Álvaro Cunhal: O Partido e o ideal comunista
Quisemos com esta iniciativa assinalar os cinco anos da morte do camarada Álvaro Cunhal, mas também e fundamentalmente a celebração de uma vida inigualável, de uma obra notável pela sua intensidade e profundidade, de uma luta por um ideal e um projecto que hoje continuam ancorados em cada um de nós e a ser prosseguidos por homens, mulheres e jovens, neste Partido Comunista Português. Nas circunstâncias históricas em que decorreu a sua vida, Álvaro Cunhal soube transformar-se num exemplo de coragem, de empenhamento militante e revolucionário, de dedicação ao seu Partido e amor ao povo português. Aliou ao testemunho prático da sua vida um contributo teórico que, tendo valor histórico, mantém uma actualidade e uma validade que nos ajudam na análise e na compreensão de um mundo em movimento, na força das convicções e na justeza da nossa luta.
No ciclo de iniciativas sobre Álvaro Cunhal intitulado “Uma vida dedicada aos trabalhadores e ao povo” optámos pelo livro O Partido com Paredes de Vidro, já que se assinalam os 25 anos da sua publicação e porque simultaneamente encerra análises e questionamentos de grande actualidade, capazes de se transformarem numa preciosa ferramenta para a nossa acção.
É esse o sentido que damos à linha de divulgação e aprofundamento do estudo da obra de Álvaro Cunhal, que promovemos. Um trabalho que passa pela disponibilização das Obras Escolhidas, cujo terceiro volume está em preparação e que será editado em Novembro. Um trabalho de divulgação e aprofundamento do estudo, tendo em conta as prioridades de cada fase e em que, na actual situação, duma obra vasta, destacamos O Partido com Paredes de Vidro, grande contributo para a afirmação do Partido e do projecto comunista, o Rumo à Vitória e a A Revolução Portuguesa: o Passado e o Futuro, contribuição decisiva para a análise da realidade nacional e a definição dos objectivos e das tarefas do Partido. Destaque também para as obras Acção Revolucionária, Capitulação e Aventura e O Radicalismo Pequeno Burguês de Fachada Socialista, expressão de um combate ideológico cuja apreensão contribui para enriquecer a análise e a acção.
O seu prefácio constitui uma síntese que, não subestimando a crítica e autocrítica, confirma o valor e actualidade de princípios fundamentais inscritos no ensaio. O prefácio não substitui a análise feita então em 1985.
Em primeiro lugar, partindo da publicação do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, sublinha o facto de a classe operária, os trabalhadores, os explorados e oprimidos, alcançarem grandes vitórias que mudaram radicalmente a situação mundial.
A Revolução de Outubro e a edificação, pela primeira vez na história da humanidade, de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem, a construção do socialismo na URSS e noutros países, os abalos e a queda do império colonial, as conquistas de importantes direitos dos trabalhadores, mesmo em países capitalistas, a par de avanços civilizacionais à escala planetária, são factos que Álvaro Cunhal revela como “época gloriosa da história da humanidade”.
Com sentido autocrítico sobre a irreversibilidade das vitórias do socialismo, analisando e avaliando as consequências das derrotas e recuos verificados, reafirmando o valor das vitórias das causas comunistas e simultaneamente que o capitalismo roído por insanáveis contradições internas, incapaz de responder às legítimas aspirações económicas, sociais, políticas e culturais da humanidade, não será o sistema único nem final e terá de defrontar a luta dos trabalhadores, dos povos e das nações. A crise actual do capitalismo é uma demonstração que valida esta análise. O socialismo é a alternativa.
A questão da natureza de classe de um partido comunista constitui uma pedra angular da sua origem e existência. Partido da classe operária e dos trabalhadores, com um papel de vanguarda concebido não como força superior de comando, que aprende e se funde com a classe e as massas populares, portadora do conhecimento aprofundado dos problemas, actuante na defesa firme e permanente dos interesses de classe e que afirma a sua independência no plano político e ideológico às pressões e às medidas repressivas do poder do capital.
Partido que, perante as modificações profundas verificadas na composição social da sociedade e da própria classe operária, não retira validade à sua natureza de classe, não abdica da defesa dos interesses e direitos de todas as classes e camadas antimopolistas e não desliga dos seus princípios fundamentais da divisão da sociedade em classes – a política de classe do poder político e a luta de classes inseparáveis de todos os acontecimentos sociais e políticos.
O trabalho colectivo
O livro O Partido com Paredes de Vidro desenvolve a questão do trabalho colectivo. Álvaro Cunhal projectou a ideia da Direcção e do trabalho colectivos, mas foi mais longe: à concepção do próprio Partido como um grande colectivo.
Ao definir que no Partido não existem militantes de diversas categorias, mas militantes com diversas responsabilidades, exemplifica com a preparação e realização do trabalho corrente, de grandes acções de massas, de iniciativas políticas, de assembleias, de conferências nacionais, de congressos, das festas do Avante!, como demonstrações exaltantes de vitalidade e valor do trabalho colectivo. Mas Álvaro Cunhal não dispensa, antes valoriza e estimula as opiniões e as críticas individuais como parte integrante e insubstituível do trabalho colectivo. Com sentido dialéctico afirma que nem a responsabilidade e a responsabilização do colectivo extinguem a responsabilidade individual, nem estas apagam a responsabilização do colectivo.
Esta concepção teórica que resulta de uma análise concreta, num partido concreto e num país concreto, revela a aplicação do marxismo-leninismo à luz da nossa realidade, alicerçada nos elementos que nos caracterizam e que conduzem à afirmação de um partido marxista-leninista com experiência própria. Acolhendo os ensinamentos e contribuições de Lénine para surgimento do partido de novo tipo, construímos um partido revolucionário capaz de, com os trabalhadores e as massas populares, transformar a sociedade e concretizar o seu projecto comunista.
Muitas das reflexões e contributos nele integrados, designadamente no âmbito do desenvolvimento criativo do centralismo democrático, são posteriormente introduzidos nos Estatutos do Partido, acompanhando uma importante repercussão na vida partidária.
Nesta obra fascinante de Álvaro Cunhal, encontramos no momento de grande intensidade de luta, intervenção e iniciativa política, a importância da organização como expressão e instrumento da força do Partido e princípio geral e universal de trabalho.
O livro define o conceito integrado da organização e da luta de massas. Como afirma, a organização é um instrumento capital para promover, orientar e desenvolver a actividade da luta de massas. E a actividade e luta de massas constitui o terreno fecundo em que germina, se desenvolve, floresce e frutifica a organização do Partido.
A luta de massas e o reforço do Partido
Inspirados por esta visão audaciosa, no XVII Congresso lançámo-nos, sob o lema “Avante por um PCP mais forte!”, no reforço do Partido. Na responsabilização de quadros e sua formação política e ideológica, no rejuvenescimento do núcleo de funcionários do Partido e do conjunto dos seus quadros, no papel crucial da organização junto da classe operária e dos trabalhadores nas empresas e locais de trabalho, no recrutamento, no fortalecimento das organizações de base, na intervenção junto de outras camadas sociais em particular da juventude, nas questões financeiras, na dinamização e divulgação da nossa imprensa, com destaque para o jornal Avante!.
Num rasgo teorizou sobre a inexistência de um conflito geracional do Partido, sobre o valor dos militantes de antes ou depois do 25 de Abril.
Álvaro Cunhal tinha a consciência de que o reforço da organização era uma das tarefas mais exigentes mas, tal como nós, sabia ser das mais realizadoras para um partido como o nosso. Pelo partido que temos, pelo partido que somos, pela sua natureza, pelo seu ideal, pelo seu projecto de uma democracia avançada, pelo socialismo, pela luta do sonho milenar do ser humano de se libertar da exploração.
Não cabe numa intervenção desenvolver toda a riqueza de pensamento e análise expressas nesta obra.
O livro sistematiza uma experiência de muitas décadas da acção do Partido, da intervenção de milhares de militantes, em circunstâncias históricas diferenciadas e, centrando-se na experiência dos comunistas portugueses, comporta, explícita ou implicitamente, uma observação da experiência mais vasta do movimento comunista internacional. Ele promove uma apreciação crítica sobre aspectos diversos, no plano nacional e internacional, ao mesmo tempo que afirma teses essenciais e caminhos indispensáveis para o reforço do Partido e a afirmação do projecto comunista.
O livro visou um objectivo principal, referido por Álvaro Cunhal: “Dar a conhecer como nós, os comunistas portugueses, concebíamos, explicávamos e desejávamos o nosso próprio partido” e aborda uma grande amplitude de matérias com densidade e profundidade.
Dele decorrem diversos ângulos em que é transversal o projecto dos comunistas em contraposição ao sistema capitalista, baseado na exploração e no lucro e do qual decorre todo um sistema de valores. Desde a dimensão humanista, à forma como, com base na nossa própria experiência e sem pretender dar lições a ninguém, se alertava para traços negativos existentes noutros partidos comunistas, para o combate ao dogmatismo e à petrificação do pensamento, ao esquerdismo inconsequente e às tendências reformistas, social-democratas ou socialdemocratizantes, para o combate ao culto dos vivos e ao culto dos mortos, revelando a questão da ética e da moral dos comunistas como valores que estão subjacentes ao nosso projecto.
Álvaro Cunhal recusava a ideia do ser perfeito ou produzido em molde e em série. Os comunistas são seres humanos com tudo o que isso significa. A diferença ética e moral reside na opção em defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo, nos valores do trabalho e da solidariedade, contra os valores que radicam na exploração, no lucro, na depredação dos recursos, na opção da defesa dos interesses do grande capital acima de tudo e justificação para tudo.
Actualmente é sabido que grassa a corrupção no nosso país. Não é uma questão marginal que resulta deste ou daquele acto isolado mas um fenómeno que é intrínseco à lógica implacável da exploração e do lucro.
Dizer a verdade ao povo
Uma palavra ainda sobre aquilo que Álvaro Cunhal caracteriza como o amor pela verdade como componente da moral comunista. Uma das razões por que no tempo da ditadura fascista os comunistas foram perseguidos, torturados, condenados e assassinados era porque os comunistas diziam a verdade ao povo.
Após o 25 de Abril e até aos dias de hoje os partidos da política de direita mentem, enganam, dizem uma coisa e fazem outra. Afirma o camarada Álvaro Cunhal que o amor pela verdade pode custar caro a quem o exercita. Mas a verdade acaba por triunfar sobre a mentira. A política de mentira está condenada à derrota final. É à política da verdade que o futuro pertence.
A questão da unidade do Partido amplamente desenvolvida no O Partido com Paredes de Vidro conduz a uma primeira ideia. A unidade do Partido não resulta de quaisquer medidas especiais para assegurá-la mas de toda a orientação e prática no partido. Estabelecendo cinco alicerces: a unidade política é um primeiro fundamento; o segundo é a acção comunista em estreita conexão com a classe e as massas; o terceiro é a coesão orgânica; o quarto é o trabalho colectivo e a transformação da noção do trabalho colectivo em traço inerente ao estilo de trabalho do PCP; o quinto é o marxismo-leninismo. Faltando qualquer destes alicerces seria a unidade do Partido a ser enfraquecida.
Nesta obra ímpar, Álvaro Cunhal acaba como começa. Com o Partido e o ideal comunista. Este Partido e esse ideal que o animou a sua vida toda.
Apesar da sua vasta e enriquecedora obra teórica, apesar do seu exemplo exaltante de revolucionário, Álvaro Cunhal sabia que era uma obra inacabada em termos históricos, cujo processo de transformação social continuaria para além do seu tempo como continuará para além do nosso tempo. Mas legou-nos preciosas ferramentas e uma vida exemplar que nos inspira na nossa acção e na nossa luta e torna inquebrantável o nosso ideal.
A melhor e maior homenagem foi feita pelo povo no momento da sua morte. A melhor e maior homenagem que lhe podemos fazer é dar vida à sua obra e ao seu exemplo, dando mais força ao Partido revolucionário, patriótico e internacionalista, ao Partido Comunista Português.
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Fonte: jornal Avante!