Não é empreitada muito simples analisar o curso da crise do sistema capitalista. Exige certo domínio da base teórica marxista, abertura de espírito para captar as características mais importantes do capitalismo atual, critério para separar entre as montanhas de dados disponíveis aqueles que podem indicar as principais tendências, sempre contraditórias, de desdobramento da situação política, econômica e social. Tudo isto em escala mundial e brasileira, visando o que é mais importante – muito mais que as proclamas de princípio –, tirar as conseqüências para a ação política concreta, transformadora, que aponte para o socialismo. Contam neste labor as infindáveis horas de leitura, as visitas a centenas de sites, as polêmicas ásperas com aqueles que ou exageram ou minimizam a crise e seus efeitos.

Muito mais difícil, porém, é a situação daqueles setores sociais de trabalhadores, proletários e semi-proletários, que sentem dia a dia a piora de sua situação com o agravamento da crise. Algo tenebroso, que a frieza dos números não consegue contemplar. Numa noite deste começo de dezembro, me deparei com um catador carroceiro conduzindo seu material para reciclagem. Mais um entre os muitos milhares que vivem desta importante atividade informal na cidade de São Paulo, não teria me chamado a atenção não fosse a altura da carga que, com muita dificuldade, levava. Abordei-o com as mais variadas perguntas. Disse ele, em suma, que após setembro, os preços dos materiais recolhidos para reciclagem caíram vertiginosamente, todos, papel branco, ferro, aço inox, cobre, latão, alumínio. Com aquela carga de cerca de 700 kg, conseguiria agora não mais que R$ 50,00 quando, antes de setembro alcançaria facilmente R$ 120,00. Então, para compensar, teria que buscar cargas maiores e mais selecionadas. A penúria daquele homem é uma descrição viva e precisa da crise capitalista.

Previsões do FMI

Esta manifestação concreta na “ponta da rama” mostra que a partir de setembro houve uma mudança de qualidade na extensão e na profundidade da crise econômica e financeira do capitalismo. De lá para cá os indicadores não pararam de piorar. O FMI já em novembro reviu as projeções divulgadas em outubro no seu Panorama da Economia Mundial. Pela primeira vez, desde o fim da 2ª Guerra Mundial, está prevista para 2009 uma taxa negativa para o PIB do conjunto das economias desenvolvidas (- 0,3%). Tabela (1)

No centro da crise, os EUA encontram-se em plena recessão. Em novembro, 533 mil postos de trabalho foram eliminados, perfazendo desde janeiro um total de 1,9 milhão de trabalhadores despedidos. As chamadas três grandes da indústria automobilística, GM, Ford e Chrisler, estão à cata de US$ 34 bilhões de dinheiro dos consumidores, para serem salvas da extinção. O Citi Group, outro emblema do capitalismo norte-americano, conseguiu arrancar do governo dos EUA US$ 20 bilhões em dinheiro vivo e mais US$ 300 bilhões em garantias, evitando assim a falência. O mercado imobiliário continua se afundando. Há uma série de furos de tradicionais órgãos de imprensa; bem entendido, não furos jornalísticos e sim nos seus balanços. As ações da Bolsa de Nova Iorque continuam se desvalorizando. Algo semelhante acontece nos países da chamada Euro-área e no Japão. A paralisação do crédito atinge em cheio a economia real. A particularidade da crise atual está no fato de que não há, no sistema produtivo capitalista, condições para extrair a massa de mais-valia suficiente para satisfazer as expectativas estratosféricas de lucros embutidas nos papéis do mercado futuro, desmascarando assim toda a ficticiedade deles. Dizia Marx que, quando estes papéis se tornam invendáveis, fica claro seu caráter de “representantes nominais de capitais inexistentes”.

Até o final de novembro o governo dos EUA já havia realizado gastos de US$ 3,180 trilhões e assumido compromissos da ordem de US$ 5,380 trilhões em operações de salvação de bancos e empresas, num total de US$ 8,5 trilhões, colocando à mostra a função real do Estado capitalista. Para se ter uma idéia do volume desta operação de socorro até o momento, é bom compará-lo aos US$ 115 bilhões (em dólares de 2008) gastos no Plano Marshall com o qual os EUA financiaram durante quatro anos a recuperação da Europa no pós-guerra. Esta crise tem levado a uma crescente concentração e centralização do capital privado de um lado e, de outro, a uma fusão (o termo é bem este) de capital público com o privado em benefício deste último. Parece que foram enviadas para muito além do inferno as prédicas neoliberais do Estado-mínimo e do mercado auto-regulado.

O contexto mundial da crise

Os dados do FMI mostram ainda que para 2009, não está prevista uma recessão para os países em desenvolvimento ou emergentes (2), mas, por enquanto, uma desaceleração de certa gravidade. A média de crescimento dos países seria de 5,1% contra 6,6% de crescimento em 2008. A tendência ao distanciamento das taxas de crescimento entre economias desenvolvidas de um lado, e economias em desenvolvimento de outro lado, acentuou-se a partir do início do século atual conforme mostra o gráfico do FMI. Em um mundo sob crise profunda, a China socialista, em 2009, deverá crescer a uma taxa de 8,5% em relação ao ano que está findando. A Índia, pouco mais de 6% e o Brasil e a Rússia, algo em torno de 3%. A comparação do PIB pela paridade do poder de compra (PPP, sigla em inglês) – mais aproximado da realidade que o PIB nominal – mostra o avanço do chamado mundo em desenvolvimento, conforme a tabela, a seguir.

Isto acontece porque a dinâmica contraditória de funcionamento do capitalismo financeirizado e neoliberal acabou por criar uma situação nova na economia mundial na qual vários importantes países da chamada periferia do sistema têm alcançado taxas médias de crescimento muito superiores às dos países de capitalismo desenvolvido. Alguns destes países, com base em superávits comerciais crescentes, ficaram bem menos vulneráveis nas suas contas externas passando de devedores a credores, o que lhes permitiu inclusive criar Fundos Soberanos estatais com os quais agem na economia internacional comprando ativos financeiros e ativos reais. Considere-se ainda o fato de que fontes das principais matérias-primas e de energia estão ali concentradas, assim como a capacidade nuclear de alguns deles, para explicar o surgimento de novos pólos econômicos e políticos no mundo, a partir da periferia. Potências regionais, no caso do Brasil, da Índia, da Rússia e mesmo do Irã e da África do Sul. E uma grande potência, de âmbito mundial, no caso da China socialista.

Este fato inédito é que permite que potencialmente os países em desenvolvimento atuem como contra-tendência ao efeito devastador da crise emanada dos países ricos, sobretudo dos EUA. Para que isto se torne realidade é necessário que se forme uma ampla frente, de âmbito mundial, envolvendo os trabalhadores, povos e aqueles países que buscam um desenvolvimento soberano. Uma frente de caráter contra-hegemônico, de combate à crise e em busca de construir uma alternativa à solução tradicional do imperialismo em crise, que é aumentar a exploração dos trabalhadores, o saque das riquezas e a pilhagem especulativa (moderna) dos países mais fracos. O desenvolvimento destas contradições poderá acentuar o declínio do império norte-americano o que, junto à ascensão de outras potências indica o desenvolvimento da tendência objetiva a um quadro internacional multipolar. Mais tenso, disputado e conflituoso; porém mais equilibrado, o que é benéfico à luta pelo socialismo.

Estas crises são inerentes ao capitalismo. Elas têm o poder de desnudar os limites e insustentabilidades do sistema e, no caso concreto, de recolocar em cena a discussão da alternativa socialista, que parecia démodé após a queda da URSS e do Leste Europeu. Mais que isto, do ponto de vista prático, coloca-se em xeque a ideologia dominante que não permite explicar porque a China se encontra hoje em situação mais favorável para enfrentar esta crise (ou a crise asiática de 97/98). Fica mais difícil omitir o fato de que o país optou por um outro sistema político e econômico o qual, apesar de ainda embrionário, torna visíveis as diferenças entre o capitalismo e o socialismo.

Que formato terá esta crise?

O agravamento continuado da crise tem provocado acaloradas discussões sobre qual seria sua magnitude e duração e, portanto, qual o seu formato gráfico. Teria a forma de V, ou seja, após o ponto mais baixo uma recuperação teria início de imediato, no início de 2010; ou a de um U onde a recuperação sobreviria depois de dois ou três anos? É da tradição da economia política marxista considerar que a reprodução capitalista tem caráter cíclico e que o ciclo é o período que vai do começo de uma crise a começo da crise seguinte. Este ciclo tem quatro fases. Crise, caracterizada pela superprodução relativa, diminuição brusca dos preços, queda das bolsas, falências, redução acentuada na produção, desemprego e arrocho salarial. Depressão, aqui entendida como um período de estancamento ou estado de languidez da atividade econômica. Reanimação e depois auge, quando a produção está em crescimento, novas empresas são criadas, preços em alta e bancos dispostos a emprestar. No auge, a especulação faz subir os preços e fomenta desmesuradamente a demanda de mercadorias, o crédito encobre ainda mais a superprodução.

Critérios adotados pelo National Bureau of Economic Research (NBER) dos EUA podem ajudar na determinação dos momentos-chave da atividade econômica – auge (peak), recessão, depressão (trough) e expansão, segundo o Bureau – utilizando-se de parâmetros mais amplos tais como indicadores de produção, emprego, renda real e outros. Por estes critérios a economia dos EUA entrou em recessão a partir de dezembro de 2007 e a crise poderia ter, por enquanto, a forma de um L, cujo tamanho da base não se pode prever, já que não há sinais que possam indicar uma recuperação a curto ou médio prazo. Brasil, o momento é para mudança

Prestando atenção ao gráfico que compara o crescimento real do PIB dos países de economia desenvolvida com o crescimento dos países em desenvolvimento, vai se perceber que, se as distâncias entre as duas curvas aumentam, elas continuam tendo praticamente a mesma trajetória, ou seja, quando uma cai a outra também cai; quando uma sobe, acontece o mesmo com a outra. Isto quer dizer que o descolamento entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, é relativo em geral, e muito mais relativo no caso brasileiro por causa do hibridismo da orientação econômica até aqui adotada pelo governo Lula. Desenvolvimentismo de setores do governo convivendo contraditoriamente com a ortodoxia neoliberal do Banco Central do Brasil.

No último trimestre de 2008 e durante 2009, os efeitos negativos de tal dualidade devem se fazer sentir de maneira mais acentuada. A taxa de crescimento prevista para 2009 é a metade da de 2008 o que trará perdas de direitos aos trabalhadores. Não se pode enfrentar efetivamente a crise se o Banco Central pratica a taxa de juros reais mais alta do mundo e insiste em tal orientação, quando por todo o mundo tais taxas vão sendo reduzidas pela autoridade monetária, visando a retomada do crescimento.

Nenhuma justificativa se apresenta concretamente à decisão do último dia 10 de dezembro quando o BC resolveu manter a Selic em 13,75% ao ano. Isto anula esforços meritórios que se tem feito para desobstruir o crédito e estimular a produção e o consumo. Por outro lado, se agora o câmbio tem se desvalorizado, como de há muito se reivindicava, isto fica praticamente neutralizado pelo efeito da queda da demanda mundial e da redução brutal no preço das commodities.

O fato é que, ao se somar o fraco desempenho da balança comercial com as vultosas remessas de lucros e dividendos, através dos quais as filiais das transnacionais procuram socorrer suas matrizes com a fuga de dólares fruto da especulação cambial, chega-se a um resultado muito preocupante. As transações correntes do balanço de pagamentos já se apresentam crescentemente deficitárias. O agravamento deste quadro poderá resultar em mais uma crise cambial, tormenta conhecida dos brasileiros há tempos. Os gráficos ajudam a compreender a gravidade da situação.

A crise é um momento de tensões, de sofrimentos, de perdas, mas que, no entanto, abre oportunidades de mudanças. Já está pautando boa parte da discussão política em curso no país e deverá marcar o debate sucessório. O oportunismo das forças conservadoras de oposição, ao utilizar argumentos falaciosos sobre a crise, deveria servir de alerta para a necessidade de mudanças efetivas na política macroeconômica do país. Com isto seria possível impedir a utilização deste discurso como base da pretensão de voltar ao centro do Poder nas eleições gerais de 2010. Por que é mesmo que o presidente Lula não rompe com a orientação macroeconômica até aqui adotada? Ela ainda “está dando certo”? Falta-lhe apoio popular? Faltam-lhe nomes à altura para substituir Henrique Meirelles e sua equipe na direção do Banco Central? Ou falta-lhe ver que, num momento como este, sem romper com os fabulosos privilégios dos especuladores e rentistas, não se pode fazer o omelete do desenvolvimento e impedir que o sofrimento dos milhões de nossos carroceiros se aprofunde?

As forças políticas transformadoras, em especial os comunistas, têm um papel central a cumprir neste momento decisivo da vida nacional. Junto com os movimentos sociais, defenderão de forma consequente o desenvolvimento da economia nacional e não permitirão que os trabalhadores paguem o ônus da crise. A hora é de avançar, com amplitude, com medidas políticas e programas mais progressistas.

•Dilermando Toni é jornalista e membro do Comitê Central do PCdoB.

Notas
(1) Trinta e um países são considerados pelo FMI como economias desenvolvidas. Entre estes estão, além dos países do G-7, alguns que, a rigor, são economias capitalistas medianamente desenvolvidas, tipo Coréia do Sul, Eslovênia, Taiwan província da China, Portugal, Nova Zelândia etc.
(2) Neste grupo estão incluídos 142 países de diferentes níveis de desenvolvimento. O total dos dados do FMI abarca, portanto 173 países

EDIÇÃO 99, DEZ/JAN, 2008-2009, PÁGINAS 70, 71, 72, 73, 74, 75