SUS: o desafio de ser único
Considerando as restrições fiscais do governo é possível fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS)? Esse projeto pode ser garantido, paulatinamente, por meio de um pacto federativo com apoio das instituições do Ministério da Saúde (MS) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
Visando atender as necessidades de saúde da população, essa política é redistributiva e estimula um setor intensivo em mão de obra. Bem calibrada com o crescimento da economia, ela não desestabilizaria o orçamento público e, em certas condições, contribuiria até para a redução da inflação setorial.
Em 1988, os sanitaristas apostaram na universalização para todos, na redução do mercado de planos de saúde e na melhoria das condições de atenção médica em todos os níveis. Vinte anos depois, o SUS colecionou experiências exitosas na erradicação de doenças, na redução da taxa de mortalidade infantil, na ampliação da assistência médico-hospitalar, na expansão do programa de saúde da família e das unidades de pronto atendimento 24 horas, virando referência mundial no tratamento da Aids.
No entanto, o financiamento público continua baixo, o mercado de serviços de saúde cresceu e a estratificação de clientela não foi superada. Esse cenário se explica, em parte, porque o Estado não priorizou a aplicação de recursos para cobrir a atenção médica do polo dinâmico do mercado de trabalho (o gasto público em saúde responde tão somente por 45% do total). E, vale dizer, parece razoável afirmar que, em boa medida, os entraves administrativos do SUS decorrem desse gargalo no financiamento nas principais regiões metropolitanas.
Para reverter esse quadro, deve-se incrementar o financiamento do SUS, aprovando a emenda constitucional nº 29 e definindo o escopo das ações e serviços de saúde; diminuir a desigualdade de acesso; melhorar a gestão e qualidade dos serviços; enraizar as ações de atenção básica; planejar a relação público/privado ampliando ações regulatórias (vide o contencioso do ressarcimento), regulando a eficácia da incorporação de tecnologia e refreando a duplicação da oferta.
Além do mais, para quem analisa as políticas de saúde no cenário internacional não é novidade refletir sobre novos modos de intermediação do financiamento de serviços privados de saúde, tampouco apontar o caráter inequitativo da renúncia de arrecadação fiscal.
É legítimo propor que o Estado, considerando seu poder de compra (economia de escala), atue como braço de apoio da agência reguladora para relativizar o poder dos oligopólios, para sancionar a concorrência regulada e para reduzir os preços (mantida a cobertura e a qualidade). Foi essa ideia-força, inclusive, que orientou a proposta do "Plan Public Option" da reforma de Obama na área da saúde, que previa a ampliação da intervenção governamental para resolver a ineficiência do setor privado.
Estima-se que o governo brasileiro deixou de arrecadar quase 1/3 do gasto público federal aplicado no setor saúde em 2006. Trata-se de um gasto tributário destinado aos estratos intermediários e superiores de renda (IRPF), aos empregadores (IRPJ), à indústria farmacêutica e aos hospitais filantrópicos.
Em particular, dado o faturamento dos planos privados de saúde, que alcançou R$ 65 bilhões em 2009, eles deveriam caminhar em direção à autossuficiência. Afinal, nos últimos 40 anos, esse mercado se expandiu contando com um subsídio à demanda – que concentra renda e subtrai recursos do setor público. Hoje, por exemplo, eles fazem falta para aumentar os salários dos profissionais de saúde, reduzir o tamanho das filas do SUS e garantir a qualidade tão reivindicada pelas classes médias.
A solução não é trivial: ou se continua mantendo a forma privada de atividades socialmente importantes, aplicando mecanismos de subvenção estatal, ou se investe pesadamente no SUS, caso se queira fustigar esse modelo de proteção liberal estranho ao universalismo constitucional.
Uma vez americanizado o sistema, mais exacerbada será sua segmentação, privatização e terceirização. Seria um erro, portanto, privilegiar uma visão fiscalista, em que o fomento ao mercado de planos de saúde aparece como solução pragmática para desonerar as contas públicas.
Temos condições, entretanto, de consolidar o orçamento da seguridade social, para alargar o direito de atenção à saúde e para dotar o SUS da característica de único, como nos ensinam, de certa maneira, os países europeus e o próprio Canadá?
Além das medidas acima preconizadas, de um lado, é necessário persuadir as centrais sindicais, os funcionários públicos e os trabalhadores urbanos quanto à necessidade de transitar do modelo americano (seguro privado) para aqueles consagrados pelo Estado de bem-estar (seguro social e seguridade). De outro, é importante inibir o empresariamento médico, que transgride a ética da medicina ou se utiliza indevidamente do SUS. E, finalmente, é preciso avançar na redução da miséria, da desigualdade, dos baixos níveis educacionais e da violência social, pois, cotidianamente, pressionam e desafiam o sistema.
A eleição presidencial é um momento oportuno para debater esse e outros assuntos cruciais para o movimento pela democratização da saúde. Não é à toa que será realizada em dezembro a I Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social em Brasília.
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Carlos Octávio Ocké-Reis é economista do IPEA com pós-doutorado na Yale School of Management e ex-assessor da presidência da Agência Nacional de Saúde Suplementar
Fonte: jornal Valor Econômico