“Aja duas vezes antes de pensar”
Chico Buarque

“O sono da razão produz monstros”
Goya

 

 

Recentemente pude participar, na qualidade de expectador, do interessante Seminário sobre os Estados Unidos, promovido pela diplomacia brasileira em 29 de setembro, no Rio de Janeiro. Entre os expositores, um dos assuntos mais comentados dizia respeito ao “complexo industrial-militar” – também chamado por alguns autores de “complexo industrial-militar-acadêmico” –, termo que designa o conjunto das infra-estruturas (produtivas, políticas, culturais e acadêmicas) que sustentam a máquina de guerra americana, e que funcionam para a economia daquele país como uma espécie de locomotiva.

Depois da avalanche de críticas feitas ao complexo industrial-militar e à forma como se encontra estruturada a economia dos EUA, acompanhamos a reveladora apresentação da Sra. Jan Knippers Black, do Monterey Institute of International Studies. Concordando com as ponderações anteriormente apresentadas, a prestigiada intelectual norte-americana encerrou seu raciocínio com este sintomático veredito: “Precisamos [nós, americanos] encontrar outra coisa útil na qual possamos basear nossa economia”.

Ao ouvir essa afirmação de súbito parei, sobressaltado. A atenção dissipou-se do colóquio e me levou aos anos finais da década de 1990, quando, aluno da Pós-Graduação em Semiótica da PUC-SP – um dos principais centros irradiadores da filosofia americana fora dos EUA –, tive oportunidade de empreender alguns estudos sobre a corrente filosófica denominada pragmatismo.

Também conhecida pelos nomes de experimentalismo ou instrumentalismo, a filosofia pragmática é chamada ainda de utilitarismo pelos menos interessados em dignificá-la. Trata-se de uma espécie de filosofia da ação prática, que despreza as abstrações escolásticas e aquilo que vê como “diletantismo metafísico europeu”. O pragmatismo valoriza, ao contrário disso, o agir mais que o contemplar, os resultados verificáveis experimentalmente, a idéia da verdade como “construção” e não como “descoberta”. Em que medida essas idéias refletem o jeito de ser e a cosmovisão do povo norte-americano é o tema deste artigo.

A filosofia pragmática

As últimas décadas do século XIX foram para os EUA um período decisivo, no qual o gigante do Norte – recém-saído da guerra civil – unificou-se em definitivo e realizou a transição de uma sociedade relativamente atrasada para uma altamente complexa civilização industrial e urbana.

É nesse momento – quando na Europa se dava o florescimento pleno do marxismo, com a publicação, em 1867, de O capital – que, nos EUA, toma forma a filosofia pragmática. Esse movimento intelectual, que teve como pioneiros Charles Peirce, William James e John Dewey, se estenderia pelo século XX afora, abarcando vários outros nomes como G. H. Mead, C. I. Lewis, W. Quine, H. Putnam, D. Davidson, F. C. S. Schiller e R. Rorty.

Etimologicamente falando, “pragmatismo” remete ao termo grego pragma, que significa “ação”. Estamos diante de uma filosofia que milita em torno do primado da razão prática sobre a razão teórica. Em outras palavras, a razão de ser do pragmatismo reside na negação de todas as formas de intelectualismo.

Sempre foi possível identificar, na história da filosofia, posturas mais voltadas para a ação em contraponto com outras, mais idealistas e intelectualistas. Para os pragmáticos, que se encontram no primeiro grupo, o conhecer é um gênero do fazer, que se expressa antes pelo “praticar” que pelo “descobrir”. “O pragmatismo oferece uma concepção de razão que é prática em vez de intelectual (…) É a razão de Ulisses, não a de Platão” (1).

O pragmatismo valoriza um conceito de verdade ativista e utilitário. Para os pragmáticos, a verdade é o que é eficiente e proveitoso, o que resiste ao tempo e produz frutos. As possibilidades de verdade de uma teoria vinculam-se às suas possibilidades de sucesso. “A tese dos pragmatistas é a de que devemos estar aptos a fazer a fim de que se nos reconheçam como detentores de crenças conceptualmente substanciais” (2).

A filosofia pragmática remonta suas origens à obra de Charles Peirce (1839-1914). Em Como tornar claras as nossas idéias (1978), trabalho considerado o “manifesto” do pragmatismo, Peirce defende que “As crenças são realmente regras de ação” (3). Para ele, o conceito é a forma de um “propósito geral”. Toda idéia que formamos de um objeto nada mais é que uma idéia dos possíveis efeitos de sentido prático que podem estar associados àquele objeto, de forma que esses efeitos equivalem, em última instância, ao conjunto de nossa concepção sobre o objeto. Antes de chegar a essas conclusões, quando Peirce ainda lutava para definir a nova filosofia, ele afirmou que o pragmatismo seria, no mínimo, “uma atração instintiva por fatos vivos” – frase que revela o pendor materialista dessa corrente filosófica.

Contemporâneo de Peirce, William James (1842-1910) teoriza que “A busca por fins futuros e a escolha de meios para alcançá-los são (…) a marca e o critério da presença de mentalidade em um fenômeno” (4). Para James, as idéias só se fixam na mente de forma relativamente autônoma pelo caráter excepcional de sua eficácia quando aplicadas à experiência. “Número, espaço, tempo, semelhança e outras ‘categorias’ importantes poderiam ter sido trazidas à existência, diz ele, como conseqüência de alguma instabilidade cerebral particular, mas (…) [essas] categorias fundamentais têm sido cumulativamente estendidas e reforçadas por causa de seu valor quando aplicadas a instâncias concretas e coisas da experiência” (5).

Seguindo os passos de Peirce – que foi seu orientador de pesquisa – e, mais diretamente, de James, John Dewey (1859-1952) foi figura intelectual dominante na América de fins do século XIX e início do século XX. Aclamado como filósofo do New Deal, líder dos intelectuais americanos do campo democrático, Dewey tornou-se mais conhecido como um dos grandes nomes da educação moderna.

Para ele, a verdade não é uma idéia pairando sobre todos, à espera de ser descoberta. Trata-se, ao contrário disso, de algo que só na prática poderia ser concretizado. De um ponto de vista geral, a atitude pragmática consiste, segundo Dewey, em “olhar para além das primeiras coisas, dos princípios, das categorias, das necessidades supostas; consiste em olhar para as últimas coisas, para os frutos, conseqüências e fatos” (6). Ao lado de Peirce e James, Dewey compõe o chamado “pragmatismo clássico” – o pragmatismo em seu esboço original. As elaborações desses pensadores seriam retomadas na segunda metade século XX pelo chamado neopragmatismo, corrente que tem na obra de Richard Rorty (1931-2007) sua versão mais completa e elaborada.

Rorty é um dos mais influentes intelectuais americanos da contemporaneidade. Sua obra – uma espécie de “pragmatismo pós-moderno” – substitui a noção de experiência do pragmatismo clássico pela de linguagem. Para Rorty, o objetivo do debate filosófico deve ser encontrado na “conversação” e na solução criativa de novos problemas, e não na busca da “verdade”.

A elaboração rortyana pode ser sintetizada na afirmação de que a filosofia empregará melhor seus recursos se deixar de se preocupar com a questão da verdade (que “jamais” saberemos como definir) para cuidar da questão da liberdade (que sabemos bem o que é quando a perdemos). A ciência e a filosofia devem estar voltadas para a “vida” e para a solução de problemas concretos, e não para a busca da “verdade” vista como representação de uma suposta “essência” da natureza. Nessa perspectiva, a linguagem e o conhecimento representam mais instrumentos para fazer frente aos desafios do mundo do que representações da natureza intrínseca desse mesmo mundo.

Críticas ao pragmatismo

São muitas as críticas ao projeto filosófico pragmatista, dirigidas principalmente ao utilitarismo e ao relativismo dessa abordagem.

Para muitos autores, o utilitarismo e o relativismo pragmáticos são impulsionados por um simples “truque” ideológico: a confusão deliberada entre verdade e interesse. Robert Brandom percebe isso quando afirma que o pragmatismo “é vulnerável à acusação de que, numa tal assimilação do teórico ao prático, suprime-se a distinção entre intenções e crenças” (7). Também o filósofo alemão Jürgen Habermas, criticando pensadores como James e Rorty, afirma que o pragmatismo erra ao não fazer as devidas distinções entre “justificação” e “verdade”.

A indistinção entre “saber” e “alcançar” conduz de fato, de modo quase imediato, a uma concepção instrumentalista. Por isso o pragmatismo é acusado de elaborar o utilitarismo em forma de filosofia, contribuindo assim para enaltecer como virtude aquilo que seria, na verdade, um dos piores vícios da mentalidade capitalista-consumista.

Um dos maiores críticos do pragmatismo é o filósofo marxista Antonio Gramsci. Apesar de não negar sua simpatia pelo materialismo subjacente à visão pragmática, o pensador italiano o vê impregnado de “imediatismo”. De modo jocoso, afirma ele que, enquanto “Hegel pode ser considerado como o precursor teórico das revoluções liberais do séc. XIX, os pragmatistas, no máximo, têm ajudado a criar o movimento do Rotary Club ou a justificar todos os movimentos conservadores e reativos” (8).

A concepção de uma “razão instrumental” também recebeu dura crítica dos teóricos da Escola de Frankfurt, cuja visão abominava não apenas a instrumentalização da razão e da técnica, mas, para além disso, a da própria existência humana. Isso teria acontecido a partir da ação de uma elite política, industrial e financeira que passou a organizar as relações sociais com base em motivos instrumentais.

Atento a essas críticas, Dewey dissertou longamente em defesa de seu ponto de vista. Para ele, “Usualmente se diz (…) que o pragmatismo subordina o pensamento e a atividade racional a fins de interesse e ganho particulares. É verdade que a teoria (…) implica essencialmente em certa relação com a ação, com a conduta humana. Mas o papel da ação é aquele de um intermediário (…) O pragmatismo está, por conseguinte, muito distante daquela glorificação da ação pela ação, que é considerada como a característica peculiar da vida americana” (9). Além de seu utilitarismo estreito, também um forte relativismo exala da visão de mundo pragmática, a qual abre mão, na prática, de refletir sobre a noção de verdade, impossibilitando assim um pensamento realmente crítico. Para Rorty, por exemplo, com o rompimento das visões “metafísicas” de “busca da verdade” restaria-nos a tarefa de nos “recriarmos” pela linguagem, aprendendo a nos “reinventar” e nos “redescrever” constantemente por meio da busca de novos “vocabulários”.

A respeito dessas concepções, G. Semeraro pensa que, “ao afastar seus olhos das contradições sociopolítico-econômicas (…), o neopragmatismo de Rorty quer nos fazer crer que hoje não há mais problemas filosóficos ‘fundamentais’ a serem resolvidos e que a filosofia não passa de uma ‘crítica literária’, de uma ‘prática discursiva’ (…) A filosofia deve abandonar sua pretensão de elaborar visões globais de mundo, de fundamentar o conhecimento e de dar sustentação a práticas éticas e políticas” (10). Um pensamento que nada tem de despropositado, correspondendo à verdadeira “ideologia americana” dos dias atuais.

A ideologia americana

A busca de um conhecimento voltado para a ação sempre foi atribuída, na história da filosofia, aos interesses de nações que pretendem se construir materialmente e se afirmar politicamente. Não à toa, já o insuspeito Dewey apontava que a “Filosofia americana (…) reflete, em certo sentido, a vida americana” (11). Essa opinião é seguida de perto por M. Bourdeau, citado por James (12) ao afirmar que o “pragmatismo é uma reação anglo-saxônica ao intelectualismo e racionalismo da mentalidade latina … É uma filosofia sem palavras, uma filosofia de gestos e fatos, que abandona o que é geral e abraça apenas o que é particular”.

Tomando por base o próprio pensamento pragmático, podemos conceituar a ideologia como a cultura concebida na dimensão do interesse. Dificilmente um filósofo pragmático discordaria dessa conceituação. William James, por exemplo, levava muito em consideração aqueles motivos de simpatia instintiva que em última instância definem nossa predileção por esse ou aquele sistema filosófico, mais do que os motivos de natureza racional. “James pensava que poderíamos prestar serviço à causa da sinceridade filosófica se reconhecêssemos abertamente os motivos que nos inspiram” (13). Não apenas concordamos com essa afirmação, como pensamos que ela deva servir a uma dissecação do próprio pensamento pragmático. Se James reivindica “sinceridade filosófica”, comecemos, pois, por seu próprio pensamento.

Com sua visão instrumental do problema da verdade, James promove uma inversão do empirismo; se este é um experimentalismo da ação passada, aquele é um experimentalismo da ação futura. Como afirma Dewey, “o pragmatismo se apresenta como uma extensão do empirismo histórico, mas com uma diferença fundamental: não insiste sobre os fenômenos antecedentes, mas sobre os fenômenos conseqüentes; não sobre os precedentes, mas sobre as possibilidades de ação. E essa mudança de ponto de vista é quase revolucionária em suas conseqüências. Um empirismo satisfeito com a repetição de fatos passados não tem lugar para a possibilidade e para a liberdade” (14).

Reside aqui um ponto fundamental: a necessidade que tem o pragmatismo de, invertendo a formulação empírica tradicional, abrir espaço para o futurístico e o indeterminado. Esse elemento de “liberdade” e de indeterminação é caro ao american way of life – o modo de vida americano. Ele vincula-se ao estilo de vida do pioneiro, o “herói” conquistador para quem tudo está em aberto, o aventureiro para quem todas as possibilidades estão por ser desbravadas. Não por acaso Dewey argumenta: “Não há dúvida de que o caráter progressivo e instável da vida americana e da civilização facilitou o nascimento de uma filosofia que considera o mundo como algo em formação contínua, onde ainda há espaço para o indeterminismo, para o novo e para um futuro real” (15) .

As idéias dos pragmáticos mal escondem seu sentido de justificação racional do estilo de vida pioneiro. A visão instrumental possui forte correlação com as atitudes do herói desbravador, para quem as idéias nada mais eram que instrumentos, “armas” com que buscava dominar as adversidades do meio.

Na visão de Sandra Rosenthal “o pragmatismo é, com certeza, o movimento filosófico mais distintivamente americano. Entretanto, o sabor (…) americano do pragmatismo tem sido exatamente o fator que tem maculado sua respeitabilidade em vários círculos filosóficos” (16).

Essa baixa “respeitabilidade” pode ser aferida pela apreciação de Bertrand Russell, intelectual britânico que via no pragmatismo a manifestação, no terreno da filosofia, do espírito comercial americano. Semelhante coisa é exposta por Robert Brandom, para quem o que ecoa do pragmatismo “… é a sensibilidade grosseira, própria de feirantes, que enxerga tudo através das lentes redutoras da comparação custo-benefício (…) A razão de uma ação assume forma correspondente à resposta da seguinte pergunta: ‘Que proveito tiro daí?’. A racionalidade (…) mostra-se como (…) inteligência instrumental: uma capacidade genérica de alcançar o que se quer. Desse ponto de vista, a verdade é o que funciona; o conhecimento é uma espécie da utilidade; a mente e a linguagem são ferramentas. O materialismo instintivo e o anti-intelectualismo brutos do senso comum recebem uma expressão refinada na forma de uma teoria filosófica” (17).

Ciente de opiniões como essas – muito populares na intelligentzia européia –, Dewey argumentava: “O pragmatismo é americano na medida em que insiste sobre a (…) satisfação de algum objetivo (…) Mas (…) o pragmatismo desaprova aqueles aspectos da vida americana que fazem da ação um fim em si mesmo e que concebem os fins de maneira estreita e muito ‘praticamente’” (18).
Apesar das escusas de Dewey, é no individualismo egoísta da sociedade americana e nos propósitos de poder de seu Estado imperialista – disfarçados sob o discurso da “liberdade” e do “pioneirismo” – que podemos encontrar as motivações últimas do pensamento pragmático.

Implicações do pragmatismo na consciência americana

Uma filosofia da ação prática individual: isso é o pragmatismo americano. Nos primórdios esse pensamento ajudou os EUA a transpor obstáculos até se tornarem a maior nação do Planeta. O pragmatismo forneceu sustentação ideológica à idéia do indivíduo pioneiro e empreendedor – o self-made man norte-americano. Com isso, fez dos EUA uma nação empreendedora, voltada não para a reflexão, mas para a ação; não para o ascetismo, mas para a conquista.

Como ressalta Mangabeira Unger, o “impulso experimentalista” tem sido uma “poderosa força” na cultura americana (19). Não por acaso, a cultura prática dos americanos sempre exerceu fascínio sobre a escola marxista. D. Losurdo atenta para isso: “(…) é notório o fascínio que o taylorismo e o fordismo exerceram sobre Lênin e Gramsci. Bukárin vai ainda mais longe, em 1923: ‘precisamos agregar o americanismo ao marxismo’. Um ano mais tarde, Stálin parece encarar o país (…) com tamanha simpatia, que fez um significativo apelo aos quadros bolcheviques: se desejam estar realmente à altura dos ‘princípios do leninismo’, devem saber assimilar ‘o senso prático americano’” (20).

Por outro lado, essa mesma mentalidade prática, a par dos avanços que foi capaz de proporcionar, revela hoje seus limites. Se o pragmatismo forneceu ao povo norte-americano essa “alta dose de energia realizadora”, é possível que o tenha feito ao preço de roubar-lhe boa parte da imaginação. Como afirma Mangabeira Unger, “Os EUA não são somente o poder predominante no mundo, mas, também, um poder que não está em contato imaginativo com o resto da humanidade (…) Esta falta de imaginação é fonte de um imenso perigo”(21).

A perda de poder imaginativo pode não ter sido o único “efeito colateral” causado pelo uso abusivo do “emplastro pragmático”. Com o passar do tempo, a inflação do culto à ação tornou os EUA uma nação – embora vivaz, pujante – sem alma, parca de um sentido maior de humanidade, incapaz de perceber que o objetivo último do ser humano não se encontra em quaisquer particularismos, mas no florescimento multilateral da humanidade. Amarrar a verdade à utilidade é uma boa estratégia quando se trata de fomentar o espírito prático. Mas é também algo que, com o tempo, provoca um encurtamento de horizontes da existência humana, horizontes estes que se encontram sempre além de nosso alcance imediato. Subsumir a verdade ao instrumental faz com que o ser humano viva à sombra de objetivos restritos, desprovido de um sentido de totalidade. E, sem esse sentido maior, a raça humana se desumaniza, dado que só ela é capaz de fixar motivos que vão além de sua própria existência.

Peirce, talvez o menos pragmatista dos pensadores pragmáticos, foi também o primeiro a perceber esse problema quando afirmou: “o pragmatismo não confere um único sorriso à beleza, à virtude moral ou à verdade abstrata; as três coisas que, sozinhas, elevam a Humanidade acima da Animalidade”(22).
Aferrado ao particularismo pragmático, o ser humano se perde, a aventura da humanidade se esvazia, a existência do Homem sobre a Terra fica carente de sentido. A “ação pela ação” traz a inquietude ao espírito humano, quebra o encantamento com o mundo ao reduzir o próprio sentido da existência a uma dimensão instrumental, levando a dilemas e impasses. Estes se manifestam no psiquismo dos indivíduos através de um sentimento de “vazio” e de uma intranquilidade latente, espécie de “câncer da alma” que – como todo câncer – não mata de imediato, produzindo ao contrário uma longa e lenta agonia do espírito ponteada por convulsões.

Desalentados por esse aterrador sentimento de “vazio” – “forma contemporânea do sofrimento”, como alerta o psicólogo Joel Birman – muitos indivíduos “tomam o caminho sem fim das compulsões, seja o consumo de drogas ilegais, ou dos psicotrópicos legais (os remédios de faixa preta), seja a obsessão por comida, pelo sexo ou pelo consumo”(23). No extremo, quando nem a cocaína ou o prozac, nem o açúcar ou os shopping centers funcionam, há ainda os que pegam uma arma de fogo e, sem que ninguém saiba explicar o porquê, matam várias pessoas em uma escola ou um cinema, suicidando-se logo após.

Fenômenos como esses, embora não sejam exclusividade da sociedade americana, encontram nela um ambiente “fértil” e privilegiado. Eles revelam de forma dramática os riscos que sobrevêm de uma sociedade governada, como diria Freud, pelo “Id” (desejo) – isto é, pelo pragmatismo radical e pelo empirismo em uma de suas formas extremas: a de uma filosofia da prática degenerada em apologia do ativismo cego.

É esse o processo cultural que temos assistido na sociedade americana. Nela – acompanhando a conversão progressiva de um materialismo antes sadio, mas que desde sempre trouxe consigo os germes de um realismo torto e moribundo –, o espírito ativista de pioneirismo e inovação, que no passado já foi o “sonho americano”, tornou-se nos dias atuais uma longa e tormentosa sucessão de pesadelos.

Fábio Palácio é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica. Este artigo contém trechos do ensaio “A ideologia americana”. Agradecimentos a Mariana De Gobbi Porto pela colaboração

Notas:
(1) BRANDOM, ROBERT. Iluminismo pragmatista. Disponível em: http://portal.filosofia.pro.br/fotos/File/brandom_iluminismo.pdf. p. 5.
(2) Id. Ibid. p. 8.
(3) APUD DEWEY, John. “O desenvolvimento do pragmatismo americano”. Scientiae studia. São Paulo, v. 5, nº 2, p. 230.
(4) APUD DEWEY, John. Op. Cit. p. 238.
(5) APUD DEWEY, John. Op. Cit. p.s 238-239.
(6) DEWEY, John. Op. Cit. p. 234.
(7) BRANDOM, ROBERT. Op. Cit. p. 8.
(8) APUD SEMERARO, Giovanni. “Filosofia da práxis e (neo)pragmatismo”. Revista brasileira de educação. Rio de Janeiro, nº 29, mai/jun/jul/ago 2005. p. 29.
(9) DEWEY, John. Op. Cit. p. 229.
(10) SEMERARO, Giovanni. Op. Cit. p. 34.
(11) DEWEY, John. Op. Cit. p. 240.
(12) APUD DEWEY, John. Op. Cit. p. 231.
(13) DEWEY, John. Op. Cit. p. 233.
(14) Id. Ibid. p. 235.
(15) Id. Ibid. p. 241.
(16) ROSENTHAL, Sandra. “Pragmatismo americano clássico: uma visão geral sistemática”. Cognitio: Revista de Filosofia. São Paulo, nº 3, nov. 2002. p. 3.
(17) BRANDOM, ROBERT. Op. Cit. p. 1.
(18) DEWEY, John. Op. Cit. p. 230.
(19) UNGER, Roberto Mangabeira. O que a esquerda deve propor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 114.
(20) LOSURDO, Domenico. Liberalismo. Entre civilização e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006. p. 137.
(21) UNGER, Roberto Mangabeira. Op. Cit. p. 107.
(22) APUD HOUSER, Nathan. “Pragmatismo e a perda da inocência”. Cognitio: Revista de Filosofia. São Paulo, v. 4, nº 2, jul-dez 2003. p. 12.
(23) CASTELLO, José. “O ser e o nada” – entrevista com Joel Birman. Jornal Valor Econômico. São Paulo, 24-11-2006.

EDIÇÃO 99, DEZ/JAN, 2008-2009, PÁGINAS 61, 62, 63, 64, 65, 66