Por Sergio Ramírez

Por Sergio Ramírez*, na Terra Magazine.

Neste ano comemoram-se os 75 anos do assassinato de Sandino, que aconteceu em 21 de fevereiro de 1934. Tinha 39 anos de idade, entrou na história como mais um herói que morreu jovem, a morte em plena juventude é um pré-requisito para a formação de uma lenda. Eram os anos da sua juventude madura, ou da sua exuberante juventude. A idéia de que um herói, para sê-lo de verdade, não pode passar o portal que leva à velhice e assim à deterioração física e muitas vezes mental, é claramente defendida por Joseph Campbell, que determina com lucidez clássica quais são as etapas que devem ser cumpridas para transcender na memória e para permanecer como arquétipo do heroísmo.

Em primeiro lugar, a purificação. Como era habitual entre os cavaleiros andantes, etapa que o próprio Dom Quixote cumpre ao velar as suas armas a noite toda no pátio da primeira pousada em que pára, antes de continuar pela estrada no cumprimento das suas façanhas; depois, a entrega total, à força, à causa que mexe com o herói; e por último, a morte prematura. O resto fica para o mito a ser construído pelas gerações futuras, uma espécie de ressurreição permanente. E como denominar todo esse processo senão paixão? Da mesma forma como os evangelhos entendem o termo paixão. Paixão e morte.

Eva Perón tinha 33 anos quando morreu; se tivesse terminado os seus dias na velhice, certamente o mito teria sido derrubado, ruído pelas traças dos anos, como provavelmente também teria acontecido com Che Guevara, se não tivesse sido morto em combate aos 39 anos, exatamente a mesma idade que tinha Sandino na hora do seu próprio sacrifício.

Quem pode imaginar Sandino aos 70 anos, ou Che aos 80, desgastados pela idade e pela ação implacável dos anos, que provocam mudanças nos cenários e nas circunstâncias, e que acumulam um rastro de erros, fraquezas e fracassos, que são a pele da longevidade? Morrer jovem é um privilégio dos amados pelos deuses; e a dor dos deuses é não morrer nunca, lembra Rubén no Coloquio de los centauros.

Constam no catálogo de Joseph Campbell aqueles que morrem por traição após terem cumprido a sua façanha em defesa da soberania nacional de um pequeno país, como Sandino, ou empunhando um fuzil já sem esperanças, como Che na Bolívia, ou em uma cama de hospital, como Eva Perón, amada pelas massas e desfigurada pela agonia; mas também entram no catálogo Marilyn Monroe, a empregadinha de loja que chegou a ser uma estrela de cinema, como a retrata Ernesto Cardenal no seu poema, ou James Dean, o herói da rebeldia sem causa dos anos cinqüenta, ou John Lennon, assassinado por um fanático. Por isso estão juntos nas lojas de suvenires com as suas efígies, Marilyn Monroe, ou John Lennon, ou Che Guevara, não importa, agora todos são estrelas pop. São lendas entre os jovens, porque eram jovens quando morreram

De forma essencial, o que está em questão é a rebeldia no caminho marcado rumo ao heroísmo. Durante as suas vidas mudaram alguma coisa substancial do seu tempo, rebelaram-se contra alguma forma de comportamento estabelecida, fixaram para sempre a sua imagem com base no rigor da sua façanha, ou de algumas poucas façanhas que os levaram a uma eternidade esquiva, não importa que depois sejam transformados em símbolos comerciais, pôsteres, camisetas, amuletos, marcas ou que sejam rodados filmes ou escritos livros ao seu respeito. Todo esse culto comercial seria em vão se não existisse o conceito de heróico, esse consenso transmitido de geração em geração, essa fagulha mágica que os faz permanecer vivos.

Sandino, que combateu à frente de uns poucos homens humildes, artesãos e agricultores analfabetos, para expulsar as forças de ocupação da marinha de guerra dos Estados Unidos entre 1927 e 1933, em seis anos de uma dura guerra desigual, Davi contra Golias, está nesse panteão dos heróis que morreram jovens, sacrificados pelo seu ideal de rebeldia, mas o seu nome não brilha nas marquises do mundo como deveria. Esquecido por alguns, deturpado por outros, mas não carece de nenhum dos requisitos do heroísmo dos escolhidos pelos deuses.

Abandonou a sua vida comum de trabalhador petroleiro no México para voltar à Nicarágua, chamado por essa voz celestial que conclama os heróis ao cumprimento do seu destino quando a Nicarágua foi invadida por tropas estrangeiras. Velou as suas armas em uma triste noite no Cerro del Común, em absoluta solidão, perguntando a si mesmo se devia empreender o combate contra um exército mil vezes mais poderoso do que a sua pobre coluna de trinta homens mal alimentados e pior armados, e a voz celestial respondeu que sim, porque “o homem que não exige da sua Pátria nada além de um palmo de terra para a sua sepultura, merece ser ouvido, e não só ser ouvido, mas também que acreditem nele”. Palavras simples, mas carregadas de verdades. E quando as palavras simples estão carregadas de verdades, surge a poesia.

E após seis anos de conflitos, consertando situações, emboscando delinqüentes e desmontando marionetes, quando saiu o último soldado das tropas de ocupação, entregou as suas armas como o cavaleiro andante que sempre foi, fiel às suas promessas e, então, o pior de todos os delinqüentes contra os que tinha combatido, Anastacio Somoza, que começava a se consolidar no poder que meio século mais tarde os seus filhos herdariam, mandou emboscá-lo e assassiná-lo. Nos relatos dos heróis sempre existe um carrasco. O herói e o seu algoz.

Se a Pátria é pequena, a gente a sonha grande, levanta a voz Rubén em um recôndito extremo da sua paisagem natal. Não há Pátria pequena na hora de defendê-la, responde Sandino, desde outro canto escuro da mesma paisagem na qual o fantasma do vício político se repete sem parar, dentro de um pântano que parece inesgotável, e por onde perambulam as tristezas custodiadas pelos delinqüentes. Um sonho sempre interrompido pelos piores pesadelos. Mas o jovem herói sempre está vigilante, é o seu eterno trabalho, porque a imortalidade consiste nisso, em dormir com os jovens olhos abertos.
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Sergio Ramírez é autor de mais de 30 livros entre novelas, contos, ensaios e memórias. Sua obra foi traduzida para 17 idiomas e tem ganhado prêmios como o Alfaguara, o Dashie Hammett e o Prêmio Laure Bataillon 1998 de melhor livro estrangeiro traduzido na França. Foi vice-presidente da Nicarágua.