presidentes do BNDES, do Operador Nacional do Sistema, da Empresa de Pesquisa Energética, da Petrobras e o diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo. A proposta de retirar os 41 blocos da 9a Rodada foi feita pelo diretor-geral da ANP e, imediatamente apoiada pelo presidente Lula, foi unanimemente aprovada pelo CNPE.
(2) Participam dessa comissão os ministros de Minas e Energia, Edison Lobão, da Casa Civil, Dilma Rossef, do Planejamento, Paulo Bernardo, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge, e o presidente Luciano Coutinho, do BNDES, Sérgio Gabrielli, da Petrobras e o diretor-geral Haroldo Lima, da ANP.

EDIÇÃO 98, OUT/NOV, 2008, PÁGINAS 51, 52, 53, 54, 55