De 1964 a 1985 o Brasil viveu sob uma ditadura militar. Em dezembro de 1968 foi aprovado o Ato Institucional nº 5, trazendo uma série de medidas autoritárias que abriram espaço para o reforço do aparelho repressivo do país. Nesse contexto, em julho de 1969, foi criada, pelo Exército brasileiro, a Operação Bandeirante, conhecida como Oban, com a ajuda financeira de empresários paulistas e representantes de empresas multinacionais. Seu objetivo consistia em destruir, ou pelo menos neutralizar, as organizações de esquerda, especialmente aquelas que efetuavam uma oposição armada à ditadura militar. Esse novo órgão, com nome de operação, trazia duas grandes novidades. A primeira era conjugar atividades de segurança ou repressão com operações de informação. A segunda consistia em reunir agentes das diversas forças policiais (polícia militar, polícia civil, Delegacia de Ordem Política e Social – DOPS) e das Forças Armadas.

O novo órgão recebeu em suas fileiras um contingente importante de policiais provenientes da Divisão Estadual de Investigações Criminais (DEIC), célebre pela crueldade de seus métodos de interrogatório de presos comuns. A experiência investigativa da polícia, que contava com todo um saber acumulado em técnicas de tortura, foi absorvida e incorporada à lógica militar de repressão interna.

Após um ano de intensas atividades, a Operação Bandeirante foi considerada um grande sucesso por seus resultados na repressão às organizações da esquerda armada. No segundo semestre de 1970 a Oban foi institucionalizada e expandida para as principais capitais do país através da criação do sistema DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) (1). Ao CODI cabiam a coordenação e o planejamento da repressão política e ao DOI efetuar as operações propriamente ditas.

O DOI, cuja sigla evoca propositalmente dor, funcionava essencialmente sobre um tripé: a captura ou sequestro de suspeitos de atividades políticas de esquerda (efetuada pela Equipe de Busca), o interrogatório sob tortura (realizado pela Equipe de Interrogatório Preliminar) e a análise de informações contidas nos documentos apreendidos aos militantes ou nos interrogatórios (feita pela Equipe de Análise de Informações). Minha pesquisa baseou-se no estudo desses interrogatórios preliminares.

Por que preliminares? Porque eram os realizados numa fase anterior à instauração do Inquérito Policial Militar. (É preciso explicar que nesse período os chamados delitos políticos eram punidos não pela Justiça Civil, mas pela Justiça Militar, por serem enquadrados como crimes que atentavam contra a Segurança Nacional. Por isso, seu julgamento era realizado por uma instância particular, o Tribunal Militar, anteriormente constituído para lidar apenas com crimes cometidos por militares.)

Então o processo se dava da seguinte maneira: um suspeito de realizar atividades políticas de esquerda ou de oposição ao governo era preso – sem mandado judicial –, interrogado sob tortura por vários dias, semanas ou meses, até que seus depoimentos fossem considerados satisfatórios, e depois enviado ao DOPS, juntamente com a transcrição de seus depoimentos. Ao DOPS cabia realizar as tarefas cartoriais. Seus agentes faziam um novo interrogatório – oficial, mas baseado inteiramente nos interrogatórios realizados pelo DOI – e abriam o inquérito, posteriormente enviado à Justiça Militar. Caso as declarações prestadas no DOPS não coincidissem com os interrogatórios do DOI, o preso político era reenviado para o DOI para ser novamente inquirido.

Não há, hoje em dia, nenhuma documentação da Oban ou do DOI disponível para pesquisa, a não ser aquela encontrada no arquivo do DOPS. A documentação com a qual trabalhei está contida no Dossiê 50-Z-9, parte da Série Dossiês, que integra o arquivo do DOPS de São Paulo, conservada pelo Arquivo do Estado. Para quem se interessa por esse tema, essa documentação está totalmente aberta à pesquisa.

Os interrogatórios preliminares obedecem a um modelo determinado. Iniciam-se por um cabeçalho onde constam o nome do interrogado, seguido de seus codinomes, o nome da equipe de interrogatório, a data e o horário de início e de fim da sessão. São escritos dentro de uma fórmula específica, sempre na terceira pessoa “disse que”, “acrescenta que”, de modo que a fala do interrogado fica em permanente suspeição, como num boletim de ocorrência. As perguntas não são transcritas, portanto, o que se lê parece ser a transcrição fiel da fala do interrogado, num monólogo sem interrupções. Uma leitura mais atenta, entretanto, permite perceber uma série de operações realizadas no ato de transcrição do interrogatório que revelam como os agentes do órgão incitavam a fala do depoente numa ou noutra direção, e como inscreviam esse depoimento dentro de uma determinada moldura discursiva. Vejamos algumas delas.

Muitas vezes as declarações do depoente são formatadas em frases feitas. Encontramos uma mesma frase com versões muito próximas no depoimento de vários militantes de esquerda. Como, por exemplo: “declara que nunca foi preso e nem processado e nunca se envolveu em política de qualquer espécie” ou “declara que nunca foi preso nem processado por crimes de quaisquer natureza”. Em outros casos, a resposta é transcrita a partir da pergunta, como se esta fizesse parte da fala do depoente, exemplo: “declara que nunca tomou parte, promoveu ou aliciou qualquer elemento a assistir reuniões de cunho subversivo”. Nota-se também que algumas passagens são resumidas. Ou, com maior freqüência, dados complementares são adicionados às declarações. Assim, onde havia apenas um codinome, passava a haver o nome completo do militante citado, onde uma reunião era mencionada acrescia-se a data precisa de sua realização.

Entre os mecanismos de apropriação da fala do interrogado, tem destaque a sobreposição de termos típicos do jargão da polícia sobre termos empregados preferencialmente pelos militantes de esquerda. Assim, o militante transforma-se em “subversivo”, o guerrilheiro em “terrorista”, o companheiro(a) em “amásio”, o órgão repressivo em “órgão de segurança”. As ações também se transfiguram: recrutar para a organização passa a ser “aliciar”, conscientizar vira “doutrinar”, expropriar torna-se “assaltar”. Muitas passagens mesclam expressões dos dois universos, causando estranheza ao leitor ao deparar-se com descrições, por parte de presos políticos, de processos de “aliciamentos” de “famigerados subversivos”.

Outro elemento significativo dessa apropriação pode ser encontrado nas situações em que o depoente parece aceitar a moldura discursiva dos interrogadores, respondendo às questões em conformidade com ela. Percebe-se em alguns depoimentos a intenção do depoente no sentido de se conformar a certo padrão de raciocínio dos interrogadores, aceitando seu enquadramento – seja como estratégia ou por estar realmente arrependido. Declarações como “reconhece ter sido um imbecil por ter guardado o material sem saber do que se tratava”, ou “que foi totalmente iludido pelo amigo”, ou ainda “que foi bom o declarante ter sido preso agora, porque se não poderia ter se comprometido mais com o movimento” ilustram, como na transcrição dos interrogatórios, as perspectivas do depoente e de seus interrogadores podem se confundir.

Algumas vezes observações ou deduções dos interrogadores aparecem nos depoimentos em meio à fala dos interrogados, sem que nenhuma marca gráfica ou gramatical diferencie as vozes ali presentes, como se entre a fala do depoente e a do interrogador as fronteiras fossem permeáveis. Ou como se ao interrogador que “fala” dentro do depoimento fosse permitida uma ampla liberdade de acesso e ingerência no discurso do interrogado.

A julgar pelas declarações de alguns dos militares que estiveram no comando do DOI, as primeiras horas de um interrogatório eram decisivas para o trabalho dos órgãos repressivos, ao passo que, findas as primeiras 24 ou 48 horas, o prisioneiro deixaria de ter uma importância estratégica, para ocupar um lugar marginal. A leitura dos depoimentos, no entanto, conduz a levantar certa suspeição sobre esse argumento. Primeiro porque havia uma série de razões para que nem sempre se conseguissem as tão desejadas informações logo após a captura; depois, pelo fato de os interrogatórios seguirem por dias, semanas, às vezes meses, o que não teria sentido caso a urgência fosse o único elemento válido no processo de extração de informações.

Não se pode negar que muitas das informações que permitiram chegar a outros militantes de esquerda e a identificar seus locais de reunião e residência foram retiradas nas primeiras horas, quando o depoente estava ainda sob o impacto da captura violenta e da tortura brutal que caracterizavam o modo de agir do DOI. Entretanto, muitos militantes resistiam nas primeiras horas, seguindo as orientações das organizações de esquerda no sentido de permitir um prazo mínimo para a transferência dos locais de reunião, para a mudança de residências e a desarticulação de ações planejadas.

Era mais difícil, porém, manter a postura no tempo. No médio e longo prazos, uma vez que os órgãos repressivos iam acumulando sólidos conhecimentos sobre as organizações de esquerda e seus membros, ficava mais difícil subtrair-se às questões mais precisas, às sessões mais bem preparadas. Na realidade, o preso político continuava a ser uma fonte importante de informações. Isso ocorria especialmente no que tange aos dados que dificilmente seriam alterados em um prazo tão curto, como a estrutura da organização ou a função de dado militante, assim como àqueles inalteráveis: a descrição de ações já efetuadas, a implicação política de um simpatizante ou o montante de dinheiro roubado de um banco.

Os interrogadores contavam, no exercício de sua profissão, com uma variada gama de métodos e de instrumentos de tortura. Para que a tortura pudesse ser utilizada como método recorrente, seria necessário que o seu alvo fosse investido de uma considerável dose de desumanização. No caso de indivíduos oriundos das classes sociais mais desfavorecidas, o processo de construção de um olhar que não reconhece no outro um igual remonta, no Brasil, a uma longa tradição de exclusão social, cujas raízes podem ser encontradas na instituição da escravidão, assim como no extermínio dos povos indígenas. Não por acaso grande parte das vítimas de torturas e execuções pela polícia, hoje, é de mulatos e negros. Quando se trata de indivíduos oriundos da classe média – estudantes, profissionais liberais, religiosos, militares –, a marginalização se dá pelo viés ideológico e pela construção social do sujeito “subversivo” e “terrorista”, tido como inimigo da nação, da família e dos valores cristãos.

A periculosidade atribuída a esse sujeito parece ser a chave para compreendermos o que derrubou a imunidade da classe média à tortura. A aliança de classes, nesse caso, estaria rompida pelo fato de indivíduos oriundos de condições sociais privilegiadas voltarem-se contra o que seriam seus próprios interesses de classe. Nessas condições, o acordo tácito que envolvia os setores médios e a elite da sociedade brasileira – no sentido de unir esforços para promover a contenção social – seria desfeito, uma vez que parcela dos setores médios dispunha-se a combater ao lado dos mais pobres.

Ao mesmo tempo em que o combate às organizações da esquerda era concebido em termos de guerra, os adversários eram excluídos das regras internacionalmente instituídas para regular esse tipo de conflito. Desse modo, a Convenção de Genebra, criada para salvaguardar os direitos dos soldados feridos e dos prisioneiros de guerra, não era considerada aplicável no tocante ao tratamento dos presos políticos, nos quais a tortura era sistematicamente aplicada.

Chama a atenção o fato de que, teoricamente empregada como meio de obrigar o interrogado a fornecer informações, a tortura provocasse estados físicos e psicológicos que impediam a própria transmissão delas – desmaios, atordoamentos, línguas inchadas. [Citamos dois casos: 1. rapaz amordaçado porque seus gritos estavam “causando espécie na vizinhança”; 2. ameaça proferida contra uma militante: se ela não confirmasse no DOPS o que dissera no DOI, seria torturada de modo a não poder falar nada, para não contradizer seus depoimentos anteriores.]

A tortura também constituía a peça-chave da teatralização do poder dos interrogadores, tanto nos ritos que acompanhavam a chegada ao órgão – despir os presos políticos, encapuzá-los, mostrar o estado físico degradado de companheiros já interrogados – quanto naqueles que antecediam o interrogatório preliminar – o barulho das chaves abrindo as celas, o nome do preso político a ser inquirido proferido em altos brados. Essa teatralização não era mero efeito de um cenário de extrema violência, mas o resultado de uma demonstração desejada da onipotência dos agentes repressivos sobre os militantes políticos.

Para além das vítimas diretas dos suplícios, os efeitos dessa violência dirigiam-se ao conjunto da sociedade, numa outra função da tortura, que se agrega à de extração de informações: a dissuasão. A tortura serviu, portanto, de instrumento para afastar potenciais opositores do governo da atividade política.

Por ser considerado um meio rápido e eficaz de investigação, o interrogatório sob tortura foi adotado como método privilegiado de apuração de delitos políticos. Essa escolha não representava uma inovação, inscrevendo-se na tradição inquisitorial das práticas policiais brasileiras e apoiando-se num paradigma investigativo baseado na confissão dos suspeitos e no tratamento de informações fornecidas sob coação física e moral. Tal técnica produz resultados rápidos, com baixo custo financeiro, ainda que, no longo prazo, apresente um elevadíssimo custo moral e político. O paradigma investigativo que adota a tortura como técnica de extorsão de informações cria, porém, um paradoxo que está na raiz mesmo de sua natureza: ao mesmo tempo em que apura fatos cria versões fantasiosas, pois a coleta de informações, nesse contexto, é indissociável da submissão do outro.

Eis outra das funções essenciais da tortura: a sujeição do suspeito. Antes de mais nada, pela suprema desonra que significa entregar companheiros e familiares, contribuindo – ainda que involuntariamente – a destruir o grupo ao qual pertence; pela derrota infligida pelo corpo à consciência, tornando aquele que fala, em certa medida, uma vítima de suas próprias “fraquezas”. O aspecto perverso da situação reside no fato de o ônus da suposta “delação” recair sobre o torturado – por não ter “aguentado” –, embora seja resultado dos meios brutais empregados pelo interrogador. A lógica estabelecida pelo torturador o exime de toda e qualquer responsabilidade: se o interrogado não fala, merece apanhar para que revele o que sabe; se fornece as informações, é um traidor de sua própria causa.

A sujeição se dá igualmente pela inserção da fala do militante dentro de uma ordem do discurso que deforma o sentido simbólico do que é dito – de resistência heróica à ditadura militar, o ato oposicionista transfigura-se em crime terrorista. É o que explica a insistência, por parte dos interrogadores, da confirmação de fatos já conhecidos por outros meios. Nesse caso, já não era a informação em si que importava, mas a admissão da culpa, fosse por um crime real ou injustamente imputado.

A questão que se coloca quando se emprega a tortura – para além de todas as objeções de ordem moral – é que não há linha demarcatória identificável entre a recusa a fornecer uma informação e a impossibilidade real de fazê-lo. Desse modo, adentramos no campo do castigo extralegal, que antecipa uma possível pena. A função de castigo elucida o fato de a transmissão de informações ser dificultada ou inviabilizada pelas próprias sevícias, bem como explica o porquê de alguns presos políticos declararem ter sido torturados, em alguns momentos, sem que nada lhes fosse perguntado.

A possibilidade de absolvição, no âmbito judiciário, de indivíduos considerados culpados pelos órgãos repressivos – a partir do que ouviam dos interrogados – alimenta a hipótese de que havia certa urgência punitiva, que ajudaria a “justificar” o emprego da tortura.

Os depoimentos dos presos políticos eram analisados, interpretados, cotejados entre si com o propósito de formar um quadro geral da atuação dos diversos grupos de esquerda no país. Dentro da engrenagem repressiva, o DOI tinha por função não apenas colher dados sobre o funcionamento e o modus operandi dessas organizações, mas também decantar os depoimentos de todas as possíveis inverdades ou meias-verdades, detectar as omissões, esclarecer os pontos contraditórios, além de completar os dados com detalhes obtidos no interrogatório de outros presos políticos.

De fato, a leitura dos depoimentos revela que muitos militantes lançaram-mão de uma série de astúcias para ocultar, encobrir ou embaralhar informações. Evidentemente, as estratégias de cada indivíduo diante da violência dos interrogadores e das questões por eles formuladas variavam bastante, conforme a conjuntura e o grau de resistência física e psicológica do preso político. Para ver-se livre das sevícias, era preciso convencer o inquiridor de que não havia mais nada a extrair, missão de êxito pouco provável, diante de profissionais cujo ofício alimentava-se de uma suspeição genérica e tenaz.

Treinados para obter confissões, os interrogadores encolerizavam-se quando não alcançavam seu intento. Nesses casos, acrescentavam aos interrogatórios observações nas quais qualificavam os depoentes como “frios”, “cínicos” e “calculistas”. Os comentários dos interrogadores ante a recusa dos interrogados em colaborar expõem a única fragilidade do torturador diante de sua vítima, o fato de esta ter um trunfo – a informação. Caso esta não seja por ele apropriada, os esforços do interrogador são inutilizados, a violência da tortura transforma-se em pura crueldade e, numa conjuntura de forças que deveria ser-lhe extremamente favorável, sua derrota é suprema. Diversas estratégias eram empregadas pelos depoentes: ater-se a repetir o que já era sabido, alegar perda de memória, passar informações de cunho estritamente pessoal, fornecer dados vagos e imprecisos, conduzir a pistas falsas, mencionar apenas militantes que se encontravam fora do alcance dos órgãos de repressão, inventar histórias, personagens e encontros fictícios. O preço a pagar era alto: uma vez detectada a mentira, a violência contra o preso político era redobrada.

Algumas das informações cuja veracidade os interrogadores procuravam verificar são, aparentemente, pouco significativas para o conhecimento da organização ou seu combate. O cuidado com esse tipo de detalhe, mais do que a obedecer a um critério coerente de importância, parece dizer respeito a uma necessidade de não permitir que nada ficasse obscuro. A preocupação em esclarecer minúcias indica como é a coerência do discurso que está em jogo, e não o delito em si.

Nas investigações, nem sempre se tratava de buscar as reais circunstâncias de um delito. As inúmeras denúncias posteriores de presos políticos descrevendo o modo pelo qual foram obrigados a assinar depoimentos parcial ou totalmente inverídicos remetem para a construção, a partir dos depoimentos e deduções dos analistas de informação, de determinada versão dos fatos a ser confirmada pelo interrogado.

A acareação era solicitada com frequência pelos interrogadores para dirimir dúvidas. Tratava-se do recurso empregado quando, a despeito das torturas, as respostas dadas não satisfaziam os inquiridores. Além do confronto de informações distintas – com a possibilidade de observar a reação de um militante diante do outro –, a acareação tinha o propósito suplementar de desestruturação do interrogado diante da fraqueza do outro. Além disso, era mais difícil sustentar uma versão diante de um companheiro, porque se sabia que um dos dois seria torturado até que as histórias convergissem.

Ao mesmo tempo em que buscava obter uma confissão como prova do delito político, o interrogatório preliminar servia como locus por excelência da afirmação do poder da ditadura militar. O interrogatório preliminar servia, portanto, de maneira indissociável, como instrumento de obtenção de informações e como meio de submissão, enquadramento e punição extralegal dos militantes de esquerda.

O desmonte do DOI e do aparelho repressivo como um todo foi realizado de forma gradual e ambígua, de maneira a preservar a impunidade daqueles que cometeram crimes em nome da segurança nacional. Assim como sua instituição dera-se através de uma diretriz interna do Exército, sua extinção foi realizada, sem grandes alardes, por meio de uma instrução administrativa.

Esse processo, embora tenha desarticulado o núcleo da repressão política, possibilitou a sobrevivência de muitas das práticas repressivas criadas ou consolidadas durante a ditadura militar, que passaram a ser disseminadas pela sociedade, tendo como alvo preferencial os membros dos setores desfavorecidos. A volta à democracia política se fez, portanto, sob o signo do enorme abismo social cavado durante os anos do “milagre econômico” e da contenção social das camadas populares através da repressão policial.

O sistema DOI-CODI deixaria uma profunda marca na sociedade brasileira, refletida na atuação da polícia e numa mentalidade que está longe de ser superada. Do ponto de vista operacional, ressaltaria uma tradição já antiga na polícia brasileira de sobrevalorizar o interrogatório como procedimento e a confissão – extorquida por meios coercitivos – como evidência, em detrimento de outras técnicas investigativas e categorias de prova.

Ao criar e reestruturar órgãos de informação e repressão o governo militar fez mais do que instrumentalizar um saber disperso nas delegacias de polícia espalhadas pelo país. Ele organizou, promoveu, chancelou e premiou o uso sistemático da tortura. O processo de transição para a democracia, ao manter a impunidade dos torturadores e de seus facilitadores – nos termos da socióloga norte-americana Martha Huggins – e ao não enfrentar o grande problema da concentração de renda no país, realizou-se de maneira superficial, assentando-se essencialmente na democracia formal. É preciso ir além, muito além!

Mariana Joffily é doutora em história social (USP-SP)

Este texto é uma versão reduzida da tese de doutorado intitulada No centro da engrenagem: os interrogatórios da Operação Bandeirante e do DOI de São Paulo (1969-1975) defendida no departamento de História Social da USP, em fevereiro de 2008. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-03062008-152541/

Notas
(1) São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Brasília (1970) Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Belém, Fortaleza (1971) e Porto Alegre (1974).

EDIÇÃO 99, DEZ/JAN, 2008-2009, PÁGINAS 76, 77, 78, 79, 80, 81