A cooperação internacional é um campo em disputa na sociedade brasileira. O senso comum, estimulado pelas corporações da mídia, não compreende como um país com problemas sociais crônicos envia recursos financeiros e humanos para ajudar outros países a superarem seus dramas locais. Para abrir um campo de participação maior da sociedade civil e pontuar as características da atual cooperação internacional brasileira, a Conferência Nacional 2003-2013: A Nova Política Externa, ocorrida na UFABC de São Bernardo do Campo, promoveu na quarta-feira (17), a mesa Cooperação Internacional para o Desenvolvimento.

Com perfil intelectual e governamental, a composição da mesa identificou uma mudança no perfil da cooperação internacional, desde o Governo Lula, defendendo um rumo político para ela. Esta foi a análise feita por estudiosos como Iara Leite, pesquisadora do Centro de Estudos e Articulação da Cooperação Sul-Sul, a professora de Relações Internacionais da PUC-RJ, Letícia Pinheiro e Milton Rondó Filho, coordenador-geral de Ações Internacionais de Combate à Fome do Ministério das Relações Exteriores.

O secretário-adjunto de Relações Internacionais e Federativas da Prefeitura de São Paulo, Vicente Carlos y Plá Trevas, afirmou que a cooperação internacional não é questão de escolha, é uma obrigatoriedade da nova ordem mundial. Para ele, é preciso estar atento se o país não está reproduzindo a agenda dos países ricos. “Qual é a nossa cooperação internacional? Se não houver o estímulo a uma nova ordem, pra mim não faz sentido”, disse o gestor de um dos poucos governos locais que mantém cooperação internacional no país.

Cooperar para dominar

Trevas citou uma experiência pessoal, durante seu exílio na França, quando observou que a agenda da cooperação francesa era formar os novos quadros políticos dos estados africanos recentemente “independentes” da França. No mesmo sentido da agenda imperialista francesa, a universidade brasileira estava sendo aprisionada pelos acordos Mec-Usaid (Ministério da Educação e United States Agency for International Development), que destruíram a educação pública brasileira durante a ditadura para adequá-la ao gosto norte-americano. Tudo isso que Trevas viveu, se expressava por meio da “cooperação para o desenvolvimento”.

Segundo as reflexões feitas, a agenda da cooperação tem uma aparência solidária, que se reflete em reciprocidade como poder. Desde a mudança do perfil da política externa brasileira, o país tem recebido apoio de países com os quais mantém cooperação para eleição de representantes em organismos multilaterais, por exemplo. Para os expositores, esta cooperação tem que ser uma via de mão dupla, em que o Brasil precisa aprender com a experiência dos países em que atua, como um parceiro e não um “doador”.

Trevas defende a entrada de novos atores na cena da cooperação, com a abertura de espaço para governos subnacionais (prefeitura, p.e.), embora seja necessário rever procedimentos que funcionam como obstáculos. Ele também admite que é difícil para uma prefeitura com limites orçamentários justificar uma cooperação internacional para seu munícipe, principalmente porque tem “um tribunal de contas nas costas”. Por isso, geralmente, as cidades que promovem esse tipo de intercâmbio são aquelas que contam com orçamentos mais robustos e que podem mostrar o resultado de suas relações externas de forma mais paupável. “O desafio é criar uma opinião publica nos parlamentos que rompa com o senso comum de que o prefeito ou parlamentar faz turismo com dinheiro público”. Ele afirma a necessidade dos atores subnacionais terem mais cobertura legal. “Estamos falando de cidades como São Paulo, que têm inúmeras representações do mundo em sua municipalidade, e mantém relações permanentes com outros países. Se nós temos dificuldades legais, imagina o resto?” para ele, a questão de fundo é estabelecer e consolidar procedimentos e marcos legais que respondam se um ente subnacional tem condições de fechar tratados e acordos internacionais.

Uma das implicações da nova política externa sobre a cooperação é apresentada por vários meios: o foco no Mercosul. Na pesquisa apresentada por Iara Leite, por exemplo, a questão aparece como crítica, na medida em que há um direcionamento muito forte de recursos para cooperação que se resume à modalidade comercial. Trevas, por sua vez, considera uma mudança importante a cooperação com os vizinhos, embora analise que é preciso avaliar com critério o significado de abrir escritório da Embrapa e do Ipea, e agência da Caixa na Venezuela. Ele também mostra que o Brasil contribui com cooperação técnica em políticas habitacionais e de transferência de renda, sem recair no sistema clientelar que sempre vigorou nesses países. “A agenda da cooperação tem que ter como foco a integração regional, sem exclusividade”, reafirma ele.

Para Trevas a agenda da cooperação precisa estar vinculada, primordialmente, à pauta das cidades. “O desafio do século XXI é que estamos nos tornando uma humanidade urbana. Vivemos uma crise do modo de vida das nossas cidades.” Para ele, as cidades (e gestores) que tiverem soluções para esta crise devem cooperar, por exemplo, com o continente africano, que vive grandes déficits nas cidades. “Precisamos ir para fora levando novas agendas, da fome, da pobreza, da redução das desigualdades”.

“Boa cooperação é aquela que combina movimentos sociais e interesses. Explicitemos nossos interesses e precisamos ser atentos a nossas contradições.” Trevas afirma que é preciso revisitar conceitos, também por meio do pensamento acadêmico, para destravar a cooperação. “A Agência Brasileira de Cooperação podia ser uma impulsão mas muitas vezes é um cartório”, diz ele, mencionando que tem projetos internacionais e depende dessa burocracia para fazê-los caminhar.

A pesquisa de Iara também revela a atuação maior de alguns ministérios na agenda da cooperação, em detrimento de outros, estimulando um debate sobre a necessidade de todos eles terem um olhar para a cooperação internacional. Essa questão, por outro lado, esbarra no governo de coalizão e no desinteresse de partidos que não têm tradição internacionalista. Foi assim, por exemplo, que houve manifestações de empresários e políticos contra a cooperação do Brasil com a Venezuela. “Foi uma luta ideológica de quinta categoria. Aí, entrou o interesse material. Companheiro, menos! Olha pra balança comercial e minhas relações comerciais, lá”, ironizou Trevas, citando a intervenção no assunto de grandes empresas que já atuam naquele país, para reduzir a crise. “Temos que ter uma agenda mercosulina de cooperação. Temos que chamar los hermanos para construir conceitos, estratégias e convicções”, diz o gestor municipal, que fala com a autoridade de quem já foi subchefe de Assuntos Federativos da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, durante o Governo Lula.

Trevas comentou ainda as dificuldades de lidar com a imprensa, no que concerne à cooperação internacional. Segundo ele, a mídia opera na “agenda na indigência”. “Eu sinto-me lesado como cidadão leitor com o descompromisso da imprensa”. Ele sente falta da época em que a imprensa mantinha boa rede de correspondentes estrangeiros, que traziam uma visão diferenciada das relações intergovernamentais. “Agora, todo mundo fica reproduzindo comentários desrespeitosos de agências estrangeiras que não têm compromisso conosco. Temos uma mídia aquém do país que somos. Isso é inadmissível”, indignou-se Trevas.

Falta de transparência e controle social

A pesquisadora Iara Leite considerou esta primeira conferência uma oportunidade histórica para dar transparência às políticas externas do Brasil. Ela apresentou um relatório sobre o estado atual do debate da cooperação internacional para o desenvolvimento no Brasil. O relatório feito entre agosto 2012 a agosto de 2013 aponta o engajamento do país na cooperação internacional para o desenvolvimento, mudando um status antigo de recipiendário para provedor de recursos, tecnologias e conhecimento. O relatório revela um pouco do perfil da cooperação brasileira.

O relatório revela a duplicação de gastos na cooperação técnica, humanitária e de bolsas de estudo, ainda nos governo de Lula. Iara constata, no entanto, que o discurso oficial de que a cooperação não é vinculada à geração de lucro se contradiz com os fartos recursos destinados à cooperação comercial. A atuação do Brasil em países pobres em situação de catástrofe foi a que mais ampliou a cooperação humanitária do Brasil. Iara observa que a Agência Brasileira de Cooperação centraliza o tema ao coordenar a cooperação técnica recebida e prestada pelo Brasil, existe um marco legal ordenando o assunto, e houve um engajamento maior na cooperação técnica, por meio de atores federativos, universidades e sociedade civil.

No ranking da ABC, na prática, o Mercosul é a prioridade. O Peru encabeça o número de ações. Embora haja ações mais caras em outros continentes, Iara diz que é preciso relevar que o orçamento é maior em países mais distantes, embora haja menos ações. “A ABC também dá prioridade a parceiros com capacidade de dar contrapartidas e projetos que dão certo. Portanto, não é só a lógica da demanda que define a cooperação”.

Outra percepção curiosa no relatório estudado por ela, diz respeito ao aumento da cooperação em segurança pública e, agora, de defesa. O embaixador Fernando José Marroni de Abreu é o novo diretor-geral da ABC e anunciou prioridade para a América Latina e Caribe. Há um forte programa de segurança alimentar e uma atuação no Haiti em reconstrução, desenvolvimento e estabilização.

Iara destaca a necessidade do setor privado, da sociedade civil e dos movimentos sociais participarem do processo decisório sobre a cooperação, hoje restrita ao  Ministério da Relações Exteriores, à Presidência da República, aos Ministérios e às Agências implementadoras. “Cooperação internacional é uma política pública como qualquer outra, porque é disputada socialmente”, diz ela. Em sua opinião, a sociedade deveria participar do debate sobre porque o país precisa cooperar, com quem cooperar, em quais setores e com que estrutura legal.

Para ela, seria necessário criar um grupo formal transparente para acompanhar a implementação dessas políticas, já que de forma velada ele já existe. Ela diz ter dificuldades na divulgação de informações sobre as modalidades que funcionam e seus custos. “Temos narrativas do que o Brasil levou para lá, e nunca o que aprendeu. O que estamos indo buscar no outro? Outros países vizinhos têm uma experiência mais fluída nesse assunto e podem ensinar”, diz ela.

Política externa é política

A professora da PUC-RJ, Letícia Pinheiro, lembrou uma obviedade que nem sempre é percebida. Política externa são duas palavras, um substantivo e um adjetivo, que, ao contrário do que possa parecer, revela que política externa é política. “Essa obviedade não nos tocava”, diz ela, que se identifica como parte de uma geração que viveu grande parte de sua vida sob ditadura. “Isso mudou e é um avanço espetacular para minha geração poder falar de política externa dessa forma”, afirma.

Letícia está chamando a atenção para o fato que cooperação técnica, embora um subtema aparentemente restrito aos salões do Ministério das Relações Exteriores, também é política, portanto objeto de interesse da sociedade civil. Ela lembra que o Brasil está envolvido em cooperação técnica em saúde desde a década de 1920, quando isto recebia o nome de “ajuda internacional”. “O que mudou de uns anos pra cá é uma associação mais clara da prática da cooperação em relação com o campo da política externa”.

A professora aponta as distinções do interesse dos ministérios pela cooperação como um processo natural num governo de coalizão, que demanda uma necessidade da ampliação da participação social. “Temos uma ampliação cada vez maior dos ministérios na cooperação e na política externa com partidos diferentes e interesses diferentes. A cooperação tem esse traço do fazer político nacional”, diz ela.

A política externa, na opinião de Letícia, tem que ser sujeito da ampliação dos mecanismos democráticos. “Não basta discutir o rol de prioridades, mas como se executa o desenho institucional do estado para a cooperação. Não basta dizer que é preciso participar, mas como será essa participação, como se dará a representação, como se dá a transparência dos dados e metodologia dos projetos, se há acesso a dados de orçamento, prestação de contas”, pontua ela.

Respaldo popular

O representante do Ministério das Relações Exteriores, Milton Rondó Filho, deu continuidade ao raciocínio de Letícia ao afirmar que o Governo teria mais respaldo em suas políticas exteriores se contasse com a participação e apoio da sociedade civil organizada. “Até para dar asilo a Snowden”, cita ele. Em sua opinião, o país perde dois cérebros brilhantes que poderiam dar uma contribuição enorme à cibersegurança: Julian Assange e Edward Snowden. Ambos denunciam os mecanismos de espionagem dos EUA sobre outros países. Rondó lembra que os EUA estruturaram sua rede científica e tecnológica na Segunda Guerra Mundial, por meio do drain brain (evasão de cérebros), quando atraia os intelectuais mais renomados do nazismo, do comunismo soviético ou dentre os judeus perseguidos.

Para ele, o Congresso é quem mais precisa ser sensibilizado para a cooperação que a sociedade. Ele lembrou a frase do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de que o Brasil não é um país pobre, mas um país injusto. “Se segurança alimentar é um direito humano universal, se alguém passa fome em Gaza, isso é responsabilidade também do Brasil”, disse Rondó, justificando que se José Graziano está na presidência da FAO, é porque o Brasil tem tecnologia social de segurança alimentar. Ele explica ainda que a importância de um brasileiro nesse organismo de combate à fome está no fato dele impedir que um técnico qualquer de país rico atrapalhe o protagonismo brasileiro nessa área, ao implementar projetos na África, por exemplo.