Na véspera do Dia Internacional dos Direitos Humanos, comemorado neste dia 10, a manutenção da Lei da Anistia é um dos casos que mais preocupam o ex-ministro de Direitos Humanos Nilmário Miranda, que ocupou a função durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que contestava a Lei da Anistia. Promulgada em 1979, a lei concede perdão a todos os crimes cometidos durante o regime militar (1964-1985), inclusive torturas praticadas por agentes do Estado contra presos políticos.

Em entrevista à BBC Brasil, Miranda – que também é ex-deputado federal pelo PT de Minas Gerais e atualmente preside a Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido – diz esperar que a criação da Comissão da Verdade, aprovada recentemente pelo Congresso, possa mobilizar a opinião pública para que a Lei da Anistia seja revista.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) deu ao Brasil um prazo até 14 de dezembro para alterar a lei e permitir a punição de torturadores, como já ocorreu em outros países sul-americanos, como Argentina e Uruguai. A ONU também se manifestou favorável à revisão da anistia.

BBC Brasil – Quais mudanças o senhor percebe na política de direitos humanos do governo de Dilma Rousseff em relação ao de Luiz Inácio Lula da Silva, ou então ao de Fernando Henrique Cardoso?

Nilmário Miranda – Acho que a diferença é que, na Presidência de Fernando Henrique, vimos um governo no qual houve um desenvolvimento acelerado dos direitos humanos, principalmente no plano dos direitos civis e políticos, conhecidos como direitos formais, como as liberdades individuais e coletivas.
 

Já o governo Lula acentuou os direitos econômicos, sociais e culturais, e posteriormente os ambientais. O governo Lula também procurou enfatizar a universalização, enquanto Fernando Henrique trabalhava no sentido de focalizar esse ou aquele grupo vulnerável.

Lula adotou uma visão mais holística dos direitos humanos, de que o ser humano é um só e ele é o portador de todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, e procurou criar instrumentos para isso.

Por exemplo, o lugar institucional dos direitos humanos cresceu, passando de uma secretaria do Ministério da Justiça para ter um status ministerial, além da criação de um ministério só para a questão racial, outro para as mulheres, outro para combate à fome e assim por diante.

Há uma linha de avanço, mas também de continuidade. O primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos foi no governo Fernando Henrique, e o segundo também, enquanto o terceiro foi no governo Lula, e cada plano tem avanços em relação ao anterior. Direitos humanos não são uma tarefa da esquerda, da direita, do governo ou da oposição, é tarefa de todos os poderes, de todos os partidos, de todas as classes sociais.

Por sua vez, o governo Dilma tem dois pontos, além da continuidade, que são importantíssimos. Um é a Comissão da Verdade, e outro é a lei de acesso à informações públicas. Com essa lei, a informação pública passa a ser do povo, com a publicidade como regra, e sem a possibilidade de sigilo eterno de documentos.

Já a Comissão da Verdade faz com que, pela primeira vez na História do Brasil, a verdade alcance o status de política de Estado.

Fora isso, estamos avançando na questão dos portadores de deficiência, da criança e do adolescente, dos idosos, das mulheres, da igualdade racial, mas cada área com suas diferenças. No Brasil, as desigualdades são colossais, vêm da história. Há um passivo histórico muito alto, tem coisas que só vai se vencer com gerações.

BBC Brasil – Como o senhor vê a decisão do STF contrária à revisão da Lei da Anistia de 1979?

Miranda – Isso é um problema que fica para a sociedade debater. Há países em que, para reformular leis de anistia a torturadores, houve muita pressão da opinião pública, pressão popular para que isso ocorresse. Falta isso no Brasil, pressão social.

Existe uma insatisfação legítima das famílias das 475 pessoas que morreram ou desapareceram durante o regime militar, uma insatisfação pela impunidade de quem cometeu esses atos. A Comissão da Verdade é um passo novo, mas não resolve a questão da impunidade aos torturadores.

O Brasil continua avançando na política de memória, verdade, reparação, exceto no que toca à impunidade aos torturadores. Isso fica como um problema que o Brasil em algum momento terá de enfrentar de novo.

BBC Brasil – Sem a revisão da Lei de Anistia, pode se dizer que o trabalho da Comissão da Verdade fica inócuo?

Miranda – Há cerca de 40 comissões da verdade criadas pelo mundo. Algumas delas foram “para inglês ver”, não tiveram efetividade, mas a maioria delas não cuidou de Justiça, são duas coisas distintas. O compromisso da busca da verdade e de uma política de memória é importante para a história, para a construção da democracia, para sancionar ética e moralmente a tortura, para que as gerações presentes e futuras conheçam os males de uma ditadura.

Mas, com certeza, daqui a dois anos, quando a Comissão da Verdade produzir seu relatório, ela vai colocar o problema para o Brasil discutir, se o Brasil permanece com uma política de manter impunidade aos torturadores ou não. A minha opinião é que não deve, que deve ser revista, mas isso não tem um clamor público. Talvez a comissão ajude a criar isso.

BBC Brasil – O senhor acredita que há algum tema que mereça uma maior atenção atualmente?

Miranda – A minha grande preocupação é com a questão indígena. Há muitas mortes, muita violência, há grandes disputas que não estão resolvidas, como os casos dos pataxós-hã-hã-hães na Bahia e dos guaranis-kayowás no Mato Grosso do Sul, inclusive com o desaparecimento de um cacique recentemente (Nísio Gomes, cacique guarani-kayowá, desaparecido no Mato Grosso do Sul desde novembro).

Agora a bancada ruralista no Congresso quer aprovar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para tirar do Executivo a função de demarcação e homologação de terras de quilombolas, de indígenas e de conservação ambiental, deixando isso para o Congresso, com o poder inclusive de revisar áreas já demarcadas. Isso seria um retrocesso enorme.

Há ainda a questão do trabalho escravo, que existe no Brasil ainda, mas em uma forma diferente do passado, com servidão da dívida e implicação no direito de ir e vir. A PEC que expropria a terra do trabalho escravo para fim de reforma agrária já foi aprovada em dois turnos no Senado, mas está parada na Câmara há nove anos.
 

Isso é a correlação de forças no Congresso, o Congresso é assim. Existe uma super-representação de grupos socialmente minoritários, mas muito poderosos.

Os ruralistas, por exemplo, são poucos, são menos de 50 mil pessoas que controlam metade da terra agricultável, mas que têm um poder admirável, mais de cem deputados. Já os 15 milhões de pessoas ligadas à agricultura familiar têm dois ou três deputados. Vários avanços dos direitos humanos são travados pela correlação de forças no Congresso.

BBC Brasil – Como fica o papel da Justiça e do Ministério Público nesses casos?

Miranda – Dos processos mais graves envolvendo povos indígenas, por exemplo, a disputa dos pataxós já está há 30 anos no STF (neste caso, o Estado da Bahia teria concedido ilegalmente títulos de propriedade dentro de terra indígena), mas ele não decide a respeito. No caso dos guarani-kayowás, é a mesma coisa.

Então é na Justiça onde isso está sendo travado. A Justiça é o poder mais conservador, que mais demora a se reformar. Ela tem dificuldade em decidir sobre quilombolas, indígenas, e também tem sido um entrave na questão da anistia. Além disso, os pobres têm baixo acesso à Justiça, o que é um problema sério.

Por outro lado, a questão da homofobia avançou muito mais no Judiciário do que no Legislativo. A trava está dentro do Congresso. O Judiciário reconheceu a união estável, está reconhecendo direitos de transmissões de bens, mas o Congresso não aprova os grandes projetos anti-homofóbicos. A Constituição democrática é muito complexa.

Quanto ao Ministério Público, nós optamos por um modelo de bastante poder e autonomia para defender o Estado e a sociedade. Ele faz isso da forma desigual, como acontece com tudo, mas acho que faz isso de uma forma positiva.

Fonte: BBC Brasil