A Crítica da Filosofia do Direito

Em 1841, enquanto Marx defendia sua tese de doutoramento, Feuerbach publicava A essência do cristianismo, na qual submetia a uma crítica materialista a obra de Hegel. A filosofia de Feuerbach, segundo ele próprio, nasceu “da oposição à filosofia de Hegel e só à luz dessa oposição pode ser apreendida e avaliada; aquilo que em Hegel tem a significação secundária, de subjetivo, de forma, tem em mim a significação de primitivo, de objetivo, de essencial”. E continuava: “o meu pensamento são apenas conclusões, conseqüências de premissas que não são de outros pensamentos, mas dos fatos objetivos quer vivos quer históricos (…) Para pensar eu preciso dos sentidos (…) Não engendro o objeto; só é, porém, objeto aquilo que existe fora da cabeça.”


Georg W. Friedrich Hegel (1770-1831)

O materialismo e o ateísmo radical de Feuerbach eram apenas pontos de partida para um vigoroso humanismo. Sua filosofia falava “uma língua humana e não uma língua sem nome e sem ser”. Ele só considerava a filosofia “feita homem, tornada carne e osso”. A tarefa central da filosofia não podia ser outra a não ser a de “fazer do filósofo homem e do homem filósofo (…) Ela deve compreender em si toda a essência do Homem, todas as faculdades (…) Só a filosofia tornada humana é positiva, isto é, verdadeira filosofia”. Foi sob esse ponto de vista, materialista e humanista, que aplicou a sua mais veemente crítica aos fundamentos da religião.

O verdadeiro sujeito era o Homem, que nas obras de Hegel havia se convertido em predicado de Deus (ou idéia absoluta), quando este na verdade era produto dos homens reais, predicado seu. Feuerbach inverteu assim a fórmula hegeliana e estendeu essa inversão a todo o campo de sua filosofia especulativa. Escreveu: “Tal qual a Teologia, que aliena a essência humana para transferi-la para fora do Homem e fazer dela uma divindade supra-terrestre, também a filosofia especulativa aliena o Homem da natureza e transfere o pensamento humano para fora do Homem, transforma esse pensamento num espírito transcendente absoluto (…) A verdadeira relação do pensar com o ser é apenas esta: o ser é objeto e o pensar é o predicado. O pensar é a partir do ser, mas o ser não é a partir do pensar.”


Ludwig Andreas Feuerbach (1804-1872)

Feuerbach criticou o método da filosofia especulativa hegeliana: “O caminho seguido até aqui pela filosofia especulativa, do abstrato ao concreto, do ideal ao real, é um caminho de contra-senso. O ser, pelo qual a filosofia começa, não poder ser separado da consciência do ser.” Ele buscou assim inverter o edifício hegeliano, seu sistema. Segundo Marx, “onde Hegel diz ‘espírito’, Feuerbach diz ‘matéria’; onde Hegel diz ‘Deus’, Feuerbach diz ‘Homem’. Não é Deus que se aliena no Homem, é o Homem que se aliena em Deus.”

Tais ideias empolgavam o jovem Marx, que, contra seus adversários, os hegelianos ortodoxos, lançou a seguinte sentença: “Aconselho-vos a vós, teólogos e filósofos especulativos, a desembaraçar-vos dos conceitos e dos preconceitos da velha filosofia especulativa se quereis atingir as coisas tais como são em realidade, isto é, a verdade. E para vós não há outro caminho que leve à verdade senão esse ‘rio de fogo’ (Feuer-Bach). Feuerbach é o purgatório do nosso tempo”.

Apetrechado do método feuerbachiano de inversão sujeito/predicado, Marx passou a estudar (e a criticar) a filosofia política de Hegel, e particularmente seus Princípios da Filosofia do Direito. Esse interesse pela política já vinha sendo desenvolvido desde o seu doutoramento e sua breve passagem pela Gazeta Renana, na qual foi redator e responsável por artigos em defesa da liberdade de imprensa e sobre o roubo de lenha, nos quais já se colocava ao lado dos trabalhadores – os milhares de camponeses acusados de furto de lenha nos bosques da aristocracia rural alemã – e em defesa dos camponeses pobres da região de Mosela.

Marx afirmou na sua Introdução à Crítica da Filosofia do Direito: “No que diz respeito à Alemanha, a crítica da religião está, no essencial, terminada, e a crítica da religião é a condição preliminar de toda crítica (…) O fundamento dessa crítica à religião é: foi o Homem quem fez a religião e não foi a religião que fez o Homem”.
Ele, no entanto, compreendeu a limitação dessa crítica que, embora justa, encontrava-se, em certo sentido, também invertida. “O Homem não é um ser abstrato escondido fora do mundo. O Homem é o mundo do Homem, Estado e sociedade. Esse Estado, essa sociedade, produz a religião, consciência invertida do mundo (…) porque eles próprios são um mundo invertido.” Portanto, “a crítica do céu transforma-se assim em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política”.

E foi justamente essa crítica que Marx se propôs a fazer, desmistificando o discurso hegeliano no qual o “povo tomado sem o seu monarca é sem articulação do todo (…) é a massa sem forma, que não é Estado nenhum”. Ele, à maneira de Feuerbach, inverteu a fórmula hegeliana, que na verdade era uma justificativa para a existência do Estado prussiano. Para Marx não era o Estado que fundava o povo e lhe dava o sentido, mas era o povo quem construía as bases do Estado. “Assim como a religião não cria o Homem, mas o Homem cria a religião, também a Constituição não cria o povo, mas é o povo quem cria a Constituição.” Continuou: “Os negócios e atividades do Estado estão ligados aos indivíduos (…) Se Hegel tivesse partido dos sujeitos reais como base do Estado não teria a precisão de deixar o Estado transformar-se em sujeito de uma maneira mística.”

Mas quem era esse indivíduo real, a base do Estado, para Marx? O indivíduo para ele ainda era, em parte, o mesmo de Feuerbach e de todos liberais revolucionários franceses do século XVIII. Mas, ao mesmo tempo, o conceito de Marx apresentava um elemento original ao não ver, como os contratualistas, o Homem como mônada egoísta, como um Robson Crusoé moderno. Para ele “não é a natureza abstrata que faz a essência de uma personalidade particular, mas a sua qualidade social; os Estados (…) não são senão modos de existência e de ação das qualidades sociais do Homem”.

Para Marx, como para Feuerbach, o egoísmo não se constituía na verdadeira natureza humana, como acreditavam os contratualistas franceses. Esta residia antes em sua “nobre necessidade de um comércio desinteressado com os outros (…) mas ele quer agir para o bem dos outros, pelo bem geral. Tais atos não unem simplesmente o Eu e o Tu (como afirma Feuerbach), mas fundem os indivíduos num povo”. Portanto, o Homem deve ser elevado à vida política, que seria o campo das verdadeiras relações entre os homens.

Marx transferia o problema da alienação humana dos estreitos limites da crítica da religião para um campo mais vasto: o da própria relação do homem com os outros homens, o mundo da política e das relações sociais. Ele se detém então na crítica da alienação humana no Estado moderno. Dedica-se especialmente ao problema da burocracia estatal.

Eram os homens que construíam o Estado e, ao fazê-lo, criavam um grupo social (burocracia) que teria por função descobrir e concretizar o interesse geral. Até aí em nada se diferenciava dos cientistas políticos burgueses, mas, ao contrário deles, já acreditava que essa função era apenas aparente, ilusória, pois o Estado (enquanto corpo burocrático) ocultaria seus interesses particulares de corporação. O Estado separado da sociedade a oprimia e a alienava de sua essência humana. Marx acreditava que, para libertar a essência humana aprisionada, era necessário pôr fim a esse Estado, que não correspondia aos interesses da razão. Embora as conclusões fossem radicalmente diferentes das de Hegel, utilizou-se da terminologia e, em certo sentido da própria lógica de Hegel, segundo a qual “só existe o que é racional”. Marx, portanto, era ainda um democrata radical e não um comunista.

Em que consistiria, então, a limitação de Marx? Faltava a ele o essencial, faltava compreender que a sociedade se dividia em classes sociais, com interesses contraditórios e antagônicos, e que o Estado não defendia apenas seus interesses de corporação mas sim os interesses de uma das classes sociais. O Estado representava os interesses das classes economicamente dominantes. Em outras palavras, ele não era nada mais que um instrumento de dominação de uma classe sobre a outra. Uma descoberta que Marx só faria anos mais tarde, embora possamos afirmar, pelos artigos da Gazeta Renana, que essas conclusões já começavam a se esboçar no jovem Marx.

(Continua na parte 5)

Augusto César Buonicore, historiador e mestre em Ciência Política pela Unicamp, é secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e membro dos conselhos editoriais das revistas Princípios e Crítica Marxista. Este ensaio – cuja versão atual foi publicada originalmente em cinco partes na revista Juventude.br (números 1 a 5) – foi escrito há mais uma década e muitas das opiniões nele contidas não correspondem mais integralmente às posições do autor. A motivação principal de sua publicação é oferecer uma visão panorâmica da formação intelectual inicial de Marx, algo de grande utilidade especialmente para as jovens gerações de comunistas, que conhecem pouco a vida e a obra do fundador do socialismo científico.