Em 1989-1991, durante a derrocada do campo socialista do Leste Europeu e da União Soviética, em que se exauriu a grandiosa experiência revolucionária aberta com a Revolução de Outubro 1917, longas colunas de desertores, perplexos e desanimados, capitulando diante do que consideravam o “fracasso” do marxismo e da ideia mesma de socialismo, foram comer na mão dos sub-pensadores do “fim da história”. Perante esse penoso espetáculo – agravado pela desenvoltura bélica da OTAN e pela ofensiva neoliberal contra as conquistas sociais dos trabalhadores nos países burgueses –, a prioridade, para os comunistas honrados, não era proceder ao exame crítico das causas e do significado do desmonte da sociedade soviética, por mais imprescindível que ele fosse, mas defender o legado teórico de Marx, Engels, Lênin e continuadores, assim como o exemplo histórico das lutas revolucionárias de todos os povos. Duas décadas depois do grande desastre soviético, acumulam-se os sinais de que as forças anti-imperialistas e socialistas chegam, em escala interna cional, ao final do período de defensiva estratégica. Em vários países da América Latina, elas estão na ofensiva. A bancarrota de Wall Street pode acelerar a crise da hegemonia planetária estadunidense, já minada pelo insucesso das aventuras bélicas de recolonização do Médio Oriente. É mais do que tempo, para o marxismo e o comunismo, de reavaliar os fundamentos filosóficos de seu combate e de suas expectativas sobre o curso da história universal. Não faltam explicações econômicas e políticas para as derrotas da luta pelo socialismo. Não perde remos tempo com os ideólogos do capital, para os quais toda tentativa de superar as “leis do mercado” e a lógica da valorização do capital estão de antemão fadadas ao insucesso. No interior do marxismo, desde a grande revolução bolchevista de outubro 1917, muitas foram as críticas dirigidas à experiência soviética, a começar pelas de Rosa Luxemburgo. A de maiores consequências político conduziu, no final dos anos 1950, à chamada ruptura sino-soviética, com desastrosos efeitos sobre o movimento comunista e anti-imperialista internacional. Mas a questão fundamental concerne à célebre definição enunciada na Ideologia Alemã: “O comunismo não é para nós um estado de coisas (ein Zustand) que deva ser implantado, nem um ideal ao qual a realidade deva se adaptar. Chamamos comunismo o movimento real que abole o presente estado de coisas (den jetzigen Zustand). As condições desse movimento resultam de premissas que já existem (der jetzt bestehenden Voraussetzung)” (1).

Essas premissas não somente continuam existindo, mas nos oferecem a chave da compreensão do mundo atual, notadamente das crises que, por serem historicamente condicionadas, assumiram maiores proporções com o desenvolvi mento da grande indústria e a importância crescente do sistema de crédito. Mas não podemos deixar de reconhecer que a realidade do “movimento que abole o presente estado de coisas” se manifesta ape nas contraditoriamente, como tendência negada pela persistente dominação das relações capitalistas de produção. No Manifesto Comunista redigido por Marx e Engels por incumbência da Liga dos comunistas, a ideia de que a tendência ao comunismo está inscrita na dinâmica histórica também se expressa no movimento objetivamente contraditório do capital: o desenvolvimento, potencialmente pujante, das forças produtivas é freado pelos limites impostos pela lógica da valorização à reprodução ampliada do processo produtivo. Mas nele se acrescenta a expectativa de que o proletariado romperia a dominação burguesa nos países europeus avançados e instauraria uma livre associação de produtores, na qual, a ciência, a técnica e todos os meios de produção da riqueza social se tornariam patrimônio comum da humanidade. Em 1848-49, como notamos em “O Manifesto e a refundação do comunismo” (2), era plausível a hipótese de que o proletariado europeu tomaria o poder nos países de maior desenvolvimento capitalista. Tomou-o em 1871 efemeramente, embora, na capital da França. Tomou o e o conservou na Rússia de 1917. No entanto, ainda que confirmando, em larga medida, as expectativas do Manifesto sobre o papel do proletariado europeu na emancipação universal do trabalho, a revolução de Outubro de 1917 comportava pelo menos dois componentes fortemente heterodoxos: o partido de vanguarda (organização revolucionária “de tipo no vo”, o Manifesto) e a aliança da classe operária com o imenso campesinato russo, construída no programa e na ação pela lúcida e audaciosa política dos bolche vistas sob a direção de Lênin. Enquanto durou o impulso revolucionário do movimento operário europeu, a heterodoxia bolchevista foi considerada desvio de rota circunstancial relativamente ao curso da revolução proletária previsto no Manifesto: rompido o elo mais fraco do capitalismo, o proletariado logo conquistaria o poder nos países economicamente mais avançados e o grande rio da História voltaria a seu curso normal (3).

Os dirigentes da Rússia revolucionária e do movimento comunista internacional tiveram razão em considerar, naquele mo mento, que estavam no prelúdio da vitória do proletariado na Europa central e ocidental. Quatro ou cinco anos depois, porém, a ofensiva proletária estimulada pela vitoriosa revolução bolchevista quebrava-se nas muralhas da reação. Mais adiante, entretanto, na Espanha, de 1936 a 1939 e nas fileiras do glorioso Exér1941 a 1945, reencontramos o movimento operário europeu, com os comunistas à frente, na linha de fogo da luta contra o nazifascismo. Nas décadas seguintes, sociais na Europa Ocidental, notadamente da greve geral de maio de 1968 na França e da revolução de 1974 em Portugal.muralhas da reação. Mais adiante, entretanto, na Escito Vermelho ou na luta armada dos partisans, de ele se manteve na linha de frente das grandes lutas

Mas a corrente principal do combate revolucionário internacional deslocara-se, a partir da longa guerra de libertação conduzida pelos comunistas chineses, passo gigantesco rumo à emancipação dos povos da Ásia, para os três continentes submetidos à agressão colonial e à dominação imperialista. Ela assumira novas formas (guerras populares) e novo conteúdo (nacional-camponês). Os resultados históricos dessas revoluções foram muito diferentes: onde e quando elas aprofundaram-se rumo ao socialismo, estava presente a fórmula da vitória soviética: a aliança operário-camponesa; onde faltou esta aliança, a luta de libertação nacional não foi além da descolonização. Mas nenhuma delas correspondeu à dinâmica histórica anunciada em 1848.

A explicação mais aceita do “desvio” das revoluções vitoriosas para a periferia colonial do sistema capitalista está na teoria do elo mais fraco: não é nos países onde o capitalismo é mais desenvolvido, mas naqueles onde as contradições provocadas pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista interagem com formas pré-capitalistas de exploração e de opressão que se criam as condições mais propícias à ruptura revolucionária. Mas na medida em que, na segunda metade do século XX, somente triunfaram as lutas de libertação nacional dos povos submetidos ao imperialismo e ao colonialismo, a noção de elo mais fraco mudou de significado. Ela tinha sido concebida para explicar por que as revoluções operário-socialistas não triunfavam nos países capitalistas mais desenvolvidos. O desvio russo cabia dentro dessa explicação, mas não o desvio colonial. Pressentida por Lênin, quando enfatizou a adesão da “aristocracia operária” dos países imperialistas à ordem burguesa, a transferência para os continentes colonizados dos aspectos mais opressivos da exploração capitalista foi justificada por Mao Tsetung em suas teses sobre o “cerco das cidades pelo campo”. A despeito de sua unilateralidade, elas apontam para o ponto cego das previsões de Marx e de Engels: a polarização em escala planetária entre o imperialismo e os povos coloniais.

O evidente descompasso entre o curso efetivo da revolução na século XX e as exaltantes expectativas sobre a missão redentora atribuída à classe operária pelo Manifesto não põe em questão nem a crítica da economia política burguesa desenvolvida no Capital e nas obras conexas (ela continua a nos oferecer a chave da compreensão do mundo atual), nem os objetivos essenciais do programa histórico do comunismo, mas tão somente a mística redentora, esse culto profano da Razão na História. Jacob Gorender (um homem cuja vida e cuja obra merecem respeito) inferiu desse descompasso, cuja expressão mais desastrosa foi a destruição da União Soviética, que “a classe operária é ontologicamente reformista”. Esta frase lamentável apenas reveste de desanimado verniz filosofante a constatação, velha de mais de um século (remonta a Kautsky, de quem Lênin a retomou), de que a consciência socialista chega “de fora para dentro” na classe operária, já que esta, espontaneamente (isto é, sem teoria e organização revolucionária), trava somente lutas reivindicativas. A conclusão que Lênin, e mesmo Kautsky, extraíram da constatação do reformismo espontâneo dos operários foi o ânimo para forjar o partido do socialismo. Com a diferença de que Lênin foi a fundo na questão, mostrando que a exploração imperialista da periferia colonial favorecia a formação de uma aristocracia operária nos países dominantes, reforçando o reformismo e a aceitação do capitalismo.

O uso recorrente do vocabulário “ontológico”, modismo intelectual difundido nos meios marxistas do Brasil pelos epígonos de G. Lukács, permite as mais díspares conclusões, servindo tanto para declarar a classe operária reformista em sua essência, quanto para confortar, num registro otimista, mas igualmente idealista, a “missão histórica” do proletariado. Comum às duas posições é supor que há uma essência humana trans-histórica, à qual se podem atribuir predicados positivos ou negativos, todos eles, como é próprio às especulações metafísicas, impermeáveis a qualquer comprovação. Não é casual a ostensiva preferência dos marxistas “ontológicos” pelo jovem Marx, do qual eles extraem uma esquemática história da “essência genérica” do homem em três atos: (1) a unidade inicial do “ser social”; (2) a ruptura dessa unidade pela alienação do trabalho, que reduz as relações entre os homens a relações entre mercadorias; e (3) a supressão da alienação pelo comunismo. O caráter revolucionário do marxismo, segundo essa doutrina pronta e fechada, estaria no reconhecimento de que a reconciliação da humanidade consigo mesma supõe a supressão do trabalho alienado. Com certeza, uma vez ultrapassada a lógica da valorização do capital e suprimida a exploração do trabalho pelo capital, a resolução feliz da alternativa socialismo ou barbárie conduzirá a humanidade a um patamar de civilização inédito. Mas não é subjetivizando a história – isto é, entendendo-a como o processo trans-histórico da alienação/desalienação do sujeito coletivo Humanidade – que chegaremos lá.

Mesmo admitindo que o marxismo não é uma filosofia, mas um movimento de ideias em que concorrem várias posições filosóficas (que vão do materialismo ao racionalismo neo-hegeliano), cabe assinalar que, no afã de enfatizar a subjetividade, o “trabalhismo ontológico” professado por alguns epígonos de Lukács e de seu discípulo francês Goldmann chega a sustentar teses frontalmente opostas às de Marx. Assim, um deles, Youssef Ishagpour, declara em uma edição de fragmentos póstumos de Goldmann, que “a fonte exclusiva da riqueza econômica” é “o trabalho” (5). Um mínimo de conhecimento sério da obra de Marx bastaria para saber que, segundo este:

“o trabalho não é a fonte (ênfase no original: nicht die Quelle) de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é exatamente nisso que consiste a riqueza material) tanto quanto o trabalho, o qual, não é, em si mesmo, nada mais do que a manifestação de uma força material, a força de trabalho humana. […] Os burgueses têm boas razões para atribuir ao trabalho uma potência criativa sobrenatural, na verdade, é exatamente o laço unindo o trabalho à natureza que faz com que o homem despojado de qualquer propriedade além da de sua força de trabalho, deva ser, em todas as sociedades e civilizações, o escravo de outros homens que se tornaram proprietários das condições materiais do trabalho” (6).

Certamente, não é atribuindo ao trabalho uma potência criativa sobrenatural que levaremos adiante o indispensável aprofundamento crítico dos pressupostos em que se apoia a ideia de que a tendência ao comunismo está inscrita na dinâmica histórica. Só os cegos voluntários podem deixar de constatar o desvio de rota relativamente ao curso da revolução proletária previsto no Manifesto. Como desviar desse desvio? Desde logo, levando inteiramente a sério, na discussão das perspectivas do programa comunista, a célebre e radicalmente materialista exortação de Lênin pela análise concreta da situação concreta. A presente situação internacional apresenta traços novos, dos quais evidentemente a crise econômica aguda no centro do capitalismo é o mais notável. Pela primeira vez desde que foi desencadeada, em 1979-1980, pelos ultrarreacionários Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, um ataque frontal contra o “welfare state” (7), os preceitos do neoliberalismo sofrem desmoralização generalizada. Mas o desgaste do inimigo não implica automaticamente o fortalecimento do movimento operário e socialista. A crise suscita a retomada das lutas sociais e enfraquece a posição hegemônica dos Estados Unidos, mas por enquanto não a ponto de impedir o prosseguimento das guerras imperialistas de recolonização, hoje concentradas no Médio Oriente. Decisivo para os comunistas nessa nova situação é discernir, em escala internacional, e transformar em plataforma unitária a mais dinâmica articulação entre o conteúdo anti-imperialista e o conteúdo socialista da grande batalha de ideias que está na ordem-do-dia. O leninismo, de novo e sempre, é o melhor guia para a ação e o melhor antídoto contra a tendência utópica a deixar de lado o curso concreto do processo histórico para somente reiterar os grandiosos objetivos finais da desalienação do trabalho.

João Quartim de Moraes é professor de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Notas
(1) Ideologia Alemã , Parte 1, A, p. 226. (ênfase do original). Sempre é bom lembrar que esse livro não foi voluntariamente publicado por Marx e Engels e que, portanto, não pode ter o mesmo peso que as obras que eles próprios publicaram.
(2) Ver Crítica Marxista, 6 (1998), p. 126-127.
(3) Lênin, em geral comedido e sóbrio em suas previsões, concluiu o discurso de encerramento do Congresso de fundação da Internacional Comunista, a 6 de março 1919, com a solene declaração de que estava próxima a hora da fundação da República Mundial dos Sovietes.
(4) Antes mesmo, porém, do esmagamento das revoluções operárias europeias de 1918-1924, a traição social-democrata ao compromisso solene de lutar contra a guerra e de não permitir que as burguesias dos países beligerantes se servissem de “seus” trabalhadores como carne de canhão, introduzira no movimento operário europeu uma amarga e duradoura ruptura.
(5) ISHAGPOUR, Y. Lukács y Heidegger, Buenos Aires, Amorrortu, 1975, p. 16.
(6) MARX, K. “Glosas marginais ao programa do partido alemão do trabalho”, in Ausgewählte Werke, band IV, op. cit., p. 382-383 (ênfase no original).
(7) Preconizada por Hayek e outros ideólogos da “reação capitalista”, essa política econômica foi aplicada experimentalmente no Chile, sob a bota de Pinochet, pelos “Chicago-boys”.

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 68, 69, 72, 73