Entre os homenageados estão as mais tradicionais agremiações carnavalescas da cidade, com destaque para o Clube das Vassourinhas, que completa seu centenário este ano. Além disso, o clube Elefante de Olinda, com 60 anos, a troça Ceroula, com 50, e o boneco gigante Homem da Meia-Noite, com 80, também serão lembrados.

O homenageado principal, o ex-prefeito Germano Coelho, aos 85 anos, prestigiou a entrevista coletiva e lembrou da festa em 1977, seu primeiro carnaval como prefeito. “Estávamos com três meses de salários atrasados, a prefeitura não tinha orçamento e reuni todas as agremiações para avisar que não haveria liberação de um centavo, por ausência de fundo. Fizemos um grande Carnaval, porque a festa ganhou as ruas, foi feito pelo povo e com a alegria deles”, contou.

Germano Coelho, junto com o pedagogo Paulo Freire e o artista plástico Abelardo da Hora, foi um dos criadores do já histórico Movimento de Cultura Popular (MCP), no início da década de 60, durante o primeiro governo de Miguel Arraes. Foi também prefeito de Olinda em dois mandatos.

Abaixo, a íntegra de seu belo pronunciamento durante o evento de lançamento do carnaval deste ano.

Agradeço ao Prefeito de Olinda a grande honraria de ser homenageado, na maior festa da cultura popular do País: o criativo Carnaval de Olinda. De volta do longo exílio, trouxe Paulo Freire para ver, das sacadas do Palácio dos Governadores, os blocos de frevo, os maracatus e os caboclinhos desfilando, a praça cheia, o povo fervilhando. Empolgado, ele me disse: “Germano, não deixe isso morrer nunca. Aqui, o Movimento de Cultura Popular está vivo, vivíssimo”.

Nabuco lembra, em “Massangana”, na “Minha Formação”, que os filhos dos pescadores sentirão sempre, debaixo dos pés, o roçar das areias da praia, e ouvirão sempre o ruído das ondas do mar e o “diz-que-diz-que macio que brota nos coqueirais”.

Eu por vezes acredito ver, como vi em 1996, do Amparo ao Mosteiro de São Bento, fantasiados e bailando, um após outro, todos os Maracatus Rurais de Pernambuco, e escuto os tambores e chocalhos enchendo as ruas de Olinda. Vejo os caboclos calados, dançando suados, com uma flor aberta nos lábios.

“São Maracatus retardados,
chegando à cidade cansados
com seus estandartes no ar”

“Saudade, tão grande…, saudade que eu sinto dos passistas traçando tesouras, nas ruas repletas de lá…” Vejo todos os bonecos gigantes, desfilando juntos, pela primeira vez, na Rua de São Bento. Vejo a praça inteira, braços levantados, entoando com Clídio Nigro, “Olinda, quero cantar a ti, esta canção.”

Vejo, passando pelo Palácio dos Governadores, o boi, a vaca, o bode, a cabra, os bichos de “Julião das Máscaras”. E os estandartes vibrantes das agremiações famosas, primorosamente bordados com mãos de fada e linhas de amor, por “Maria do Monte”.

Vejo mais, em pleno Carnaval de Olinda, o som puro, imaculado, de violinos da “Casa da Rabeca”, na Cidade de Tabajara, à frente, um artista famoso, “Salustiano”, mestre de todas as artes da cultura popular. Vejo, ainda, o mistério do “Homem da Meia-Noite”, saindo na hora exata e arrastando multidões, pelas ruas mal iluminadas de Olinda.

Esse Carnaval vibrante, na Cidade Patrimônio da Humanidade, repercute em todo o País. Em 1996, Fernando Augusto, outro gigante do Carnaval de Olinda, “Carnavalizando a Vida”, monta, no Palácio dos Governadores, a “Oficina de Artes e Ofícios do Carnaval”. E espalha “arte por toda parte”. E o “Rei Momo”, imenso, no alto do Palácio, abraça o velho monumento do 1600, de onde o Brasil foi governado três vezes. E a Rua de São Bento ostenta versos de Alceu Valença: “Olinda, tens a paz dos mosteiros da Índia”. E de cada dez flashes do Carnaval Pernambucano, que a televisão enviava para o resto do Brasil, nove eram do Carnaval de Olinda.

Carnaval mágico, livre, inteiramente livre, todo feito de sonhos, deslumbrante e diversificado, como a opulenta Mata Atlântica, onde nasceu, e cresce, e muda, porque fruto maduro da fantasia, da imaginação, da criatividade e da poesia. Festa da cultura negra, branca, indígena, e da mistura parda e amarela, que deu a beleza, o gênio, a força, e o colorido do povo brasileiro. Festa dos jovens, e de todas as idades, de todas as línguas, de todos os sotaques, de todas as crenças, de todas as etnias. Festa maior, festa máxima, de todos os instrumentos, de todas as músicas, de todos os ritmos, de todos os sons, de todas as cadências, de todos os batuques, e de todos os tons.

E na dança, no passo, no sapateado, no corpo a corpo, cantando juntos, dançando juntos, todos se sentem irmãos. “E eu, no meu delírio, no meio da multidão”, descubro, que o Carnaval desvela, que o Carnaval revela, na alegria contagiante do passo, que “outro mundo é possível”, que é possível “transformar o mundo”.

“É de fazer chorar, quando o dia amanhece, e obriga o frevo a acabar. Óh quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar”. E termina a festa, e fica o lixo do Carnaval. O ritual agora é outro. “Bacalhau do Batata”, teimoso, desce o Alto da Sé. E, os jovens, os jovens que comandavam a alegria, que farão, agora, os jovens?

Diz o IBGE, que no Brasil todo são 36 milhões na faixa etária dos 14 aos 24 anos. Desses 6 milhões vão para a universidade: têm cidadania, têm perspectivas de vida. 30 milhões não podem ir porque são pobres. A maioria não trabalha, nem estuda. Têm o ócio, a criminalidade e a droga.

E os Poderes Públicos, da União, dos Estados e dos Municípios, e as Empresas Privadas, que fazem com esses 30 milhões de jovens pobres? Fecham a porta para o seu treinamento “no ambiente de trabalho”. Descumprem, abertamente, a Constituição, que lhes garante a “profissionalização”, com “absoluta prioridade”. Saramago, único Prêmio Nobel da língua portuguesa, no “Ensaio sobre a Cegueira”, mostra que não são cegos só os que não veem, mas os que vendo, não se apercebem da realidade, como ela é.

Nos tempos difíceis de agora, na Europa e na América, a segurança do Brasil está no dinamismo de seu mercado interno. Deixar de integrar ao mercado de trabalho, como produtores e como consumidores, 30 milhões de jovens, é mais do que cegueira. A solução das armas, da polícia e da cadeia é um crime hediondo contra o Brasil. É um crime hediondo contra a juventude pobre brasileira.

Senhor Prefeito, não vim para ser homenageado. Vim para homenagear o glorioso Carnaval de Olinda.