Princípios: Qual a opinião do Partido Comunista sobre a eleição de Barack Obama como 44o presidente dos EUA?

Della Piana: Acreditamos que ele tenha dado apenas a partida a um processo. É um começo em muitos aspectos: trata-se do primeiro presidente negro em um país estruturado com base na escravidão. Ele trabalhará na Casa Branca, em Washington, que foi construída por negros. É um enorme impacto cultural para nosso país e isso também reflete uma transformação na consciência do povo norte-americano.
Nesta campanha procuramos lutar contra o racismo, e a despeito do que a mídia divulgou – que os trabalhadores brancos não votariam em Obama –, milhões e milhões de trabalhadores brancos votaram nele porque acreditaram que ele representa uma mudança e isso significa uma ruptura com os oito anos de Bush e sua política.
A nosso ver, outro fator histórico, sem precedentes, foi a participação do movimento sindical. Não há precedentes de ter havido campanha eleitoral no seio do movimento sindical. Quinhentas mil pessoas estiveram engajadas como voluntárias nesta última campanha eleitoral. E pela primeira vez na história, todos os sindicatos, ou a maioria deles, apoiaram um candidato. Para mim, isso se deve ao grande espírito de unidade e também de ação política independente do movimento sindical.
É importante lembrar que Obama não é um candidato da “máquina” partidária do Partido Democrata. Ele foi um candidato que, lastreado em grande ousadia, organizou um movimento sustentado, em sua maioria, por gente jovem. Isso também é algo novo. E a questão toda foi o papel desempenhado pela internet, tanto no levantamento de fundos quanto na organização da campanha.
Nunca na história dos EUA – talvez nem na história do mundo – tantas pessoas participaram dessa maneira. Obama levantou 300 milhões de dólares com contribuições menores que 200 dólares, e isso mostra ter havido um tipo diferente de relação do eleitor com essa candidatura.
Os Estados Unidos são um país onde as pessoas não votam. Temos um histórico de baixo índice de comparecimento eleitoral. Então, também é um lado do nível de atividade e conscientização, que foi trazido à discussão no próprio movimento de massas.
O programa do nosso partido registrou, nos últimos 30 anos, muitas derrotas frente às forças autoritárias. Setores que representavam o sul do país e o Partido Republicano – a começar por Ronald Reagan –, engrossaram a corrente autoritária que culminou em George W. Bush, que aliviou os tributos dos ricos, restringiu direitos civis e suspendeu a instituição do habeas corpus, que é o fundamento da teoria da jurisprudência ocidental.

Princípios: E passaram a violar as correspondências…

Della Piana: Sim… documentos foram violados… E o governo americano instituiu a tortura como política oficial, a extradição de indivíduos, deportação de milhares sem maiores considerações e, claro, desencadeou as ilegais e desumanas guerras do Iraque e do Afeganistão. Realmente nos parece que o resultado eleitoral aponta para novas oportunidades, um novo potencial.
Portanto, não se deve dizer que Obama, sozinho, possa fazer alguma coisa. Uma única pessoa não tem condições de promover mudança social. Milhões de pessoas podem, em qualquer país, realizar a mudança social.
O que é excitante é que as expectativas são grandes, e existe uma dinâmica para esse processo que coloca certa pressão. Os monopólios, as forças mal-intencionadas colocarão pressão. O candidato deles pode ter perdido, mas eles não desistirão, eles vão ver o que dá para fazer no sentido de abalar essa vitória.
Portanto, estamos diante de grandes desafios. A escalada do Afeganistão – da qual Obama falou – por exemplo. Há muitos desafios sobre diferentes aspectos da política, mas também há oportunidades.
Durante três décadas os EUA viveram grandes retrocessos. Vivenciamos ainda um pequeno declínio do movimento das classes trabalhadoras, dos movimentos populares, e acreditamos que agora existe um potencial de reanimação, por causa da crise, em função da campanha e da vitória de Obama e por causa de um novo momento no movimento sindical. Entramos num período em que temos chance de maiores vitórias e menos retrocessos, em que os movimentos podem ser mais ofensivos.
Agora o perigo não é superestimar a importância da eleição de Obama, e sim subestimá-la. Supor ainda estarmos na fase de defensiva e de tentar recuperar o espaço perdido. Mas, de fato, temos de estar conscientes das oportunidades de obtermos vitórias concretas nesse novo período antimonopólio, em vez de apenas tentar impedir o crescimento do poder dos setores autoritários da globalização.
Cada vez mais adentramos a um período de enfrentar o poder, de enfraquecer os monopólios como um todo. E essa é a base para a transformação de nosso país em uma sociedade socialista. Obviamente, ainda não estamos nessa etapa, mas, para nós, é uma nova oportunidade, uma nova onda de lutas.

Princípios: Como a crise financeira impactou a vitória do Partido Democrata?

Della Piana: Definitivamente a crise teve seu papel. Nunca saberemos se Obama sairia vitorioso se essa crise não tivesse acontecido, ou se este fenômeno tivesse ocorrido num momento diferente… A crise na economia foi o assunto número um e os eleitores acreditavam que os republicanos e John McCain não poderiam enfrentá-la.
Penso que a crise cumpriu este papel, mas não tenho certeza. Percebo que, depois da crise, aconteceram críticas sobre ambos os partidos e há um sentimento generalizado de que nenhum dos dois grandes partidos apresentou soluções.
Alguns dados revelam o que as pessoas diziam: “Estamos no mesmo barco que Obama…” E não acreditavam que ele pudesse realmente consertar tudo. Até ele próprio disse que: “Nós temos essa difícil tarefa.” Será “difícil” cumprir muitas das bandeiras que foram prometidas. A agenda, e muitas outras coisas, serão contingenciadas pela crise.
Isso restringe a capacidade de implementar um programa de qualquer tipo e, a meu ver, também desanima muita gente. Os trabalhadores americanos relacionam as guerras, a guerra do Iraque, diretamente à crise. E Obama disse repetidamente: “Como vamos fazer? O que precisamos fazer se temos essas guerras que consomem bilhões todos os dias?”. Vamos ver onde isso tudo vai dar…

Princípios: É possível para a futura administração de Obama aplicar o programa de campanha?

Della Piana: A meu ver, Obama é muito esperto e está rodeado por gente que tem consciência da necessidade de fazer algo de concreto no começo da administração, a fim de obter a confiança das pessoas. Ao mesmo tempo, como você disse, ele conquistou a liderança do povo por um mandato ou por uma presidência. Então, pelo meu entendimento, nós veremos algo de mais concreto e expressivo, como a criação de empregos, e teremos maior liberdade para que os trabalhadores se organizem.
O sentimento de cerca de 46 milhões de trabalhadores revelou: “Nós gostaríamos de participar em um sindicato, se tivéssemos essa chance”. Há uma lei que tornará muito mais fácil se filiar a um sindicato, pois ela pune os grandes patrões que restringem a atividade sindical. E Obama está para assiná-la. A meu ver, será uma das coisas a que assistiremos nos cem primeiros dias. Isso é resultado da força e da organização das classes trabalhadoras.

Princípios: Como o Partido Comunista dos EUA participou dessa eleição?

Della Piana: Nossa principal atividade foi atuar junto aos sindicatos, as verdadeiras bases de mobilização. E devido à dinâmica dos políticos americanos – muito antidemocráticos – e de todo o sistema eleitoral americano, foi preciso haver um engajamento dos trabalhadores. Por exemplo, em Nova Iorque, por conta desses particularismos eleitorais, cada estado tem sua própria eleição, não há uma eleição federal unificada. De fato cada estado tem seu próprio sistema. Em Nova Iorque está em vigor uma lei que permite aos partidos endossar o candidato de um partido maior. Então é uma confusão. No rodapé da cédula pode-se votar no candidato local, mas no alto dela pode-se dar apoio para um candidato majoritário de outro partido, caso a pessoa não tenha candidato a senador ou presidente.
Por isso, o Partido das Famílias Trabalhadoras foi o partido político, além dos sindicatos e organizações comunitárias, onde participamos. Ainda não temos uma contagem, mas parece que centenas de milhares de pessoas votaram em Obama sob a sigla do Partido das Famílias Trabalhadoras e não a do Partido Democrata.
Portanto, existe uma forma de apoiar um candidato do povo e também apresentar uma terceira via.
Em cada estado operamos de forma diferenciada, dependendo da situação. Também trabalhamos em bases onde percebíamos que havia uma alternativa progressista. Nas eleições primárias, e também na eleição geral, apoiamos alguns candidatos dos trabalhadores.
Pelo nosso entendimento, para ter independência política nos EUA, nesse sistema, não vale a pena lançar um candidato que obterá 1 ou 2%, toda vez que concorrer. Conseguiremos independência política fazendo valer os direitos das pessoas e, para mim, essa é a melhor forma eleitoral de todos os tempos.
Estamos empenhados em um movimento por uma espécie de Reforma eleitoral que restrinja o poder econômico dos candidatos e altere o colégio eleitoral em funcionamento desde 2000. Nestas eleições todo o mundo descobriu que não temos eleições diretas para presidente nos EUA. Nas eleições passadas, quem venceu no voto popular não foi George W. Bush. Ele teve muito menos votos que Al Gore, que ganhou no voto popular. Mas ele levou a presidência. O mundo todo perguntou: “O que significa isso?” Mesmo em Nova Iorque muita gente não sabe como isso funciona. A pessoa diz: “Estou votando em Al Gore”, e não percebe que está votando num eleitor que irá a uma convenção para votar em Al Gore onde vence o voto majoritário. O vencedor leva tudo. Então, 51% dos eleitores em Nova Iorque serão todos os eleitores de Nova Iorque. Esse sistema é uma representação desproporcional.
Todas essas questões devem ser debatidas numa reforma. Teremos de transpor as barreiras para a votação. Ela ocorre em um dia útil, quando milhões de pessoas não vão votar simplesmente porque elas trabalham! Neste ano 31 estados tiveram votação antecipada. Pode-se ir e votar em qualquer momento durante três períodos.
Mas em Nova Iorque não temos isso. E, na realidade, tivemos menos gente votando desta vez do que em 2004. Todas essas coisas desgastam a democracia, desgastam a participação.
O Partido Democrata é um grande “guarda-chuva”, onde as forças sociais de mudança – as classes trabalhadoras organizadas, os racialmente oprimidos, os movimentos femininos – estão todas lá, em algum lugar no nosso trabalho, e nós não podemos abandoná-las.

Princípios: A crise colocou o capitalismo “em xeque”. Como o povo americano e os trabalhadores vislumbram a alternativa socialista?

Della Piana: A palavra “socialismo” virou “a casa da mãe Joana” nesse período porque o Wall Street Journal, os ideólogos e os jornalistas alardeavam: “Isso é socialismo!”. Um milionário comprou uma página inteira do Nem York Times e colocou uma foto de Paulson ao lado de uma foice e um martelo!
As pessoas, agora, estão falando sobre o socialismo. Temos um país onde o anticomunismo é muito profundo. Nosso partido foi fundado 90 anos atrás e em nosso aniversário, os cavaleiros da libertação, John Reed, entre outros, foram esquecidos.
Portanto, não é como em tantos países onde a tradição socialista é muito mais presente.
Em todas essas discussões, mesmo que equivocadas, não se trata de socialismo – o Estado não está fechando empresas, mas ajudando as instituições financeiras para beneficiá-las, para ajudá-las, não para enfraquecê-las.
As pessoas estão discutindo isso. Um líder sindical em Ohio disse: “Eles chamam a isso de socialismo para controlar nossas indústrias”. As pessoas dizem: “E daí? Não importa o nome que se dê…”. Eles chamam de “socialismo do Obama”. E ele disse:- “Eu dividi meus brinquedos quando criança, e eles me chamam de socialista!”. Ele não ataca o comunismo, ele não ataca o socialismo. Ele diferencia as coisas. Ele afirmou: “todos nós dividimos os brinquedos”.
A esquerda nos EUA ainda é pequena, mas com o uso da internet e de novas tecnologias, tentamos divulgar informes e a mídia apresentou muito interesse no partido. Por conta da crise as pessoas dizem: “Vamos ver o que o Partido Comunista tem a dizer”.

Princípios: Nós lemos sobre muitos exemplos de pessoas progressistas que entraram em contato com o PCUSA recentemente buscando a opinião dos comunistas americanos sobre a crise. É verdade?

Della Piana: Certamente. Tivemos um grande aumento no número de e-mails e telefonemas; pessoas querendo saber sobre o partido. Cada vez mais as idéias são postas à mesa. Somos um partido pequeno com grandes idéias e o desafio para nós neste período é difícil. Esperamos que o povo americano perceba que há alternativas.

Princípios: Como a atual crise financeira afetou a vida dos trabalhadores e das pessoas comuns nos EUA?

Della Piana: Em primeiro lugar, já havia recessão econômica mesmo antes da crise. A vida da maioria dos trabalhadores americanos, já estava em grande dificuldade há muitos anos. Mas, Nova Iorque é a casa de Wall Street. Tivemos um enorme impacto; imediatamente, perdemos centenas de milhares de empregos de outubro de 2007 até outubro de 2008. O fechamento de algumas instituições financeiras afetou Nova Iorque diretamente. Há corretores, secretárias, trabalhadores que dependem dessa indústria. Cerca de 20% da entrada de impostos do estado de Nova Iorque vêm de Wall Street. Cada vez que o mercado (de ações) cai 600 pontos lá se vai um hospital, lá se vai uma escola e nós temos 16 bilhões em taxas propostas para o orçamento.
Portanto, a luta agora é contra esses cortes e os resultados da crise financeira no estado, em perseguir os monopólios e os ricos em vez dos trabalhadores, fechando hospitais e quartéis de bombeiros. Para os trabalhadores, isso torna a crise pior tirando o dinheiro dos seus bolsos.
Um dos esquemas imposto pelo capitalismo foi privatizar as aposentadorias dos servidores públicos – trabalhadores como motoristas de ônibus, professores, funcionários do serviço social – no estado de Nova Iorque. Foram bilhões de dólares. Esse dinheiro foi tomado e jogado no mercado de ações. Da noite para o dia, as aposentadorias de centenas de milhares de nossos trabalhadores na cidade foram cortadas. Foi realmente devastador. Mas o capitalismo precisava dessas parcelas do seguro social. Se ele não as tivesse seria um desastre. Ele estaria liquidado. Ele precisa de cada centavo.

Princípios: Existe uma diferença entre a luta ideológica de hoje em dia e aquela que havia antes da crise?

Della Piana: É difícil dizer. São as duas coisas, a crise e a eleição. As eleições foram um divisor de águas para a luta ideológica também. Há seis meses eles usavam o termo TINA (do inglês There Is No Alternative), não há alternativa, acabou. E agora eles dizem: “ Durante 40 anos acreditei que estava certo. E eu estava errado”. Ideólogos de economia e mercado andam dizendo: “Opa, acho que eu estava errado!”. Isso é um tremendo contra-senso. Mas também traz conscientização para as massas.
Sobre a questão do racismo no movimento trabalhista, não é tradição haver racismo no movimento trabalhista. Mas, ele às vezes é rachado por questões de raça, às vezes por falta de lideranças. No entanto, esse movimento é sempre um reflexo da diversidade nacional, racial, linguística da classe trabalhadora.
O racismo em nosso país é a maior ferramenta do capitalismo. A ferramenta número um para dividir os trabalhadores. O racismo faz os capitalistas mais ricos. Concretamente, não abstratamente, diretamente: uma pessoa me paga 10 centavos e para ele 15 centavos. Isso, ideologicamente falando, é difícil.

Princípios: Obama escolheu muitos dos colaboradores do anterior governo Clinton para as relações internacionais. Na sua opinião, o Departamento de Estado seguirá a mesma política da administração de Bill Clinton, ou será diferente?

Della Piana: É uma questão primordial. Muito dependerá da mobilização popular. De movimentos pacifistas, outros movimentos, e de como eles se posicionarão nos primeiros tempos da administração. E depende também um pouco de como as coisas evoluirão.

Princípios: O que pode acontecer com os latinos e outros imigrantes, depois dessas eleições?

Della Piana: Mais uma mentira – que os latinos não votariam em Barack – foi desmascarada. Os latinos votaram em Obama. Diversas comunidades de imigrantes, asiáticos, votaram nele. Nos últimos dois anos tivemos grandes demonstrações dessa tendência. Os filhos desses imigrantes ainda podem vir a se tornar uma força política. A meu ver, latinos, asiáticos, negros, imigrantes são uma grande força política. Um dos problemas que terão de enfrentar é a questão da democracia, as políticas étnicas estão de volta à baila.

Pedro de Oliveira é jornalista e membro da comissão editorial de Princípios

EDIÇÃO 99, DEZ/JAN, 2008-2009, PÁGINAS 17, 18, 19, 20, 21