O país hexagonal é um dos antigos centros de poder na Europa. A crise campeia, mas, no momento, ainda não se vê ali o desastre social que já desgraça os países da Europa do Sul e, sobretudo, o menor e mais marginal deles, a Grécia. Por isso, ali é ainda possível brincar de democracia representativa, um jogo de espelhos entre a direita e a esquerda, no qual os diferentes componentes do poder do capital declaram dar maior importância ou ao Estado ou ao Mercado, ou à igualdade ou à liberdade para empreender.

Tudo dentro de uma esplêndida continuidade entre os dois polos de um sistema que, de modo algum é questionado nessas categorias que, afinal, são as categorias do próprio sistema. Quem suponha que algum sistema capitalista se autointerditará e reforçará o estado, ou que aumentará a igualdade jurídica entre os cidadãos ignora que o mercado geral, típico do capitalismo, é fruto da atividade do estado; e que a igualdade entre os contratantes é a condição básica para que haja mercados. Como Michel Foucault e Chomsky recordaram naquele debate memorável na televisão holandesa, em 1971[1], “não se pode combater um regime a partir de seus próprios conceitos e valores”. Por isso, a esquerda representativa só representará, no melhor dos casos, uma classe operária que é parte do tecido do capitalismo, de seu específico modo de distribuir a riqueza. O papel dessa classe operária na luta de classes é pura mistificação; existe para ocultar os antagonismos que há por trás dos valores específicos do sistema capitalista, apresentados como valores “democráticos” ou “valores da República”, sempre com a voz enrouquecida de tanto proclamar mentiras.

No poderoso país hexagonal, o vencedor nas eleições presidenciais venceu por pequena margem; um dirigente do Partido Socialista que se apresentou com programa de crítica moderada às políticas de austeridade, anunciando sua disposição para mudar o pacto europeu de estabilidade. Em lugar da austeridade propõe “crescimento”. Hollande, provavelmente, logo dará marcha a ré nas promessas e voltará ao “realismo” responsável, aceitará a austeridade e os cortes, talvez em nome do crescimento. Na França ainda há espaço para mentir com algum êxito e, também, para cortar gastos públicos e salários.

Enquanto houver essa margem, prosseguirá o teatro cômico-macabro dos candidatos de direita e esquerda, com seus próceres “populistas” de direita e de esquerda, que metem, entre o estado e o mercado, um terceiro personagem da farsa: o povo.

Esse povo que irrompe como se fosse ‘o outro’ em relação ao mercado, no discurso de esquerda de Mélenchon; ou como se fosse ‘o outro’ em relação ao estado, no populismo semifascista da filha de Le Pen. Como se o povo não fosse a unificação, pelo estado e no estado, dos agentes dispersos do mercado.

Os populismos tampouco são qualquer tipo de saída para fora do labirinto de espelhos que é a política representativa, na qual, simplesmente, não há espaço ‘fora’, nenhum ‘além’ da representação, que não seja a mera criminalidade “terrorista”; e, mesmo essa, é um ‘externo’ mistificado, um falso exterior, absoluta e completamente desenhado pelo poder e a partir do poder.

É impossível qualquer ‘representação’ da luta de classes. A luta de classes é irrepresentável. Só se podem representar os espelhos que reproduzem, ao infinito, a falsa oposição entre estado e mercado, entre povo da esquerda e povo guardião das essências nacionais.

Como na última cena do filme “A dama de Shangai” [dir. Orson Welles, 1946-7], os protagonistas disparam contra as próprias imagens, que veem num labirinto de espelhos, e cada um que dispara contra a própria imagem acaba por matar outro. O capitalismo modificado pelo liberalismo e convertido em liberal, derrota o capitalismo modificado pelo socialismo e convertido em socialista; ou vice-versa. Enquanto isso, se agita o coringa fascista, previamente alimentado com uma estudada xenofobia de estado, para que as opções majoritárias respeitáveis e nada “populistas” possam apresentar as políticas mais brutais como se fossem “um mal menor”… se comparadas ao que viria, se os fascistas vencessem. A existência de um bloco fascista permite aos partidos do regime serem, eles mesmos, fascistas… e acusar a extrema direita de fascismo. É o golpe do policial bonzinho/policial durão.

Também na Grécia houve eleições essa semana, mas com resultados e desenvolvimentos muito diferentes do que se viu na França.

A imprensa-empresa oficialista europeia apresentou os resultados das eleições gregas como se tivesse havido grande avanço da esquerda “radical” e retrocesso dos protagonistas do bipartidarismo helênico, os socialistas do Pasok e a direita do Nea Dimokratia.

De fato, o que aconteceu na Grécia foi muito mais grave: ali se viu que, a partir de um certo nível de representação, a própria representação democrática do capitalismo neoliberal torna-se impossível.

Os dois grandes partidos que defendem a austeridade e o pagamento da dívida, PASOK e ND têm menos de 33% dos votos parlamentares: todas as demais forças representadas no Parlamento grego são, por sua vez, radicalmente hostis a essa política que está arruinando o país e empobrecendo as classes populares e as camadas médias. Nada disso impediu o regime de fazer todo o possível para que não houvesse meio pelo qual os cidadãos gregos expressassem o próprio descontentamento: não houve qualquer consulta à população, por referendo, sobre as medidas de austeridade (Papandreu pagou com o próprio cargo, a simples sugestão); e, para impedir a manifestação eleitoral de posições minoritárias, elevou-se de 3% para 5% a porcentagem mínima de votos necessários para eleger deputados. Com isso, ficaram sem qualquer representação cerca de 19% dos eleitores – porcentagem maior de votos, que os votos dados ao partido mais votado, o Nea Dimokratia.

E não foi só: o número de cadeiras no Parlamento para o partido mais votado foi aumentado pouco antes das eleições, criando-se um ‘prêmio’ de mais 50; por isso, o partido Nea Dimokratia, que obteve dos eleitores 18,9% dos votos (só 2% mais que os votos da coalizão Syriza, de esquerda, que teve 16,8%), terá, graças ao generoso ‘presentão’, 108 deputados; contra apenas 52 da coalizão Syriza. A combinação do mínimo exigido de votos e o ‘prêmio’ ao partido majoritário desfiguram portanto grotescamente a correlação de forças políticas representadas no Parlamento. Esse autêntico golpe-de-mão legal, inventado para assegurar a “governabilidade”, chegou muito perto de dar certo e permitir um governo de “salvação nacional” formado só pelos partidos Nea Dimokratia e Pasok, dois partidos minoritários que defendem a política de austeridade e contra os quais os eleitores manifestaram-se em alto e bom som. Os resultados finais não permitiram essa solução, porque nem com a fraude legal eleitoral os partidos do Μνημονίο [/minmonío/, “memorando”] pró políticas de austeridade imposto à Grécia pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI – conseguiram chegar à maioria absoluta.

A austeridade, pois, tornou-se ingovernável, sob os parâmetros da democracia grega. E essa é a grande diferença que há entre Grécia e França.

Na Grécia, será praticamente impossível formar algum governo a partir dos resultados que saíram das urnas, porque, embora Syriza tenha alcançado excelente resultado, nem assim terá apoio suficiente. O Partido Comunista Grego, que já se recusou a formar listas eleitorais unificadas com os “socialdemocratas” da coalizão Syriza, porque os considera “europeístas”, tampouco aceitará qualquer outro tipo de coalizão pós-eleições.

Por sua vez, uma direita caricaturesca mas terrível, Χρυσή Αυγή [/crisí augí/, “Aurora Dourada”] já apresentou ao Parlamento projeto de uma política de denúncia das políticas para os migrantes; e de denúncia, também, da “Junta” (palavra hispânica, que se usa, na Grécia, para falar da ditadura dos ‘coronéis do memorando’). No atual momento, a função dessa formação é semelhante à de Marine Le Pen na França e de outras extremas-direitas: permitir a radicalização neoliberal e xenófoba dos partidos majoritários que modo que passem a apresentar o fascismo como “mal maior”, embora as milícias da extrema direita já estejam nas ruas, em combate contra os imigrados e futuros imigrados…

Na Grécia, as eleições previstas para garantir legitimidade para a dominação do capital financeiro, com implantação de medidas de austeridade e pagamento da dívida, não chegaram a bom termo e não deram o que deveriam ter dado. A austeridade e a dívida tampouco são representáveis, como também não há representação possível para a resistência da multidão em luta contra essas políticas. Os espelhos partiram-se definitivamente, embora ainda seja possível fazer algumas caretas contra esse grande coringa, de mil e uma utilidades, que é a extrema direita.

Nos próximos dias, tudo pode acontecer. Se não há maioria que apóie o plano de salvamento e as medidas de austeridade que o plano carrega, pode acontecer de todos os pagamentos das dívidas gregas serem suspensos; e podem-se suspender também os empréstimos que FMI e financeiras europeias devem fazer à Grécia. É possível também que o país tenha de sair da zona do euro, o que terá repercussões sobre os demais países fracos (Portugal, Espanha, Itália, Irlanda, etc.) e sobre toda a eurozona.

A Grécia está hoje em situação que faz lembrar a da Alemanha nos anos 30s. As causas são semelhantes: a Alemanha de Weimar foi arruinada pelo pagamento de brutal dívida de guerra imposta pelos que venceram a I Guerra Mundial. Na comissão de reparações de guerra, Keynes havia advertido sobre as consequências desastrosas que adviriam daquela política.

Ante a impossibilidade de uma revolução (impossível, dentre outras coisas, por causa da profunda divisão das esquerdas e por causa do sectarismo do Partido Comunista Alemão), um cabo baixote, feio, ressentido e dado a gritarias, ridículo como os dirigentes do partido Crisí Augí, tomou o poder. O resto da história todos conhecem.

Nesse momento, só uma potente reação em escala europeia contra as políticas de austeridade pode evitar que a barbárie volte ao continente. A Europa terá de ser verdadeiro espaço de cooperação produtiva para a multidão, espaço de democracia e de liberdade, não mera agência de cobrança da odiosa dívida financeira gerida por uma oligarquia dedicada a fazer a gestão racista da imigração. Nem todos se podem permitir o luxo dogran guiñol “republicano” que a França está vivendo; em breve, de fato, já não será possível nem na França. 

A Grécia aí está, a mostrar que a prática de usar a dívida para a dominação social não é coisa para a qual haja representação democrática. Para preservar a democracia, é urgente acabar com uma política econômica que, a cada dia, menos consegue esconder o que há nela de plena dominação política.

Mas preservar a democracia e por fim à política econômica para dominar não podem, por sua vez, ser feitos sob o marco dos estados nacionais: a nostalgia soberanista que foi representada no fascismo, e, em certa medida, também nos “populismos”, é hoje uma armadilha.

Problemas que há muito tempo já não são problemas nacionais só poderão ser resolvidos em escala europeia. Se nos fechamos, cada um em seu estado, encontraremos pela frente a violência capitalista cada vez mais brutal, e seremos cada vez mais incapazes de derrotá-la. Outra construção europeia é necessária e urgente.

O 12M [ http://www.may12.net/ ], 12 de Maio de 2012, será, por tudo isso, muito mais decisivo que as eleições de 6 de maio passado.

[1] O debate aconteceu em novembro de 1971, na Escola Superior de Tecnologia de Eindhoven (Países-Baixos); texto, em ing., emhttp://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm. Excerto, em port. emhttp://diplo.org.br/2007-08,a1854 [NTs].

Fonte: Blog Iohannes Maurus

http://iohannesmaurus.blogspot.com.br/2012/05/francia-y-grecia-2-elecciones-ninguna.html

Traduzido pela Vila Vudu