Com a eleição indireta de Tancredo Neves à presidência da República, e sua posse no cargo fixada para 15 de março, termina importante fase da batalha pela liquidação do regime militar, que há vinte e um anos oprime a nação. Desponta na vida política nacional, uma perspectiva democrática, grande é a esperança de mudanças na situação do país. Os comunistas que defendem a legalidade do PC do Brasil analisam os acontecimentos e tiram conclusões pertinentes, indicando ao povo, o caminho para alcançar outras conquistas.

VITÓRIA DE SIGNIFICADO HISTÓRICO

No processo da sucessão presidencial, o regime dos generais fez tudo o que pôde para continuar. Pôs a maquina governamental a serviço da candidatura de Paulo Maluf , estimulando seus métodos de corrupção e chantagem política; realizou acintosamente o cerco militar da Assembléia Legislativa do Maranhão com o objetivo de forçar a eleição de delegados malufistas ao Colégio Eleitora; executou um plano de provocação com incêndio de jornais e teatros populares, invasão de casas e prisão de comunistas, tentando criar clima propício ao golpe continuísta; o ex-comandante da guarnição do Planalto, general Newton Cruz, procedeu a ensaios de cerco e ocupação de Brasília, Goiás e parte de Minas Gerais. O regime, no entanto, bastante desgastado e cada vez mais isolado, já não podia impor sua vontade. Seu suporte político, o PDS, esfacelou-se, o governo tornou-se minoritário no congresso. Enquanto isso, avolumava-se o apoio, nas ruas e nos círculos políticos, à candidatura oposicionista de Tancredo Neves, que, afinal, obteve expressiva e indiscutível vitória no próprio órgão criado casuisticamente para assegurar a continuidade do sistema dominante.

A vitória de Tancredo Neves tem significado histórico. Põe termo ao governo arbitrário das Forças Armadas imposto à nação em 1964, com a ajuda e a intervenção insolente dos imperialistas norte-americanos. Os militares deixam o poder repudiados pelo povo. Governaram despoticamente, submeteram o país mais ainda ao capital estrangeiro, deram livre curso a corrupção, que atingiu níveis inimagináveis. O triunfo da oposição afasta sério obstáculo ao progresso da sociedade – o regime militar – responsável maior pela desastrosa situação em que se encontra o Brasil.

A força decisiva na derrota do sistema opressor e entreguista foi o povo, que realizou gigantescas manifestações em praça pública exprimindo veemente condenação ao autoritarismo. Esse grandioso movimento, erguendo bem alto bandeiras democráticas e patrióticas, teve, em grande parte, caráter espontâneo, não chegou a agrupar-se sob comando popular único. Obedeceu à hegemonia da frente oposicionista, dentro da qual predominava o PMDB, e, neste apesar das pressões da ala mais democrática, tinha preponderância o setor moderado.

O desfecho dessa luta não resultou exclusivamente da ação combativa do povo. Deu-se com a participação também de importantes segmentos das classes dominantes que, em face da fracassada gestão castrense e temendo o crescimento e a radicalização do movimento popular, aderiram maçiçamente às correntes oposicionistas. Embora a queda do atual regime se tenha efetuado no decurso de grave crise política, esta não acrescentou as características que configuram uma situação revolucionária. A saída política tomou a forma de transição democrática, sem ruptura marcante com a velha ordem estabelecida.

NOVO QUADRO POLÍTICO

Consideráveis modificações vão-se operando no quadro político surgido após a eleição de 15 de janeiro. Uma de suas particularidades é o forte sentimento democrático que impregna a vida nacional. Todos se pronunciam a favor da democracia, ninguém se atreve a defender o governo autoritário, nem mesmo seus instituidores. Até Paulo Maluf, candidato do continuísmo, no final da sua campanha tentou aparecer como crítico do sistema que representava e servia.

Inicia-se amplo debate sobre temas relevantes e se definem, gradualmente, posições diferenciadas. Conquanto seja grande a variedade de opiniões, estas podem ser classificadas em dois grupos principais: os do que pugnam por mudanças de profundidade não apenas nos métodos e rumos políticos, como igualmente em questões fundamentais que se relacionam com a soberania e o progresso da nação; e os que pretendem mudanças de ordem secundária, que almejam um regime constitucional democrático, mas restritivo, transformações no campo sem tocar no latifúndio, renegociação da dívida externa submetendo-se às exigências dos credores, superação da crise social com simples panacéias etc. Esta diferenciação entre setores moderados e conservadores, e setores progressistas e patrióticos, bem como a luta entre eles, constitui o conteúdo do desenvolvimento da situação política atual e do período vindouro.

As modificações que sucedem à substituição do regime de força refletem-se também no âmbito partidário. O PMDB, partido de oposição durante longo tempo, passa a ser partido de governo, apoio fundamental de Tancredo Neves no Congresso. A Frente Liberal, que procede das hostes pedessistas, ainda não tem fisionomia política e social completamente definida. Embora reunindo em seu seio banqueiros, usineiros e latifundiários, além do setor militar vinculado ao general Geisel, intenta desempenhar um papel liberal, distinto do pedessismo. Apóia o próximo governo, mas inclina-se a disputar com os futuros governantes espaço político visando ao Planalto em 1988. O PDS perdeu força e a posição de sustentáculo do regime vigorante, encontra-se desarvorado. Declara-se de oposição, em particular os malufistas, não obstante sua tendência seja girar em torno do governo. O PDT atrai para suas fileiras elementos como Ademar de Barros Filho, há pouco expoente do PDS, em São Paulo, procurando reforçar-se com setores do antigo populismo. Se bem tenha tomado parte na campanha das diretas-já, coloca-se em posição dúbia frente ao presidente de República: pretende reduzir-lhe o mandato e toma atitudes oposicionistas, mesmo votando no Congresso com a maioria governamental. Joga com a possibilidade de ser alternativa no caso de desgaste do PMDB. O PTB atravessa séria crise interna, acha-se à deriva sem comando. O PT, depois de certo crescimento beneficiado pelo apoio que recebeu da cúpula da campanha pró-diretas, caiu bastante, isolou-se por sua prática sectária e dividiu-se. Manifesta-se oposicionista em relação a Tancredo Neves, buscando explorar o forte descontentamento existente na classe operária. Não é demais salientar que a política de oposição até o momento voltava-se contra o sistema arbitrário; após 15 de março irá contrapor-se a um governo democrático, poderá servir aos manejos da direita, do malufismo sobretudo. As alterações no quadro partidário não estão completas; algumas organizações serão desmembradas, outras criadas ou reconhecidas pela lei. Tais alterações têm importância para a compreensão da realidade que se está formando quanto à disposição das forças políticas na esfera federal.

O GOVERNO TANCREDO NEVES

Destaca-se no panorama nacional a transferência do poder das mãos dos militares para um representante da sociedade civil. Tancredo Neves alcança a presidência da República com largo apoio da nação. Sua chegada ao Planalto revigora a vida política atrofiada pelo longo regime do casuísmo, da censura e da repressão. Todas as correntes de opinião entram em atividade procurando situar-se no cenário político em transformação. A formação do governo e as providências que virá a adotar para enfrentar a crise suscitam expectativas generalizadas.

Proclamado chefe do Executivo, o novo ocupante do Palácio do Planalto realiza intenso trabalho, objetivando organizar o governo com elementos de vários partidos e de sua escolha pessoal e, simultaneamente, traça as diretivas básicas de sua atuação. Enfatiza a necessidade de dotar o país de um regime democrático, com outra Constituição e o livre funcionamento dos poderes republicanos. Preconiza um projeto nacional em substituição ao “modelo” malogrado dos generais. Anuncia a criação da nova República. Sua orientação geral vem sendo elaborada pragmaticamente.

Ainda que comprometido com o movimento popular e com as forças democráticas no curso da campanha sucessória, Tancredo Neves inclina-se para soluções moderadas. Declara-se partidário das mudanças mas orienta-se num sentido pouco renovador. É inegável que tem diante de si pesada herança deixada pelo general Figueiredo. Haverá dificuldade em superá-la, o que somente conseguirá pondo em prática decisões corajosas e progressistas. Todavia, o novo governo toma feição predominantemente conservadora. Na frente econômico-social, peça chave do equacionamento e solução do problema da crise, as inovações anunciadas são irrelevantes. Fala-se em honrar antigos compromissos no exterior lesivos aos interesses nacionais. Adota-se como questão fundamental a contenção inflacionária, e não a dívida externa, fonte de tremenda espoliação do país, que continua aumentando e representa pesadíssimo fardo sobre os ombros do povo. A inflação, realmente grave, não será dominada separadamente de providências enérgicas com relação à dívida da qual decorre em grande parte. Para retomar o ex-governador mineiro reivindica mais investimentos forâneos, enquanto as multinacionais pressionam abertamente visando à obtenção de concessões descabidas como recompensa a tais investimentos. Seria negativa a retomada do desenvolvimento pelo mesmo caminho de antes, com a economia subordinada ao capital de fora, com o sacrifício dos trabalhadores e a estreiteza do mercado interno. Esse tipo de desenvolvimento gerou a crise social e econômica em que se debate a nação. Também na política externa não há indícios de mudança. O recém-eleito da República elogia a orientação atual do Itamarati, sem definir princípios que expressem, nesse campo, maior afirmação da soberania e independência nacional, da solidariedade e ação conjunta dos países submetidos à espoliação e à agressão imperialista. Até aqui o Brasil tem sido, no fundamental, caudatário da política exterior dos Estados Unidos.

Desse modo, o governo Tancredo Neves apresenta duplo aspecto: de uma parte, sustenta posições democráticas, repele o sistema arbitrário que durou mais de duas décadas; de outra parte, promove uma política conservadora, não ataca as questões estruturais de onde se originam a crise e a dependência crescente do país ao capital estrangeiro. Apesar dos seus esforços e da manifesta vontade de buscar saída à calamitosa situação nacional, defrontará sérios obstáculos e, se mantivera as atuais posições, não atingirá os seus objetivos. O povo brasileiro apóia a transição preconizada como diretriz essencial do governo, transição, porém, que conduza a um novo regime de liberdade, de progresso em benefício do povo e da independência da pátria.

OS COMUNISTAS EM FACE DA NOVA SITUAÇÃO

Os comunistas que pleiteiam a legalidade do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) deram valiosa contribuição à luta do nosso povo pela liquidação do odioso regime militar e pela vitória dos candidatos de oposição. A conquista de amplas liberdades constituiu um dos eixos de sua atividade tática. Ao lutar por liberdade, tinham em vista criar condições aos trabalhadores e às diferentes camadas populares para organizar-se melhor, mobilizar-se num plano mais vasto em torno de seus direitos e reivindicações, influir decisivamente nos acontecimentos políticos, elevar sua consciência de classe e forjar a grande unidade das forças progressistas a fim de atingir a meta da verdadeira emancipação. Julgam, assim que a tarefa mais importante do momento é consolidar a vitória alcançada e avançar no caminho das transformações que o progresso da nação reclama.

A consolidação dessa vitória demanda esforço comum das correntes democráticas e populares com vistas a estabelecer efetiva democracia no país. O regime militar não está definitivamente liquidado. Os generais perderam o governo, saem da cena política. Ainda se conserva, porém, de pé, toda a estrutura jurídico-institucional da qual se serviram com o propósito de reprimir os opositores e levar à prática a orientação antipopular, antidemocrática e antinacional, estrutura característica dos Estados-policias, que precisa ser desmontada de cima a baixo. Não é admissível a usurpação pelo Poder Executivo de prerrogativas do Congresso Nacional, como ocorre presentemente. Não se pode tolerar e existência do SNI, órgão policia de controle da vida pública e privada dos cidadãos. É inaceitável a vigência da chamada Lei de Segurança Nacional, destinada a perseguir a atividade política conseqüente, de igual modo a competência da Justiça Militar para julgar civis incriminados de pretensos delitos de subversão da ordem estabelecida ou ainda a atuação da Polícia Federal na área política, violando o princípio federativo da autonomia estadual. Não se justificam os preceitos “legais” que impedem o livre funcionamento de todos os partidos políticos, impõe a vinculação de votos, o voto distrital, a proibição de coligações partidárias, a eleição indireta. É aberrante a continuação de intervenções nos sindicatos, de repressão às greves, de impedimento de circulação de idéias nos órgãos de comunicação social. Todas as leis arbitrárias, que obstaculizam o exercício da democracia, tem de ser revogadas.

A convocação da Assembléia Constituinte soberana, com a finalidade de elaborar a nova Carta Magna e enterrar definitivamente a Constituição outorgada, em 1969, pela Junta Militar, é tarefa fundamental à consolidação da vitória democrática. Uma grande campanha popular pró-constituinte, com a participação dos partidos políticos e dos sindicatos, das organizações populares, estudantis. femininas e outras, contribuirá para o debate e o esclarecimento de temas essenciais acerca de ordem jurídica a ser instituída, permitirá a eclosão de vasto movimento de opinião pública progressista. Pode-se afirmar que a mobilização e a organização popular pela instauração de um sistema político radicalmente oposto ao atual, definirão, em última instância, os rumos concretos da transição democrática.

Os comunistas fiéis à legenda do PC do Brasil, propugnando um regime democrático como necessidade ao desenvolvimento da consciência política e social da classe operária e das massas populares, bem como ao fortalecimento quantitativo e qualitativo do autêntico partido do proletariado, o PCdoB, consideram inoportuno e incorreto fazer oposição sistemática ao governo Tancredo Neves, visando sua desestabilização imediata. Apesar do caráter moderado e das limitações políticas das forças que representa, esse governo emana das imensas e vigorosas manifestações de massa contra o arbítrio, em favor de mudanças substanciais no país. Encontra-se sob pressão popular e democrática de grandes contingentes da população que o apóiam e deles esperam medidas eficazes destinadas a superar os males que afligem o povo. A desestabilização imediata, antes que as massas tenham feito sua própria experiência e se organizado, não concorreria para reforçar e desenvolver o movimento popular e democrático; ajudaria, isto sim, a reação, interessada em impedir o progresso da democracia. Coerentes com a linha que defenderam, de liquidação do regime militar, e conquista da liberdade a fim de abrir caminho ao avanço das forças populares, os comunistas não tem motivos para renegar o apoio que deram a Tancredo Neves como candidato das oposições. Adotarão frente ao governo prestes a ser empossado atitude crítica e independente, batalhando sempre pelos interesses dos trabalhadores e do povo, jamais compactuando com posições reacionárias, antipopulares, antinacionais. Prosseguirão lutando, em frente única com amplas forças, pela suspensão do pagamento e congelamento da dívida externa assim como dos respectivos juros, contra qualquer tipo de espoliação do país pelo capital estrangeiro, em prol da reforma agrária radical, e da melhor distribuição da renda, do rigoroso controle da atividade dos bancos e da limitação dos seus lucros, por autêntica liberdade para os trabalhadores, inclusive liberdade e autonomia sindicais etc.

ADIANTE POR UM FUTUTO SOCIALISTA

Partidários de transformações revolucionárias na sociedade brasileira, os comunistas que empunham a gloriosa bandeira do PC do Brasil não crêem que a burguesia, na época de declínio do capitalismo, seja capaz de garantir um futuro de progresso, verdadeira independência, bem-estar e liberdade para o povo. Apontam a via do socialismo científico, da construção de uma vida livre de crises, desemprego, injustiças sociais, submissão aos monopólios imperialistas. Esse caminho se constrói na luta de todos os dias contra a opressão e a exploração, forjando a unidade da classe operária e das massas populares, estabelecendo inevitáveis alianças políticas temporárias e permanentes, adestrando-se nos combates por direitos e conquistas sociais a fim de aproximar a grande meta emancipadora.

O povo brasileiro saiu vitorioso nos embates pele liberdade. Unido, foi mais forte do que as armas e a arrogância dos generais. Apresta-se agora, com a maior decisão e experiência, para outras jornadas que hão de consolidar os êxitos obtidos e tornar realidade as profundas aspirações da imensa maioria dos brasileiros.

(Texto distribuído à imprensa pela Comissão Nacional pela Legalidade do Partido Comunista do Brasil)

Fonte: Jornal "A Classe Operária" de março/abril de 1985