1 – Introdução (1)

No início do primeiro governo Lula, economistas de diversas orientações teóricas fora do mainstream foram surpreendidos por suas políticas macroeconômicas, que mantiveram inalteradas aquelas introduzidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) após a crise do real, em 1999. Essas políticas eram baseadas no paradigma neoliberal e, tipicamente, inspiradas pela abordagem dos mercados eficientes. Sua ênfase na ‘competitividade’ e na estabilidade monetária substituiu gradualmente, a partir dos anos 1980, o paradigma desenvolvimentista periférico fundado no dirigismo estatal para assegurar o crescimento acelerado (Ferraz, Crocco e Elias, 2003: 14).

As políticas macroeconômicas mantidas por Lula eram fundadas no famoso tripé composto por uma política monetária determinada pelas metas de inflação, câmbio flutuante e uma política fiscal visando manter um superávit primário que compensasse o déficit nominal das contas públicas (no contexto desse artigo, essas são as “políticas neoliberais”) (2). Essas políticas são também associadas às reformas institucionais da década de 1990, que resultaram em forte liberalização comercial, desregulamentação financeira, uma crescente abertura da conta de capitais e outras reformas microeconômicas coerentes com o suposto da eficiência intrínseca dos mercados (denominadas aqui de “reformas neoliberais”).

A perplexidade dos críticos era particularmente significativa porque críticas à continuidade das políticas neoliberais já eram feitas até mesmo por policymakers diretamente envolvidos na sua implementação. Por exemplo, já em 2001, Barros (2002: 109-115) argumentava que o Plano Real (que sintetizou esse conjunto de políticas, a partir de 1994) tinha “envelhecido” e perdido “eficácia” por se manter prisioneiro de um falso “dilema fiscalismo versus desenvolvimentismo”, e por não ter atentado para a estrutura produtiva interna, que vinha perdendo produtividade frente à concorrência da indústria internacional, graças à “opção liberal” do governo Fernando Henrique Cardoso.

Uma parte da bibliografia que critica esse continuísmo macroeconômico derivou de artigos acadêmicos e outra de livros destinados ao grande público. Seus autores tinham por orientação teórica o keynesianismo e o marxismo, em suas diversas versões. Podemos distinguir nessa produção crítica dois objetivos. O primeiro era demarcar os campos teóricos, por exemplo, quando os críticos se aplicavam em demonstrar a continuidade das políticas do governo anterior no governo Lula, explorando as contradições e limites dessa opção, e vaticinando seu “fracasso”. A essa continuidade, esses autores antepunham um programa alternativo consagrado pelo pensamento de esquerda. Esse teria como inspiração histórica e analítica um arco abrangendo diferentes versões do nacional-desenvolvimentismo e do socialismo, incluindo a advogação de rupturas que permitiriam uma maior “liberdade” de ação da política econômica frente aos agentes privados. Essa produção acadêmica, representada, por exemplo, por Paula (2003a e 2005) e por trabalhos oriundos do Instituto de Economia da Unicamp (3), entre muitos outros, se concentrou na análise do período 2003- 2005.

Um segundo objetivo dessa linha de análise heterodoxa era a formulação de propostas concretas de uma nova política macroeconômica e de políticas assessórias (de crédito, industrial etc.) (4), formando um todo coerente e capaz de substituir as políticas neoliberais. As análises com esse objetivo acabaram fundando uma nova proposta de política econômica, denominada pelos seus autores como “novo-desenvolvimentismo” (ou “neodesenvolvimentismo”) (5). Essa proposta deveria funcionar como instrumento de intervenção no debate dentro e fora do governo Lula. Foi a partir delas que, a partir de 2006, o governo Lula passou a adotar novas iniciativas e políticas que se mesclaram às políticas macroeconômicas neoliberais, estabelecendo-se, a partir de então, a política econômica híbrida que caracterizou esse governo até 2010, e que parece persistir no governo de sua sucessora.

Notas:

(1) Agradecemos aos generosos comentários de Antonio Carlos Macedo e Silva e Luiz Carlos Bresser-Pereira. Os erros e omissões são de responsabilidade dos autores.

(2) Essas políticas foram implantadas gradualmente no Brasil desde o início dos anos 1990, mas elas só passaram a ser exercidas integralmente a partir de 1999, após a crise cambial do real, nos moldes das acontecidas no México, em 1994, no Sudeste e Leste Asiático, em 1997, e na Rússia, em 1998. Após o colapso da política de “âncora cambial”, a moeda nacional foi sujeita a forte desvalorização, em janeiro daquele ano.

(3) Ver, por exemplo, sobre a política fiscal, até 2005, Lopreato (2007), sobre dinâmica do crescimento econômico até 2006, Carneiro (2007), sobre a política econômica do Governo Lula, até 2005, Carneiro (2006), e para uma análise política do governo Lula, até 2005, Boito Jr. (2006).

(4) Esse artigo adota uma definição de política econômica incluindo a totalidade da capacidade do Estado de intervir institucionalmente e de forma sistemática no domínio econômico. Assim, a política econômica tem como núcleo as políticas macroeconômicas (formadoras dos “grandes preços”: as taxas de câmbio, de juros, de inflação e de salário), mas englobando, também, outras ações institucionais como as políticas industrial, creditícia e de comércio exterior, e as políticas microeconômicas e de concorrência. Essa concepção abrangente de política econômica contraria a concepção usual, de origem neoclássica. Para uma definição semelhante, ver Carneiro (2006: 7).

(5) O termo “novo-desenvolvimentismo”, denominando um conjunto de políticas econômicas alternativas às políticas neoliberais (especialmente pós-Consenso de Washington), foi introduzido por Bresser-Pereira, que o utilizou no capítulo 20 de seu livro “Desenvolvimento e Crise no Brasil”, em sua quinta edição revisada (Bresser-Pereira, 2003). Segundo esse autor, a denominação lhe foi sugerida por Yoshiaki Nakano em 2003 (Bresser-Pereira 2006: 9), tendo por base argumentos desenvolvidos em Bresser-Pereira (2001).  A denominação passou a ser mais difundida a partir de 2005, quando da publicação do livro “Novo-Desenvolvimentismo”, uma coletânea de artigos organizada por Sicsú, Paula e Michel (2005). Uma detalhada história intelectual do novo-desenvolvimentismo é apresentada em Bresser-Pereira (2011).