CDM conversa com… Raphael Martinelli
Martinelli, 86, abordou um período importante da história da esquerda brasileira. Filho do bairro paulistano da Lapa começou a trabalhar cedo, aos 15 anos, na Artefatos Tupi, como escriturário. Jogou futebol no Corinthians do Anastácio, como ponta esquerda. E se coloca como “muito bom de bola – fazia gol de chaleira”.
Em 1941 começou a trabalhar na ferrovia, na administração da Estação da Luz, em São Paulo. Eram tempos de guerra, “muita crise, era uma violência. Não tinha sábado e nem domingo, trabalhávamos 14, 16 horas por dia.” Diante das pesadas jornadas de trabalho na ferrovia, sua carreira no futebol se encerrou.
Passou de função rapidamente e criou sólido prestígio entre os ferroviários. Conheceu o funcionamento da ferrovia, as linhas, os trajetos e as estações; e também os maquinistas, foguistas, lenheiros, controladores de vagão e demais companheiros de trabalho. Acompanhou de perto a forma que aqueles trabalhadores se organizavam. E logo entendeu que a natureza do “trabalho ferroviário determina a forma de organização sindical, sua democracia interna”.
Acabou se especializando em escalas das movimentações dos trens. Tinha que ter contato com várias estações para dar e receber informações. “O movimento na Luz é que controlava tudo, tinha todas as informações de posições, chegadas e partidas dos trens.”
Seus irmãos eram do Partido Comunista do Brasil (PCB), o que fez Martinelli em família conhecer as reivindicações dos trabalhadores e a organizar reuniões, contatar referências de outras linhas. “A minha carreira na ferrovia ia ao mesmo tempo que eu contribuía para o Partido.”
A grande greve dos ferroviários
Eurico Gaspar Dutra “um dos presidentes mais ditadores que o Brasil já teve, um canalha. O Dutra fechou todos os sindicatos, acabou com tudo, interviu. E o nosso [sindicato] era ocupado por policiais, sem vergonhas”. Dessa forma o sindicato dos ferroviários não tinha contato com os trabalhadores, não conhecia a realidade e não tinha uma plataforma de reivindicações para a categoria. Durante o Estado Novo os ferroviários tiveram muita dificuldade para se organizarem, devido à forte perseguição aos comunistas e democratas por um lado, e por outro, o forte aparelhamento dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho.
Em 1946, o governo Dutra teve que cumprir a fachada democrática, que derrubara o Estado Novo no ano anterior e convocar a Assembléia Nacional Constituinte. Quase que ao mesmo tempo, foi feita uma greve que tinha por plataforma a denúncia do caráter pelego do sindicato dos ferroviários e a permuta das dívidas que a Inglaterra tinha com o Brasil pelas ferrovias construídas por aquele país. Já que as ferrovias custavam uma quantia muito menor do que a dívida era uma manifestação clara do governo de colaboração com o imperialismo inglês. As manifestações foram duramente reprimidas pela polícia.
Dessas manifestações surgiu um excelente dirigente sindical, o maquinista Antonio Gonçalves Viana que foi fundamental para a organização da greve de 1949. O maquinista foi aproximado do movimento sindical mais geral e “aí nós organizamos toda a ferrovia.”
A onda democrática que promulgou a constituição de 1946 não durou muito e no ano seguinte o governo Dutra colocou na ilegalidade a União da Juventude Comunista (UJC), a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), o Partido Comunista do Brasil, e o seu jornal diário do Rio de Janeiro, a Tribuna Popular.
O impacto da ilegalidade foi imenso para o conjunto partidário. Toda a construção política e orgânica feita no tempo legal teria de passar por profunda transformação. A face política e programática refletiu no Manifesto de Agosto, de 1948. Esta guinada à esquerda conclamava a derrubada de Dutra e a luta armada.
A greve dos ferroviários de 1949 que denunciou a tentativa do governo de flexibilizar direitos trabalhistas, acabou que, “a polícia caiu em cima, arrebentando com a gente”, ouve desorganização dos horários que as linhas iam parar e 253 companheiros ficaram desempregados. Conseguiram manter o emprego Martinelli e nem meia dúzia de outros comunistas. “Aí sim começou de verdade a minha atuação no Partido. E os dirigentes começaram a dar mais valor às ações dos ferroviários.”
“A partir daí foi organizar os ferroviários, organizar, organizar, organizar. O Partido tinha até o Comitê Estadual dos ferroviários, onde o camarada Ferreira era o nosso assistente”. Era bastante complexa a organização dos ferroviários. Mas era estratégica a preocupação com essa frente, pois as greves travavam a circulação de mercadorias e de passageiros pelo estado.
Em 1950, houve uma assembléia, puxada pelos ferroviários comunistas, para que o governo realizasse a imediata reincorporação dos trabalhadores demitidos por participarem da greve do ano anterior. Na entrada da grande reunião, policiais liberavam a passagem apenas para os que portavam a carteirinha de ferroviário. “Estávamos com medo que os demitidos não comparecessem. Mas na hora estavam todos lá, o lugar ficou pequeno para aquelas centenas de trabalhadores.”
A assembléia também votou a mudança de diretoria do sindicato dos ferroviários. A partir daí os comunistas participam do sindicato com alguns membros, Martinelli foi um deles – atuou como tesoureiro do sindicato. “Às vezes é mais importante que o presidente.”
Ferroviários após a volta de Vargas
Com Getúlio Vargas de volta à presidência a situação para os sindicalistas ferroviários aliviou. Dessa forma o PC do Brasil começou a se enraizar com mais força na categoria. Dezenas de companheiros espalhados por toda a malha ferroviária “todos organizando o nosso movimento.”
Todo esse caldo político desaguou na eleição do sindicato em 1952. A essa altura o governo Getúlio Vargas estava tateando soluções com as grandes empresas petroleiras a propósito do monopólio estatal do petróleo brasileiro. Na correlação de forças tinha por um lado, Carlos Lacerda e a UDN desgastando Getúlio, por outro os comunistas e outras forças da esquerda brasileira dizendo que o presidente estaria “ligado ao imperialismo”.
As campanhas pela paz, contra a bomba atômica e contra a guerra na Coréia, marcavam a oposição ao imperialismo nesse momento de guerra fria. Getúlio ao mesmo tempo em que ameaçava mandar tropas brasileiras para a Coréia, sentava com as categorias organizadas, por exemplo os ferroviários. “E fomos lá conversar com o Getúlio, eu tenho a foto até hoje. Estava um clima bem tenso naquele dia.”
Em 1952, o Partido Comunista do Brasil começou a atuar por dentro dos sindicatos dirigidos pelos pelegos e a partir daí começam a dar novo conteúdo ao movimento sindical brasileiro.
A chapa eleita para o sindicato conseguiu 1.800 votos e tinha o presidente do PTB, a tesouraria com o comunista Martinelli e na secretaria geral o também comunista Antonio Dozzo. Deste Martinelli fala com muita admiração sobre a sua firmeza contra os desmandos dos patrões “tem todo o meu respeito, aprendi muito com ele”. Antonio Gonçalves Viana também estava na chapa, mas já sem lá grandes atuações, “era um homem honesto, Católico Apostólico Romano e cheio de filhos, tinha prestígio entre os colegas maquinistas”.
Os meninos de Porfírio
A chapa com “notórios comunistas grevistas”, Martinelli, Antonio Dozzo, o segundo secretário, o Fradinho do Conselho Fiscal, não pode tomar posse logo após a eleição, em outubro de 1952, “não havia acordo com o Ministério do Trabalho” – o que não aconteceu com seu irmão, o comunista Fortunato Martinelli, que foi eleito e empossado presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Os ferroviários assumiram, de fato, a direção do sindicato em março de 1953. Para isso, articularam uma frente ampla que contou até com o coronel Porfírio da Paz, Vice-Governador do estado.
Homem de relativo prestígio popular, Porfírio da Paz era filiado ao PTB e tinha respeito pelos comunistas. Percebendo a demora desnecessária para a concessão da posse da diretoria do sindicato à chapa eleita, Porfírio, foi pressionar o ministro do trabalho junto com uma delegação de ferroviários. O ministro reagiu de forma contrária “são todos comunistas, Porfírio!”
Porfírio retrucou “comunistas nada, são meus meninos, são meus meninos. Tem que dar posse!” E a posse foi dada. Martinelli ressalta que foi fundamental construir alianças para dar posse à diretoria do sindicato.
Logo após à posse os ferroviários entraram na greve geral que ficou conhecida como “greve dos 300 mil” de São Paulo e a soma do país inteiro chegou a 800 mil. Além das reivindicações específicas das categorias a greve geral de 1953 ainda tinha como plataforma o fim do acordo militar Brasil e Estados Unidos – que visava o envio de tropas brasileiras para a guerra da Coréia –, pelo fim das armas nucleares, contra a carestia de vida e pelo o monopólio estatal da exploração do petróleo.
A repressão aconteceu em todas as capitais que houve greve. Centenas de trabalhadores foram presos e milhares ficaram feridos. A greve na Estrada de Ferro Sorocabana parou três mil trabalhadores pela libertação de dois companheiros presos. Fizeram uma passeata num trecho dos trilhos e foram violentamente atacados pela polícia. Em batalha campal reagiram tendo resultado dezenas de feridos, entre eles, nove policiais.
Enquanto os ferroviários estavam na luta pela posse da diretoria do sindicato, se armava uma imensa greve entre têxteis, construção civil, metalúrgicos, marceneiros, gráficos. Ficou conhecida como “greve dos 300 mil”. O movimento, em São Paulo, abarcava a capital, Jundiaí, Santo André, Sorocaba, além de outras cidades industriais importantes. Após a posse do sindicato “fomos direto para a greve, paramos tudo. A gente dominava a ferrovia, mesmo.”
“A organização ferroviária tem as bases em Santos, Paranapiacaba, Jundiaí, Pari, São Paulo, Lapa. Depois reunia todo o Partido e organizava o comitê de empresa, este comitê de empresa tinha depois ligação com o comitê estadual dos ferroviários.” Esse comitê foi de imensa importância para a organização dos comunistas no estado de São Paulo. Os membros do partido, das cidades do interior, recebiam materiais e orientações através do comitê estadual dos ferroviários.
“Em 1954, eu não sei até que ponto o Partido estava correto”, afirma Martinelli sobre aposição dos comunistas diante do governo de Getúlio Vargas. O presidente mais popular, até então, sofria pressões da UDN, da imprensa em geral e dos comunistas. Suicidou com um tiro no peito que respingou na oposição. Os comunistas, entendendo a gravidade da situação, iniciam uma aliança com os trabalhistas, mostrando maior flexibilidade tática.
O 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, deu uma guinada no movimento comunista internacional. As denúncias dos crimes de Stalin e do culto à personalidade tiveram violento impacto nos partidos comunistas. No Brasil predominou no Partido a visão reformista que se aglutinou em torno de Prestes.
Revolucionários como Maurício Grabois, João Amazonas, Pedro Pomar, entre outros, reorganizaram o Partido Comunista do Brasil, agora com a sigla PCdoB, em fevereiro de 1962. A fração de revolucionários contava por volta de 200 comunistas, uma minoria perto do que ficou com o PC Brasileiro. A única categoria que rompeu com o reformismo da época foi os ferroviários da Leopoldina (RJ). “O Ferreira que tinha ido para o PCdoB arrastou um monte de gente.”
Para o golpe militar se realizar era preciso neutralizar as lideranças sindicais de algumas categorias. “No dia do golpe, a polícia do Lacerda invadiu o sindicato da estiva e prendeu todo mundo.” Martinelli fazia parte da primeira lista de prisões. “O Osvaldo Pacheco – ex deputado Constituinte de 1946 – fez um puta discurso bonito sobre democracia, nunca vou me esquecer. O delegado falou ‘Tá bom, você falou bonito Pacheco, você tem três minutos pra sair daqui’; mas nem deu os três minutos e a polícia invadiu.”
Depois do golpe militar, a crise interna que vivia o PC Brasileiro se agravou entre as correntes que defendiam atuação pela legalidade ou a luta armada. Joaquim Câmara Ferreira, Carlos Marighela, Raphael Martinelli e outros revolucionários saíram por espontânea vontade ou mesmo foram expulsos e montaram a Ação Libertadora Nacional (ALN).
Hoje Martinelli é presidente do Fórum Permanente de Ex Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo, eterno militante ferroviário fala com entusiasmo sobre a Rede Ferroviária Federal. Protetor afetuoso dos 140 mil ferroviários brada com firmeza: “Não mexa com a minha categoria! Ela tem mais de cem anos.”
Aos 86 anos Raphael Martinelli tem a mesma vida agitada de quando era um jovem ferroviário. Durante a entrevista atendeu ligações de suas atividades políticas atuais, falou com a família, articulou a homenagem a Luiz Carlos Prestes que acontecerá 23 de agosto de 2010, na Câmara Municipal de São Paulo. A todo o momento mostra que não perdeu a chama revolucionária e tem orgulho da sua atividade política: “fui disciplinado para a tomada do poder!"