Marx e os Manuscritos Econômicos e Filosóficos

Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, escrito em 1844, o humanismo de Marx adquire maior consistência. Não se trata mais aqui da defesa de um homem em geral, abstrato, mas de um homem concreto, histórico. Era um humanismo sob novo ponto de vista, o ponto de vista do proletariado revolucionário.

Nesse trabalho o autor critica os economistas burgueses, que consideravam os homens apenas enquanto produziam para o Capital. Reduziam o proletariado àquele que "sem capital nem renda da terra vivia puramente do trabalho e do trabalho unilateral, abstrato, apenas como operário". Assim puderam estabelecer "o princípio pelo qual, como qualquer cavalo, ele tem que ganhar o suficiente para poder trabalhar. Não considerava-o no tempo em que não trabalhava, ou seja, como homem. Assim, "os mendigos, os desempregados, os trabalhadores famintos, indigentes, criminosos, eram figuras que não existiam para a economia política, mas apenas para os olhos dos médicos, juízes, coveiros e burocratas”. As necessidades dos trabalhadores "se reduziriam às necessidades de mantê-los diariamente no trabalho, de molde a não extinguir a raça dos trabalhadores". Os salários teriam "o mesmo significado da manutenção de qualquer outro instrumento de produção (…) É o óleo aplicado à mola para conservá-la rodando". O homem se transformava numa peça de engrenagem e a sociedade numa grande fábrica.

Marx submeteu assim o capitalismo a uma crítica feroz, de um ponto de vista revolucionário. Foi uma das críticas mais radicais escritas até então. Denunciou a desumanização do homem e sua transformação em simples mercadoria. Denunciou o processo de alienação – não apenas religiosa e política, mas fundamentalmente a alienação que teria por centro o próprio trabalho humano. Definiu o trabalho alienado como fundamento do homem alienado.

No capitalismo, afirmava Marx, "a produção não apenas produz o homem como mercadoria humana (…) produz o homem como um ser mental e fisicamente desumanizado. Imoralidade, aborto, escravidão do trabalho". E prosseguia: "A partir do momento em que a humanidade se compõe principalmente de trabalhadores, dos quais deserdados são os proletários, o humanismo real que se preocupa com os interesses de cada homem é aquele que defende os interesses proletários."

Na sociedade capitalista os operários eram as maiores vítimas da guerra sem quartel da concorrência pelos mercados. O operário, segundo Marx, não ganhava necessariamente quando o capitalista ganhava, mas perdia necessariamente quando ele perdia. "Se a riqueza da sociedade declina”, afirmou, “é o operário quem mais sofre; mas se a riqueza progride, essa é a situação mais favorável para os operários, mas significa para eles também um trabalho extenuante, que abreviará sua existência".

A economia política burguesa era, por sua vez, extremamente moralista – pelo menos quanto à classe operária. Segundo o jovem Marx, "sua tese principal era a renúncia à vida e às necessidades humanas. Quanto menos se comer, beber, comprar livros, ir ao teatro ou bares, ou botequim, e quanto menos se pensar, amar, doutrinar, cantar, pintar, esgrimir etc. tanto mais se poderia economizar (…) Tudo o que o economista tirava sob a forma de vida e humanidade devolvia sob forma de dinheiro. (…) O trabalho deve ser apenas o que lhe é necessário para desejar viver, e deve desejar viver para ter isso".

Em contraposição à moralidade burguesa começava a surgir uma nova moralidade: "Quando artesãos comunistas formam associações, o ensino e a propaganda são seus primeiros objetivos. Mas sua própria associação engendra uma necessidade nova – a necessidade da sociedade –, o que é um meio torna-se um fim (…) Fumar, comer e beber não são mais meios de congregar pessoas. A sociedade, a associação, o divertimento tendo também como fito a sociedade é suficiente para eles, a fraternidade do homem não é a frase vazia, mas uma realidade e a pobreza do homem resplandece sobre nós vindo de seus corpos fatigados."

A desalienação humana passa pela superação da exploração assalariada

Já no seu 1º manuscrito Marx passa a estender o conceito de alienação do campo da política para o campo da economia, estudando particularmente a alienação do trabalho. No capitalismo o trabalho é exterior ao operário, não pertence à sua essência. No seu trabalho o operário não se afirma, mas, ao contrário, se nega. Não se sente bem, mas infeliz. Não desenvolve nenhuma energia física e espiritual, mas mortifica o corpo e arruina o espírito. O operário, portanto, só se sente bem consigo mesmo fora do trabalho, pois no trabalho sente-se fora de si.

No capitalismo o trabalho é forçado, imposto de fora. Não representa a satisfação de uma necessidade do trabalhador, mas apenas um meio de receber um salário, um simples meio de atender outra necessidade. Todo trabalho do operário volta-se contra ele, como uma força estranha e hostil. O operário, ao produzir mercadorias, produzia também sua própria alienação.

Escreveu Marx: "O trabalhador fica mais pobre à medida em que produz mais riquezas e sua produção cresce em força e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens (…) quanto mais trabalhadores se desgastem no trabalho tanto mais poderoso se torna o mundo dos objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais simples se torna a vida interior, e tanto menos ele se pertence a si próprio (…) O trabalhador pôs a sua vida no objeto, e sua vida, então, não mais lhe pertence, porém ao objeto.” Concluía ele que, se o produto do trabalho não pertencia ao operário, isso só era possível porque pertencia a outrem, o capitalista.

Marx descobriu assim um dos fundamentos da alienação humana no capitalismo: a apropriação do produto do trabalho pelo não-operário (proprietário dos meios de produção), fato que acarreta uma dominação real daquele que produz por aquele que não produz. A alienação do produto do trabalho exprimia-se na hostilidade entre o operário e o não-operário.

Essa concepção está na raiz da crítica de Marx a certas correntes socialistas, que buscavam eliminar a condição de proletário através de um aumento de salários, escondendo-se sob a palavra de ordem dos "salários justos". Escreveu Marx: "Uma elevação do salário pela força (…) nada mais seria que um melhor assalariado dos escravos e não uma conquista para o operário, nem para o trabalho, o seu destino humano." O salário seria conseqüência do trabalho alienado e "aquele que se erguia contra a propriedade privada devia reclamar a anulação do trabalho alienado, e, portanto, do salariato, como a situação na qual o trabalho não era um fim em si, mas um servidor do salário".

O Homem e a sociedade

Marx já nesse período tinha clareza da unidade dialética que se forjava entre o homem e a sociedade. Nele já não vemos nada que se assemelhe ao determinismo econômico, que alguns teimam em lhe impingir. A sociedade e as condições históricas produziam os homens concretos, mas ao mesmo tempo estes não eram meros produtos sem vontade, e sim agentes ativos que com sua ação consciente eram capazes de mudar as condições que lhes deram origem. Afirmava ele: "Da mesma forma que a sociedade produz o homem, também ela era produzida por ele." E seguia em seu raciocínio afirmando que "embora o homem seja um indivíduo único (…) ele é igualmente o todo, o todo ideal, a existência subjetiva da sociedade como é pensada e vivenciada. Ele existe (…) como a soma das manifestações humanas da vida".

O homem, portanto, não pode ser entendido como o Robson Crusoé do pensamento liberal. Ele só pode ser concebido como parte integrante do mundo dos homens, a sociedade. Cada indivíduo era portador do conjunto dessas relações (homem/homem, homem/natureza). O homem (individual/real) só pode ser entendido na coletividade dos homens. Podemos notar ainda neste trabalho uma grande influência das ideias de Feuerbach e de seu humanismo, de sua “essência humana” em geral. Mas, no Marx dos Manuscritos, essas ideias já se encontravam em transição e tenderiam a desaparecer na obras seguintes, em especial na Ideologia Alemã de 1845.

Todo o mundo para o homem, inclusive os seus sentidos, eram fruto da ação dos próprios homens – através do trabalho humano – e "mesmo as formas de relação do homem com o mundo, o ver, ouvir, cheirar, saborear (…) amar, ou seja, tudo o que é possível captar e transmitir através dos órgãos de nossa individualidade são produtos de anos de trabalho social humano".

"È evidente”, continuava ele, “que o olho humano aprecia as coisas de maneira diferente da do olho bruto, não humano, assim como o ouvido humano difere do ouvido bruto, e só quando o objeto se torna um objeto humano (…) o homem não fica perdido nele. Isso somente é possível quando o objeto se torna um objeto social e quando ele próprio se torna um ser social". Mas todas essas formas de apreensão humana do mundo, através dos sentidos, encontram-se em nossa sociedade limitadas em sua potencialidade pela existência da propriedade da privada e pela exploração do trabalho.

A propriedade privada, segundo Marx, "tornou-nos néscios e parciais a ponto de um objeto só ser considerado nosso quando é diretamente comido, bebido, vestido, habitado etc, em resumo quando utilizado de alguma forma (…) Todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos eles, pelo sentido do ter".

A sociedade capitalista tem no dinheiro uma forma particular de alienação da essência humana em geral, a qual inverte o sentido da realidade. A propriedade do dinheiro passa a ser também de quem o possui: "Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher e conseqüentemente não sou feio (…) Sou estúpido, mas o dinheiro é o verdadeiro cérebro de todas as coisas e, sendo assim, como poderá este seu possuidor ser estúpido?" O dinheiro, para Marx, "converte o amor em ódio (…), o servo em senhor (…), a estupidez em inteligência (…) Quem pode comprar a bravura é bravo, malgrado seja covarde".

Contrapondo-se ao mundo do dinheiro, Marx pregava uma nova sociedade em que "o homem fosse Homem e em que a relação com o mundo fosse humana, aonde o amor só pudesse ser trocado por amor (…) Se desejar apreender a arte, será preciso apenas ser uma pessoa autenticamente educada". Mas para realizar tal mundo é preciso, antes de mais nada, abolir a propriedade privada. Esse seria o primeiro passo para a “apropriação da verdade humana (…) e a substituição positiva de toda a alienação, o retorno do homem da religião, do Estado, para a vida realmente social”.

O comunismo, assim, seria para Marx a abolição da propriedade privada e o fim da alienação humana. Ele seria a "verdadeira apropriação da natureza humana através do e para o Homem (…) O retorno do Homem a si mesmo como ser social (…) O comunismo como naturalismo plenamente desenvolvido é humanismo (…) É a resolução do antagonismo entre Homem e natureza, entre homem e seu semelhante. É a verdadeira solução do conflito entre a existência e a essência (…) entre o indivíduo e a espécie".


(Continua na parte 8)

Augusto César Buonicore, historiador e mestre em Ciência Política pela Unicamp, é secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e membro dos conselhos editoriais das revistas Princípios e Crítica Marxista. Este ensaio – cuja versão atual foi publicada originalmente em cinco partes na revista Juventude.br (números 1 a 5) – foi escrito há mais uma década e muitas das opiniões nele contidas não correspondem mais integralmente às posições do autor. A motivação principal de sua publicação é oferecer uma visão panorâmica da formação intelectual inicial de Marx, algo de grande utilidade especialmente para as jovens gerações de comunistas, que conhecem pouco a vida e a obra do fundador do socialismo científico.