Não é o caso de dizer que se conta uma mentira depois da outra a respeito deste assunto. Não. O problema é que se conta uma parte e não o todo. No último dia 2, por exemplo, a Rede Gazeta de Televisão reprisou um belo especial sobre Diógenes Arruda Câmara — caracterizado pela reportagem como “Stalin brasileiro” —, levado ao ar no dia 20 de dezembro, no qual o assunto foi tratado com uma enorme confusão. Não ficou claro quem — o PCdoB ou o PCB pós-1962 — era a continuidade do Partido Comunista do Brasil, fundado em março de 1922. Pois bem: qual dessas siglas representa a continuidade daquele partido revolucionário? Claro que essa é uma pergunta extraordinariamente complexa — a verdade contém muito de subjetivo.

A questão é que a versão que atribui ao Partido Comunista Brasileiro a continuação do Partido Comunista do Brasil tem sido apresentada em regime de quase monopólio até pelas organizações de esquerda. Observemos como uma nota recente do PCB trata o assunto: “A partir de 1956, com a denúncia do culto à personalidade e do stalinismo, teve início um processo de luta interna que culminou com a saída de vários companheiros do PCB. A grande maioria do Partido permaneceu no PCB, que mudou sua denominação para Partido Comunista Brasileiro, mantendo a sigla PCB. Em 1962, o grupo que se afastou do Partido cria o Partido Comunista do Brasil, resgatando a antiga denominação, e adota a sigla PCdoB (…).”

Antes de prosseguir, convém fazer uma ressalva: sob vários padrões que podem ser usados para medir a realidade, comparando o dia de hoje com dez, vinte ou quarenta anos atrás as relações entre PCdoB e PCB estão muito melhores. Retomando o fio da meada: para entender o caso, nada melhor do que verificar os fatos com base no que disseram os principais personagens envolvidos na reorganização do Partido. No debate do “Projeto de resolução do CC do PCB sobre os ensinamentos do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o culto à personalidade e suas conseqüências, a atividade e as tarefas do Partido Comunista do Brasil”, iniciado na edição do dia 15 de dezembro de 1956 no jornal Voz Operária, a questão começou a ser esclarecida.

Defesa dos princípios

Carlos Nicolau Danielli, o primeiro dirigente a contestar com vigor a influência do “stalinismo”, escreveu que o culto à personalidade de Stalin surgiu no PCB após o término da Segunda Guerra Mundial — enquanto os métodos mandonistas existiam desde a fundação do Partido. “Mesmo que o culto à personalidade tivesse surgido antes em nosso Partido, não poderia ter tido influência decisiva nos maus métodos de direção, pois não conhecíamos os métodos utilizados por Stalin”, escreveu ele. Para Danielli, a correção dos erros deveria ser feita na luta prática, diária, na realização das tarefas partidárias. “(…) Devemos defender os princípios, que podem ser enriquecidos (…), mas não podem ser deixados de lado ou revistos, mesmo ‘à base de princípios’, como estão se manifestando agora certas idéias revisionistas”, disse.

Em todos os seus artigos — e ele escreveu um bocado neste debate —, Danielli levantou a bandeira da defesa do Partido. “Os princípios (…) devem ser defendidos sob pena de o Partido perder suas características essenciais de um partido revolucionário, apto a enfrentar situação ‘pacífica’ ou violenta, e se transformar num partido pequeno-burguês democrata”, escreveu. Danielli e outros dirigentes comunistas — principalmente João Amazonas — rejeitaram com ênfase a tese superficial daquela primeira vertente revisionista, mas não ignoraram, já no início do debate, que existiam problemas sérios. “É necessário o Partido encontrar, em cada situação histórica-concreta, a justa relação entre a democracia e o centralismo, a fim de que, de um lado, não caiamos no liberalismo (…) e, de outro, não acentuemos demasiadamente o centralismo, afogando a democracia e a luta de opiniões no interior do Partido”, disse Danielli.

Liquidação do Partido

Pode-se afirmar com segurança que havia naquele primeiro embate uma manipulação dos fatos com uma finalidade mal escondida — a liquidação do Partido. Maurício Grabois, que acompanhou com Diógenes Arruda Câmara o 20º Congresso do PCUS e permaneceu na União Soviética até o final do ano de 1956, escreveu em 1960, durante o 5º Congresso do PCB, que o debate de 1956/57 deu guarida a idéias anticomunistas, antipartidárias e anti-soviéticas. Ele chegou a sugerir à direção do Partido a suspensão imediata do debate. Os porta-vozes dessas idéias que Grabois classificou como “malsãs” eram basicamente militantes que atuavam na imprensa do Partido. As críticas estavam baseadas na idéia — desmascarada por Danielli — de que o PCB era uma cópia do PCUS.

Quem pagou caro pela difusão desse preconceito foi Diógenes Arruda Câmara — na prática o principal dirigente do Partido desde a sua primeira reorganização na Conferência da Mantiqueira, em 1943. Tanto que ele se afastou da militância até ser convencido por Amazonas e Grabois a retornar ao Partido depois da sua segunda reorganização, em 1962. Grabois conta que idéias reformistas e revisionistas do debate de 1956/57 acabaram se impondo no Partido. Mas no debate do 5º Congresso, em 1960, elas ganharam uma formulação claramente mais sofisticada. O antológico texto de Grabois “Duas concepções, duas orientações políticas” resume a questão. Para ele, a nova orientação traçada pelo Comitê Central em março de 1958, com a “Declaração de Março”, defendia uma linha “oportunista de direita”.

A Carta dos Cem

A polêmica, com se sabe, evoluiu para o “racha”. Já no 5º Congresso, doze dos vinte e cinco membros do Comitê Central — além de vários suplentes — não foram reeleitos. Entre eles estavam Maurício Grabois, João Amazonas e Diógenes Arruda Câmara. Mais tarde foram afastados também Pedro Pomar, Danielli e Ângelo Arroyo. E, mais adiante, uma nova leva de dirigentes — Lincoln Oest, José Duarte, Walter Martins e Calil Chade — também seria destituída. Era a consolidação da direção que defendeu a nova linha política pós-20º Congresso do PCUS. No dia 11 de agosto de 1961, o jornal Novos Rumos publicou um suplemento com o programa e os estatutos do Partido Comunista Brasileiro, de inspiração visivelmente revisionista. A direção eleita no 5º Congresso pretendia, com os novos documentos e a mudança de nome, obter a legalidade da nova agremiação.

O problema é que esse ato contrariava o artigo 32 dos Estatutos do Partido. “As decisões do Congresso são obrigatórias para todo o Partido e não podem ser revogadas, no todo ou em parte, senão por outro Congresso”, dizia o documento. Em resposta, os comunistas que combateram a linha política da “Declaração de Março” organizaram um abaixo-assinado — a Carta dos Cem — pedindo à nova direção a revogação das medidas anunciadas. Na Carta, eles disseram que a mudança de nome do Partido era “uma séria concessão às forças reacionárias”. De fato, quando a reação lançou os comunistas na ilegalidade, em 1947, o principal pretexto foi o de que o nome do Partido deixava claro que o PCB era um instrumento da política externa da União Soviética. “Na realidade, essa alteração tem sentido mais grave — procura-se registrar um novo partido, com programa e estatutos que nada têm a ver com o verdadeiro Partido Comunista”, diz a Carta.

Resposta a Krushov

A resposta da nova direção veio na forma de dissolução de organismos nos quais atuavam militantes divergentes e “expulsões” dos principais signatários da Carta. No dia 5 de janeiro de 1962, o Novos Rumos publicou um editorial atacando duramente os principais responsáveis pela direção do Partido desde a Conferência da Mantiqueira, realizada em 1943, quando o PCB foi reorganizado após ser destroçado pelo Estado Novo. Segundo o novo PCB, o “grupo fracionista Amazonas-Grabois-Pomar”, como eles foram caracterizados recorrentemente pelo editorial, foi “expulso” devido a “atividades antipartidárias e divisionistas, à violação da disciplina e a luta contra a unidade do movimento comunista”.

Esta última acusação resume a visão que os dirigentes do novo PCB tinham da polêmica. Para eles, os antigos dirigentes do Partido estavam influenciados pela divergência da China com a União Soviética — versão publicada no Pravda, o órgão central do PCUS, no dia 14 de julho de 1963, e fartamente utilizada pela chamada “grande imprensa”. “A acusação dos dirigentes soviéticos (…) não passa de afirmativa totalmente divorciada da verdade, de uma simples calúnia”, disse o Partido na famosa resposta a Krushov. “Os fatos demonstram sobejamente que a cisão teve como causas principais fatores de ordem interna”, diz o texto. De fato, esses fatores estão bem demonstrados em documentos que infelizmente não são facilmente encontrados nas publicações tradicionais que tratam ou trataram do assunto.

Fontes riquíssimas

No encerramento do debate do 5º Congresso, Pedro Pomar escreveu que tinha esperanças de que a defesa feita por Prestes, no único artigo por ele publicado, de uma “justa linha política revolucionária para o Partido” viesse a se concretizar. O texto da Carta dos Cem termina com esta conclamação: “Ao adotar essa posição, confiamos que nas fileiras do próprio Partido existam forças suficientes para derrotar as tendências errôneas e encontrar o acertado caminho para resolver as dificuldades que o Partido enfrenta.” Ao longo de todo o debate interno — iniciado em 1956/57 e encerrado em 1960 — é facilmente perceptível que os principais fatores que levaram à cisão eram de fato predominantemente internos.

O problema é que no curso do processo do 5º Congresso solidificou a tendência revisionista, culminando com a criação do novo PCB — o que não deixou aos antigos dirigentes outra alternativa senão a reorganização do Partido. Segundo Amazonas, as coisas poderiam ter outro desenvolvimento se na Conferência da Mantiqueira eles tivessem adotado uma medida simples: a eleição de Diógenes Arruda Câmara para a secretaria geral do Partido em lugar de Prestes. Pode ser. Mas o fato concreto é que, mesmo como foi, há evidências hoje de que a verdadeira história do Partido ainda tem pouca divulgação. E, para bem conhecê-la, os textos dos comunistas que combateram o revisionimo — principalmente os de Grabois, Amazonas, Pomar e Danielli —, que além de hábeis dirigentes eram jornalistas brilhantes, são fontes riquíssimas.

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Coluna publicada no Portal Vermelho no dia 5 de janeiro de 2005