Parte 1

1. A ideologia em Gramsci

O que é ideologia para Gramsci?

Ele concebe a ideologia como “uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econômicas e em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva”. (1) Portanto, para Gramsci, a ideologia estaria presente em todas as atividades humanas, não se traduziria apenas no campo da produção de ideias.

No entanto, para ele, somente as “ideologias orgânicas” vinculadas a uma das classes fundamentais da sociedade capitalista – burguesia e proletariado – deveriam ser consideradas. Em situações normais a ideologia dominante seria a da classe econômica e politicamente dominante. Gramsci estabelece então diversos níveis entre a concepção de mundo produzida pelos intelectuais orgânicos da classe dominante e as ideias – senso comum – das classes subalternas, informadas por aquela concepção geral de mundo. Esta diferenciação em níveis é engendrada pelas contradições objetivas inerentes à sociedade dividida em classes sociais antagônicas.

Portanto, a luta de classes é a fonte das constantes fissuras no campo hegemônico da ideologia burguesa. É responsável, em certo sentido, pela falta de homogeneidade entre o discurso de dominantes e dominados, apesar de este último, no fundamental, estar preso nos laços da ideologia burguesa que o informa. “A ideologia difundida nas camadas sociais dirigentes”, afirmou ele, “é evidentemente mais elaborada que os seus fragmentos encontrados na cultura popular (…) na cúpula, a concepção de mundo mais elaborada, a filosofia, ao nível mais baixo, o folclore. Há entre esses dois níveis extremos, o senso comum” (2).

A filosofia, enquanto nível superior da ideologia, é sua “chave mestra”, sua principal força coesiva. É ela que modela e dirige os demais níveis, em especial o senso comum. Dirige respeitando os limites estruturais de classe apresentados anteriormente. Mas, se a filosofia deseja cumprir a sua função deve, necessariamente, se manter ligada às classes subalternas, às massas populares. Sem isto perderia sua capacidade de direção política e ideológica. Marx já afirmava que as ideias só adquirem força material quando penetram nas massas.

O senso comum popular, por sua vez, revela-se um amálgama de diversas ideologias tradicionais e da ideologia da classe dominante. Afirma ele: “Cada camada social possui seu próprio senso comum (…) seu traço fundamental mais característico é o de constituir (mesmo em nível de cada cérebro) uma concepção fragmentária, incoerente, inconsequente, conforme a situação social e cultural da multidão” (3).

Em outra passagem escreve: “Na consciência do homem, abandonado à própria espontaneidade, não ainda criticamente consciente de si mesmo, vivem ao mesmo tempo influências ideológicas diferentes, elementos díspares, que se acumularam através das estratificações sociais e culturais diversas” (4).
Gramsci procura então compreender os meios pelos quais a ideologia das classes dominantes penetra e ajuda, em certo sentido, a coesionar as classes subalternas sob sua direção, impedindo assim a ruptura violenta do status quo de dominação, mantendo coeso o edifício social.

Toda sociedade constitui a sua própria “estrutura ideológica”, que é “destinada a manter, defender e desenvolver a frente teórica”. Esta estrutura, por sua vez, se compõe de diversos aparelhos, entre eles os principais são Igreja, Escola e Imprensa. Os aparelhos ideológicos são instrumentos de produção e de reprodução da ideologia, são organizações que de uma forma ou de outra “podem influir, direta ou indiretamente, sobre a opinião pública”, sobre o pensar e o fazer das classes sociais subalternas.

2. Hegemonia e a ideologia

Gramsci tem clareza de que a formação da consciência de classe dos trabalhadores, a construção da ideologia socialista, só pode ser fruto de determinadas relações sociais e históricas bastante concretas. Sabe também da enorme capacidade da ideologia das classes dominantes de influenciar o pensar e o agir das classes subalternas. É a ideologia dominante que, no fundamental, informa e forma a consciência das classes sociais dominadas.

Marx já afirmava em Ideologia Alemã que as ideias dominantes são as ideias das classes economicamente (e, portanto, politicamente) dominantes, pelo menos, como ressalva Gramsci, nos momentos em que não existe uma crise de hegemonia, ou seja, nos momentos em que a revolução não se apresenta como um problema imediato a ser resolvido pelas massas trabalhadoras.

A preocupação de Gramsci, em certo sentido, foi também a preocupação de Lênin. Era preciso superar a fase da luta exclusivamente econômica, ou corporativo-sindical. Era preciso não deixar a classe operária presa no espontaneísmo das lutas reivindicatórias imediatas, pois não seria através delas que adviria sua consciência de classe – a consciência socialista. A classe operária deixada à sua própria sorte caminharia não no sentido da construção de uma consciência crítica e socialista, mas permaneceria presa nos marcos da ideologia meramente sindical-corporativa, ainda burguesa.

“Mas, por que”, pergunta Lênin, “o movimento espontâneo, que se dirige no sentido do mínimo esforço, conduz exatamente à dominação da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia socialista e está completamente elaborada e possui meios de difusão infinitamente maiores (…), a ideologia burguesa mais difundida (ressuscitada sob as mais diversas formas) é aquela que se impõe espontaneamente, sobretudo aos operários” (5).

Não precisamos fazer aqui um minucioso trabalho de comparação entre as obras dos dois autores para notarmos o débito de Gramsci para com as formulações de Lênin, particularmente no que diz respeito ao papel desempenhado pela ideologia dominante junto às classes sociais exploradas (ou subalternas) no sentido de enquadrá-las no sistema capitalista.

Gramsci, no entanto, avança ao descobrir que entre a concepção de mundo compartilhada pelas classes populares, “impostas” pela burguesia, e sua prática social enquanto classes exploradas, existe uma contradição insolúvel, pois sua condição objetiva de classe explorada leva-a constantemente a pôr em xeque a hegemonia das classes dominantes, ameaçando superá-la.

O problema central, para ele, tratava-se de tornar explícitas (através da filosofia da práxis – o marxismo) as condições de opressão e exploração que, de uma forma ou de outra, transparecem na ação das classes sociais, criticando a concepção de mundo imposta às classes subalternas, através dos aparelhos ideológicos hegemônicos, estabelecendo assim a “unidade entre a teoria e a prática, entre a política e a filosofia”.

No entanto, esta nova concepção de mundo, a proletária, que é representada pela “filosofia da práxis”, deve partir das experiências concretas das massas. Deve partir da sua compreensão ainda que fragmentária da realidade, do senso comum, não para mantê-la presa a ele, mas para criticá-lo, depurá-lo das influências burguesas, unificá-lo e elevá-lo a um nível superior, ao bom senso (a filosofia da práxis), construindo assim uma “visão crítica de mundo”.

Para Gramsci, “somente a filosofia da práxis é capaz de unificar a elevar as pessoas simples ao nível de uma visão de mundo superior”, pois ao contrário das outras filosofias, em especial a católica, “ela não tende a manter as pessoas simples em sua filosofia primitiva, o senso comum, mas tende a conduzi-las a uma concepção superior de vida. Ela afirma a exigência da relação entre intelectuais e as pessoas simples” (6).

Uma pergunta ainda fica: Se a nova concepção de mundo, a ideologia socialista, como a chama Lênin, não nasce espontaneamente, de onde ela vem? Ela só poderia vir de fora da relação direta entre operário e patrão no interior da fábrica. Kautsky já afirmava: “A consciência socialista de hoje não pode surgir senão de um profundo conhecimento científico (…), assim a consciência socialista é um elemento importado de fora (…) e não algo que surgiu espontaneamente” (7).

Mas quem são os portadores desta ideologia? São os teóricos do socialismo, os intelectuais orgânicos da classe operária. Neste processo os operários participam não na qualidade de operário e sim como teórico do socialismo (8).

Nos dias de hoje, a tarefa de construção de uma nova hegemonia, acredita Gramsci, não poderá ser obra de um homem, de uma pessoa singular, mas de “um organismo no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Esse organismo já foi dado pelo desenvolvimento histórico e é o Partido político, a primeira célula onde estão contidos os germes da vontade coletiva que tendem a tornarem-se universais” (9).

Todavia, a grande diferenciação entre a estrutura de um partido comunista e as demais organizações é que ele, apesar de dividido em níveis, busca superar esta divisão entre dirigentes e dirigidos, entre os grandes e pequenos intelectuais. Se, na sociedade, a filosofia da práxis busca elevar as classes subalternas do senso comum ao nível do bom senso (a filosofia); no seio do partido, ela busca capacitar o militante de base a exercer funções de dirigentes políticos.

Por isto, uma das tarefas principais do Partido Comunista consiste em superar os resíduos corporativos (os momentos egoístico-passionais) através de um “processo catártico”. Superar os interesses mesquinhos, o estreito “espírito de corpo”, através da ação política independentemente de classe. “No partido político”, afirma ele, “os elementos de um grupo social econômico superam esse momento (corporativo, egoístico-passional) de seu desenvolvimento histórico e se tornam agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional” (9). Continua ele: “Um comerciante não entra num partido para fazer comércio, nem um industrial para produzir nada” (10).

3. Os intelectuais e o problema da hegemonia

O destaque que Gramsci dá ao problema dos intelectuais está intimamente ligado à importância que tem para ele o problema da hegemonia. Não é à toa que ele vê os intelectuais como “funcionários da hegemonia”.

“Os intelectuais”, afirma ele, “não são um grupo social autônomo (…), eles dão homogeneidade à classe dominante (…), todo grupo social deve elaborar a sua própria hegemonia político-cultural, deve criar, portanto, os próprios quadros, seus próprios intelectuais” (11).

Mas qual é o conceito de intelectual para Gramsci? Em um texto bastante conhecido chegou a afirmar: “Todos os homens são intelectuais (…), mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”; continuou ele; “quando se distingue entre intelectuais e não intelectuais faz-se referência, na realidade, tão somente à imediata função social da categoria profissional específica se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular nervoso” (12). Gramsci busca assim captar o homem em suas múltiplas dimensões. Para ele é impossível separar o “homo faber” do “homo sapiens”, embora tenha sido esta a tentativa da burguesia industrial durante todo o século XX.

Afirma ele: “Mesmo no mais mecânico e degradado (trabalho físico) existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora” (13). Portanto, ele superou a visão tradicional de intelectual que sempre foi traduzida na figura do grande literato, do filósofo e do artista renomado, um elemento da elite cultural. Pare ele, em todo trabalho humano, até no mais mecânico deles, está presente a necessidade de certo esforço intelectual, por isto todo homem é também um intelectual.

Entretanto acredito que o conceito de intelectual de Gramsci não está imune a certas ambiguidades, ou antinomias, como afirma Perry Anderson. Numa leitura atenta podemos notar que, ao mesmo tempo em que amplia ao infinito seu conceito de intelectual (homem = intelectual), sente necessidade de lhe impor alguns limites. Primeiro explode o conceito tradicional para depois resgatá-lo em outro patamar. Referindo-se ao Partido Comunista afirma que “todos os seus membros devem ser considerados como intelectuais (…), pois importa sim, a função que é diretiva e organizativa, isto é, educativa e intelectual” (14). Ou seja, ele relaciona aqui o conceito de intelectual à função dirigente. Qualquer elemento que exerça na sociedade o papel educador e de direção pode ser considerado um intelectual.

Afirma Gramsci: “Todos os homens são intelectuais (…), mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais” e “mesmo esses poucos se dividem numa verdadeira hierarquia de ‘intelectuais”. Continua: “Existe uma hierarquia qualitativa entre os intelectuais, essa hierarquia exclui aqueles que (…) não exercem funções de intelectuais: os agentes subalternos, que não têm função de direção. No aparelho de direção social e governamental existe toda uma espécie de emprego de caráter manual e instrumental” (15). Estes setores, os agentes subalternos, não teriam o papel central na construção da hegemonia.

Os intelectuais propriamente ditos dividem-se segundo o grau de eficiência enquanto agentes da hegemonia: na cúpula, os criadores da nova concepção de mundo e de seus diversos ramos, como as ciências filosofia, arte, direito; no escalão inferior, aqueles que estão encarregados de administrar ou divulgar esta ideologia (16). Gramsci faz uma divisão entre aqueles que produzem a teoria e cultura e aqueles que, de uma forma ou de outra, as reproduzem. Isto tem consequência na elaboração de uma estratégia de luta ideológica, na luta pela superação da hegemonia das classes exploradoras.
“Na frente ideológica”, afirma ele, “a derrota dos auxiliares e adeptos menores tem uma consequência quase negligenciável, é uma luta em que é preciso reservar os golpes para os mais eminentes. Se não se confunde o jornal com o trabalho científico, é preciso abandonar as casuísticas infinitas da política que tocam os jornais” (17). Mais uma vez podemos sentir a influência do pensamento de Lênin. Em uma de suas cartas endereçadas a seu amigo Máximo Górki, Lênin afirma: “Se os pequenos artigos, periódicos (semanais ou quinzenais) nada vos dizem, se vos sentis bem trabalhar numa grande obra, naturalmente que não vos aconselharei a interrompê-lo. Ela será mais útil” (18).

Notas

(01) GRAMSCI, A . Concepção Dialética da História, p. 16.
(02) PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 23.
(03) GRAMSCI, A. apud H. PORTELLI, O Conceito de Bloco Histórico, p. 26.
(04) GRUPI, L. O Conceito de Hegemonia, p.6 .
(05) LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 33.
(06) GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História, p. 10-11.
(07) KAUTSKY, K. apud, LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 31.
(08) LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 31.
(09) GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política do Estado Moderno, p. 208.
(10) Ibid.
(11) GRUPPI, L. O Conceito de Hegemonia em Gramsci, p. 80.
(12) GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura, p. 7.
(13) GRUPPI, L. Tudo começou com Maquiavel, p. 84.
(14) GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura, p. 15.
(15) PORTELLI, H. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 96.
(16) Idem, p. 97.
(17) GRAMSCI, A. A Concepção Dialética da História, p 157.
(18) LÊNIN, V. I. apud,PALMER, J. M. Lenine: Arte e a Revolução, p. 177.

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Parte 2

4. Os intelectuais e o seu vínculo orgânico de classe

“Não existe uma classe independente de intelectuais”, afirma Gramsci, “mas cada grupo social possui sua própria camada de intelectuais ou tende a formá-la” (9). Para ele é justamente este vínculo orgânico que, em última instância, define socialmente qualquer intelectual. Dependendo do grau desta relação temos um tipo de intelectual, sendo que as camadas mais importantes e complexas (de maior influência e de maior poder de coesão) é que possuem maior ligação orgânica com uma das classes fundamentais, em especial com a classe que detém a direção política e econômica da sociedade e do Estado. E essa relação é mais estreita, portanto mais orgânica, quando o intelectual se origina da própria classe que representa, mas ressalva: “o chefe da empresa-homem político aparecerá como intelectual orgânico da burguesia e não como chefe da empresa, sua função predomina sobre a sua origem social (grifo é nosso)” (10).

É certo, inclusive para Gramsci, que estas afirmações devem ser relativizadas, pelo menos em alguns casos, pois se elas servem muito bem no caso das classes dominantes, não se ajustam com a mesma precisão no caso das classes subalternas que “pelo menos inicialmente são obrigadas a importar seus intelectuais entre os grandes intelectuais” (11). Isto coloca as classes subalternas numa situação de inferioridade, convivendo em meio ao risco de verem seus intelectuais cooptados pelos grandes intelectuais das classes dominantes, através do processo que Gramsci chama de “transformismo”.
Portanto, para Gramsci, o intelectual não é autônomo em relação às classes sociais e isto já traz algumas consequências importantes: a primeira é a constatação do caráter “improdutivo” de qualquer intelectual isolado de uma classe social fundamental. “Um intelectual sem vínculo orgânico”, afirmava ele, “tem importância tão desprezível quanto as ideologias que produz” (12).

Então qual a real função do intelectual orgânico das classes dominantes no seio da sociedade capitalista? “São eles que elaboram a ideologia da classe dominante dando-lhes consciência de seu papel e transformando-a em concepção do mundo que impregna todo o corpo social (…), são os encarregados de animar e gerir a ‘estrutura ideológica’ da classe dominante no seio das organizações da sociedade civil (…) e de seu material de difusão (…), agentes da sociedade política, encarregada da gestão dos aparelhos de Estado”. São eles que “mantêm coeso o bloco histórico, os que elaboram a hegemonia da classe dominante, que sem eles não poderia ser dirigente: seria apenas dominante e opressiva, faltando a base de massas, o consenso necessário para exercer o seu poder” (13). São os intelectuais orgânicos da burguesia que asseguram o consenso das classes subalternas em torno das classes dominantes e que servem de elo entre a superestrutura e a infraestrutura do bloco histórico.

Apesar de compreender o intelectual como “funcionário da superestrutura” ou “funcionário da hegemonia” não incorre num erro bastante comum do “sociologismo” que estabelece uma relação mecânica entre os intelectuais e as classes sociais. Para ele nas relações entre os intelectuais e as classes sociais deve haver a mesma mediação existente entre a infra e superestrutura. A estrutura econômica determina – mas só em última instância – a superestrutura e esta, por sua vez, tem relativa autonomia em relação à infraestrutura que lhe dá sustentação. Portanto, o intelectual enquanto elemento (= agente) da superestrutura possui também uma relativa autonomia em relação às classes sociais, das quais não é um reflexo passivo.

“A evolução da estrutura”, para Gramsci, “pode, inclusive, ser retardada ou até retida por uma evolução mais lenta dos intelectuais, particularmente pela manutenção de dirigentes políticos tradicionais” (14). O próprio Engels já afirmava: “embora as condições materiais de vida sejam as causas primeiras isto não impede que a esfera ideológica reaja por sua vez sobre elas” (15).

Baseando-se novamente em Engels, Gramsci afirma: “a relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre com todos os grupos sociais fundamentais, e sim mediada em graus diversos por intermédio de toda a trama social, do complexo das superestruturas” (16). Justamente esta relativa autonomia, impulsionada principalmente pelas contradições internas da sociedade, é que permite vez por outra a alguns intelectuais se deslocarem da situação de reprodutores da ideologia dominante para a de portadores de uma nova “ideologia”, a filosofia de práxis, ligando-se organicamente às classes subalternas. Assim ocorreu com Marx, Engels, Lênin e com o próprio Gramsci.

5. A crise de hegemonia e a revolução social

Marx em diversas de suas obras afirmou que as causas de toda e qualquer revolução social, inclusive a socialista, devem ser procuradas no mundo da produção, pois elas são frutos da contradição irreconciliável entre as forças produtivas, que apresentaram um desenvolvimento contínuo, e as relações de produção que tenderiam a se desenvolver mais lentamente. Esta contradição se traduz na luta de classes.

Escreveu Marx: “Ao chegarem a uma determinada fase do desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social” (17).

Gramsci também parte deste pressuposto marxista de que toda crise revolucionária é, em última instância, determinada pelas contradições que se dão no mundo da produção, portanto, tem um caráter objetivo. Mas, ele avança sobre essa premissa como já havia feito Lênin, ao dirigir as suas atenções para outro aspecto da crise revolucionária: o aspecto subjetivo, ideológico. A crise revolucionária é vista por ele, acima de tudo, como uma crise da superestrutura, “é lida em nível de superestrutura e é concebida como crise de hegemonia” (18).

Lênin já havia esboçado as duas condições básicas (do ponto de vista político) de uma crise revolucionária. Primeira: os de baixo não se submetem mais a ser governados como antes; segunda: os de cima já não podem governar como antes. Podemos notar que Lênin também dava muito valor a este aspecto superestrutural da crise, tão subestimado pelos teóricos da II Internacional, presos a uma leitura mecanicista e fatalista da obra de Marx. Estes “teóricos” acreditavam que o próprio desenvolvimento do capitalismo nos conduzirá necessariamente ao socialismo – quer queiramos ou não. Subestimavam assim o papel ativo exercido pelo homem na história enquanto agente transformador. Na verdade, esta posição aparentemente dogmática era a maneira de se acobertar uma política reformista, da eterna espera da situação madura que, por si só, traria as mudanças. A classe operária deveria esperar, pacientemente, a lagarta transformar-se em borboleta.

A Revolução Russa de outubro de 1917 veio desmascarar tais teses. Não por acaso o jovem Gramsci saudou-a como uma revolução contra O Capital. Na verdade, tratava-se de uma revolução contra determinado tipo de leitura de O Capital. Esta obra fundamental havia se transformado nas mãos da direita social-democrata europeia num manual de economia e não em um guia para a ação política revolucionária.

Para Gramsci a hegemonia das classes dominantes “entra em crise quando desaparece sua capacidade de justificar um determinado ordenamento econômico e político da sociedade. Isso ocorre quando as forças produtivas desenvolvem-se a tal nível que põem em xeque as relações de produção existentes” (19), ou seja, quando as pressões impostas pela infraestrutura se traduzem num desenvolvimento sem precedente do movimento social das classes exploradas, no aumento de sua ação política. Isto leva, por sua vez, a ideologia da classe dominante, até então hegemônica, a perder, em grande parte, sua eficiência enquanto instrumento de construção do consenso social; e a contraideologia socialista a ir ganhando os corações e mentes das classes dominadas em luta. A revolução (a ruptura radical com a hegemonia anterior) só se realiza quando se forja a unidade férrea entre a filosofia de práxis (o marxismo) – na forma de uma tática e de uma estratégia revolucionária justa – e o movimento espontâneo das massas. Esta articulação (teoria e movimento espontâneo) só poderá se realizar através da mediação complexa do “moderno príncipe” – o Partido Comunista.

O grupo dominante, embora mantenha a dominação política e econômica, perde toda (ou em grande parte) a sua capacidade dirigente quando uma concepção de mundo – que durante séculos conseguiu impor-se ao conjunto da sociedade – entra em crise e em seu lugar desenvolve-se uma nova maneira de pensar e agir, uma nova ideologia, informada pela filosofia de práxis.

Neste momento particular de crise, todos os aparelhos de reprodução ideológicos ou de dominação política sofrem profundas alterações: “Os partidos tradicionais (…) como os homens que os dirigem não são mais reconhecidos como expressão própria de sua classe, ou fração de classe (…) o partido termina por se tornar anacrônico e, nos momentos de crise aguda, chega a se esvaziar inteiramente de seu conteúdo social e fica como se construído no vazio” (20).

A crise de hegemonia, que é parte da crise revolucionária, não leva necessariamente à ruptura, ela apenas cria as condições para que ela ocorra. A ruptura exige, como já afirmamos anteriormente, a ação (teórico-prática) dos intelectuais orgânicos da classe, no caso o Partido Comunista – definido por Togliatti como intelectual coletivo do proletariado.

Mesmo nos momentos de crise revolucionária a situação não é tranquila para o proletariado revolucionário. Afirma ele: “A crise gera situações imediatas, perigosas, porque diferentes camadas da população não possuem a mesma capacidade de orientar-se rapidamente e organizar-se com o mesmo ritmo” (21). As classes subalternas, mesmo nestes períodos de crise, que teoricamente pareciam-lhes mais favorável, ainda estão numa situação de relativa desvantagem diante da classe ainda no poder que, portanto, possui o domínio sobre os aparelhos de coerção e cooptação (que mesmo debilitados mantêm em parte a sua eficiência). Gramsci alerta que o “proletariado, como classe, é fraco em elementos organizadores, não possui e não pode dotar-se de uma camada de intelectuais senão muito lentamente (…) e somente depois da conquista do poder estatal”. Aqui, decerto, se baseava na experiência viva da Revolução Russa que teve na conquista da intelectualidade, educada pela burguesia, um problema crucial.

Gramsci defende então a tese da possibilidade e da necessidade de ganhar amplas camadas da intelectualidade, antes mesmo da conquista do poder, como uma condição. “Certamente”, afirma ele, “é importante e útil para o proletariado que um ou mais intelectuais adiram à título individual ao seu programa, a sua doutrina, se fundam no proletariado e sintam-se parte integrante dele (…) Hoje, são os intelectuais como massa e não como indivíduos que nos interessam (…) É tão importante quanto útil que se opere na massa dos intelectuais uma ruptura de caráter orgânico, historicamente determinada: que se manifeste como formação de massa uma tendência de esquerda no sentido moderno do termo, isto é, uma virada em direção ao proletariado revolucionário” (22).

Gramsci tem consciência do papel decisivo do Partido Comunista. O Partido é “o elemento decisivo de qualquer situação, a força permanente, organizado, preparado com bastante antecedência e que possa fazer avançar quando se julgue que a situação é favorável (e só será favorável na medida em que tal força exista e esteja plena de ardor combativo) por isso, a tarefa essencial é de sistemática e parcialmente formar, desenvolver, tornar essa força cada vez mais homogênea, compacta e consciente de si” (23).

Luciano Gruppi já alertava e, penso se não inutilmente, que não era Marx que Gramsci visava a desenvolver e sim Lênin. Digo inutilmente, pois nestas últimas décadas as universidades vêm sendo invadidas por uma série de trabalhos que têm em Gramsci o seu principal referencial teórico, enquanto outros autores clássicos do pensamento marxista, em especial Lênin, vêm sendo sistematicamente abandonados. As obras de Lênin, em geral, não são incluídas em nossos currículos, embora poucos neguem publicamente a importância do seu pensamento.

Hoje, alguns autores chegam mesmo a erigir uma verdadeira muralha da China entre esses dois pensadores, um considerado dogmático, ortodoxo e, outro, original e crítico. As citações de Gramsci se multiplicam em artigos e monografias, enquanto Lênin poucas vezes aparece. É justamente aí que reside a contradição, pois Gramsci sempre se considerou um leninista e procurou aplicar as teses de Lênin, de maneira original, à realidade italiana. Esta originalidade jamais significou a libertação de um limite, o pensamento de Lênin.

6. Conclusão

A hegemonia é, decerto, um problema colocado diante de qualquer classe que deseja conquistar e manter o poder político. Mas apenas a partir do final do século XIX este conceito passou a compor o arcabouço teórico do que podemos chamar, grosso modo, de ciência política marxista – uma preocupação que roubaria o tempo e o sono de muitos intelectuais revolucionários. Pois só para aqueles que têm na revolução social um problema a ser resolvido é que a hegemonia aparece também como problema-chave; para os que a questão do poder não se coloca a hegemonia também não pode se constituir como centro de preocupações mais sérias. Nenhuma revolução, até nossos dias, se concretizou sem que fosse dada solução ao problema da hegemonia, ou seja, sem que a classe revolucionária e o seu partido conseguissem o consentimento das demais classes subalternas para o seu projeto político.

Entre todos esses teóricos, inclusive Lênin, Gramsci é o que mais se preocupa em desenvolver o conceito, entendendo-o enquanto direção político-ideológica, enquanto momento de predomínio do consentimento sobre a coerção. Seu estudo tem como referencial teórico as sociedades europeias ocidentais, mais desenvolvidas econômica e politicamente que a Rússia czarista, mas não se restringe a elas. Cabe a Gramsci o resgate do papel da ideologia e dos aparelhos ideológicos enquanto instrumentos privilegiados na construção da hegemonia; no caso da ideologia predominante, serve o cimento que dá homogeneidade e coesão a todo edifício social, um agente a serviço da produção e da reprodução das relações sociais de produção. Resgata o papel ativo da ideologia não como reflexo mecânico da estrutura econômica, compreendendo-a em sua autonomia, ainda que relativa, como já constatara Engels em seus últimos escritos. Mas, se a ideologia é o cimento que busca manter coeso o edifício social, os intelectuais são os artífices desta obra, são os portadores e reprodutores privilegiados das ideologias.

Pela compreensão de Gramsci ainda, a mediação que deve existir entre os intelectuais e as classes sociais, que lhe dão suporte, é a mesma que existe entre a infra e a superestrutura. Os intelectuais não são reflexos mecânicos das classes das quais se originam e deveriam necessariamente representar, e as contradições sociais, quando levadas ao extremo, podem acarretar a ruptura de parcelas importantes da intelectualidade com a classe da qual provêm e a sua incorporação ao projeto político de outras classes sociais. É isto que explica, em momentos de crise de hegemonia, o deslocamento de importantes parcelas da intelectualidade progressista – burguesa e pequeno-burguesa – para o lado do proletariado revolucionário.

Notas

1. GRAMSCI, A . apud, PORTELLI, H. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 85.
2. PORTELLI, H. op. cit., p. 85.
3. Ibid.
4. Ibid.
5. PORTELLI, H., op. cit., p. 87.
6. Idem, p. 89.
7. ENGELS, F. Obras Escolhidas, V. 3.
8. GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a organização da Cultura, p. 9.
9. MARX, K. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política.
10. GRUPPI, L. O Conceito de Hegemonia em Gramsci, p. 90.
11. Idem, p. 90.
12. GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, p. 56.
13. Idem, p. 55.
14. GRAMSCI, A. apud, C. Buci-Glucksman, p. 45-46.
15. GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, p. 54.

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Augusto César Buonicore, historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e secretário-geral da Fundação Maurício Grabois.